Personagem fundamental da literatura ocidental, Dom Quixote foi fonte de inspiração musical desde a publicação de sua primeira parte, em 1605. Harold Bloom, que coloca Cervantes ao lado de Shakespeare e Dante, sugere que ninguém lê o mesmo Don Quijote: se um crítico como Auerbach encontrou ali uma alegria universal na sátira do romance com seu protagonista, o espanhol Miguel de Unamuno e o próprio Bloom perceberam no livro a celebração da individualidade heroica em sua melhor forma. Essa disparidade de interpretações parece se refletir na música e não será pequena a quantidade de obras inspiradas pelo clássico, como a divertida comédia de Danican Philidor, Sancho Pança, de 1762, ou ainda a ópera homônima de Massenet, de 1904, não tão divertida. Contudo, quero chamar a atenção aqui para três obras que, creio, sejam as mais conhecidas versões musicais do Quixote, e que talvez por isso mesmo sejam reveladoras quanto às distintas formas pelas quais ele é lido através dos tempos.
Dom Quixote nas bodas de Camacho
Georg Philipp Telemann não foi o primeiro a pôr o Quixote em música – antes dele bons compositores como Caldara em 1733, e Boismortier em 1743, já tinham usado as aventuras do personagem para tanto. Contudo, Telemann em 1761 compôs sua última ópera, com nada menos que 80 anos, Don Quichotte auf der Hochzeit des Camacho, que se destaca como uma das melhores obras barrocas baseada no livro. Sem durar nem uma hora inteira, o único ato é dividido em cinco cenas, essa ópera é exemplar do gênero cômico de que o compositor tanto gostava, mas que teve poucas oportunidades de pôr em cena.
Com libreto do poeta Daniel Schiebeler, a trama é baseada num episódio da segunda parte do livro – “Donde se cuentan las bodas de Camacho el rico, com el suceso de Basilio el pobre”. Porém, seu texto foi bastante modificado pelo compositor – a começar pelo título, que antes era Basilio und Quiteria. Essas alterações são relevantes, uma vez que permitem entrever no libreto final a visão de Telemann sobre as figuras de Dom Quixote e Sancho Pança. Seu interesse é, sobretudo, pelo humor, e seu cavaleiro é um louco imaginativo, ainda que altivo, tendo no escudeiro o contraponto mundano. Na primeira cena, que é apenas uma discussão entre Quixote e Sancho, cada um é definido: enquanto o primeiro canta suas considerações sobre o que faz um herói de verdade (como desafiar leões, combater dragões, lutar contra gigantes), Sancho faz questão de lembrar que não há muito ele foi enfrentar moinhos de vento. Dom Quixote, indignado, não põe os pés no chão e acusa o escudeiro de ser covarde, algo absurdo, visto que ele tem o nobre cavaleiro ao seu lado para protegê-lo: eu desafio o destino, eu rio de seus golpes! Essas estradas acidentadas estão me conduzindo ao templo da imortalidade! De fato.
Mas vamos à estória. Basicamente é sobre o encontro de nossos heróis com um grupo de camponeses que irão para o casamento de Quitéria, a bela, e Camacho, o rico; bem como da desventura de Basílio, apaixonado pela noiva e devidamente correspondido, mas cujo destino lhe deu o cognome de o pobre. Daí o pai da moça prometê-la para outro, claro. No coro dos camponeses, Telemann se permite a dar uma “aura espanhola” à música por meio de ritmos e instrumentos que eram associados ao folclore espanhol, como o bolero e uma caixa, respectivamente:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/Midia2.mp3|titles=Don Quichotte auf der Hochzeit des Comacho – Coro dos peregrinos]Convidados para as bodas e informados da desventura de Basílio, Dom Quixote e Sancho têm reações distintas. Este último está mais preocupado com as comidas da festa de casamento, enquanto o seu mestre já ouve os tambores e trombetas da batalha contra Camacho:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/Midia3.mp3|titles=Don Quichotte auf der Hochzeit des Comacho – Dueto Don Quijote y Sancho]Começa o casamento e Basílio irrompe na festa com uma adaga cravada no peito! Diz que está morrendo, mas morreria mais tranquilo e com bem menos dor se Camacho permitisse que Quitéria se casasse com ele por uns instantes antes dele partir dessa, nada demais. Para alguém que está com um pé na cova ele até que é muito eloquente, diz Sancho, admirado. Contrariado, o rico cede, para logo após a benção do padre Basílio se revelar perfeitamente saudável – a adaga e o sangue eram falsos. Como o combativo cavaleiro de La Mancha fica ao lado do miserável astuto, Camacho desiste de desafiá-lo e o casal termina feliz para sempre.
Não podemos esquecer que estamos falando de um dos compositores mais profílicos de todos os tempos, logo, não será surpresa descobrir que ele tem ainda outro trabalho sobre o Don Quijote! Trata-se de uma suíte para cordas composta no mesmo ano que a ópera. Dividida em sete ligeiras, porém exuberantes, partes, Telemann nos conta através dela algumas aventuras célebres do cavaleiro, como aquela que viria se tornar uma das imagens mais fortes da literatura ocidental, o combate contra o que o Dom acreditava serem gigantes, mas eram apenas moinhos de vento:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/Telemann-Don-Quixotte-His-attack-on-the-windmills.mp3|titles=Telemann – Don Quixotte – His attack on the windmills].
Don Quixote: variações fantásticas sobre um tema de caráter cavalaresco
O opus 35 de Richard Strauss, Don Quijote: Phantastische Variationen über ein Thema ritterlichen Charakters, de 1897, é uma de suas obras mais atípicas. Com um programa exaustivamente detalhado em passagens célebres do livro de Cervantes, é uma espécie de sinfonia concertante para violoncelo, em que cada episódio contém uma variação do tema principal. Este é composto por um motivo bastante ilustrativo para o cavaleiro da triste figura – inteligente, gentil, ressaltando seu caráter errante, e até mesmo inocente:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/05-Richard-Strauss-Don-Quixote-Op.35-Thema.-Mäßig_-The-Knight-of-the-Dolefu.mp3|titles=05 – Richard Strauss – Don Quixote, Op.35 – Thema. Mäßig_ The Knight of the Dolefu]Já o de Sancho indica a personalidade grosseira e desajeitada do escudeiro, sem, no entanto, deixar de passar a impressão de que ele é um bocado astuto:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/06-Richard-Strauss-Don-Quixote-Op.35-Maggiore_-Sancho-Pansa.mp3|titles=06 – Richard Strauss – Don Quixote, Op.35 – Maggiore_ Sancho Pansa]Esses dois motivos entram em conflito na terceira variação devido a uma discussão entre o Dom e Sancho, que começa a duvidar da nobre causa e recebe uma reprimenda do cavaleiro:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/Midia4.mp3|titles=Midia4]Essas descrições narram quase literalmente passagens significativas da obra de Cervantes, como na variação seguinte, em que um tema sacro surge para indicar a procissão de peregrinos carregando a imagem de uma santa – e cuja mente perspicaz de nosso cavaleiro imediatamente percebe como o sequestro de uma donzela. O resultado é, novamente, uma confusão:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/10-Richard-Strauss-Don-Quixote-Op.35-Var-IV.-Etwas-breiter_-The-Adventure-w.mp3|titles=10 – Richard Strauss – Don Quixote, Op.35 – Var IV. Etwas breiter_ The Adventure w]Um dos maiores trunfos da composição de Strauss é a quantidade relevante de motivos para descrever as cenas – Herwarth Walden conta nada menos que 53 ao longo do poema (!), um verdadeiro tour de force. Porém, não quero fazer aqui uma análise da partitura, meu ponto tem a ver em como as escolhas estéticas de Strauss denunciam a visão que ele tinha do personagem.
No sentido formal, a obra do maestro alemão tem como mérito principal o uso das variações. Já houve quem sugerisse que ele levou aqui até as ultimas consequências a ideia wagneriana de um personagem definido por um tema, de modo que as menores mudanças psicológicas deste seriam definidas por variações sobre o seu tema. Contudo, Strauss está demasiado preso a um programa extenso, fazendo questão de entregar uma estória com começo, meio e fim, até o momento em que o Quixote recobra sua sanidade para, enfim, morrer. Daí talvez o poema termine com um ar datado, não se comparando a trabalhos menos prolixos, e ainda assim tão bem ilustrativos, como seus McBeth e Don Juan.
Romain Rolland, para citar um crítico contemporâneo do compositor, dizia que o Don Quijote chegou aos limites do que a música programática poderia fazer, conseguindo ser, ao mesmo tempo, um progresso do ponto de vista da partitura e algo que exige uma paciência sem igual da plateia. Aparentemente Strauss tem uma visão romântica do cavaleiro, herói sem igual em seu tempo e por isso mesmo tido como louco, considerando sua trajetória como o triunfo da imaginação sobre a realidade. Certamente o Quixote de Strauss não bate bem da cabeça, e por isso mesmo deve retornar à normalidade antes do fim do poema sinfônico, porém o alemão era um bom leitor de Nietzsche, de quem pouco antes adaptara um livro, e devia estar ciente de que sempre há um pouco de razão na loucura como o filosófo insistia. Posteriormente, Strauss irá precisar cada vez mais de recursos orquestrais consideráveis para contar estórias supostamente heroicas, como fez no poema sinfônico posterior, Ein Heldeleben – sendo que agora o heroi é ele mesmo.
El retablo de maese Pedro
Enfim, um espanhol. O andaluz Manuel de Falla compôs sua versão do Quixote por encomenda de Winnaretta Singer, Princesa de Polignac, uma mecenas responsável ainda pelo Socrate, de Satie e Renard, de Stravinsky – é para ela que Ravel dedicou a célebre Pavanne. Estreou em 1923, no teatro de marionetes que a princesa tinha em sua casa em Paris. Tinha que ser lá, sim, porque a obra tem um componente metalinguístico: trata-se de uma apresentação de marionetes para outras marionetes que acreditam assistir a um teatro de marionetes (?!).
Com apenas três cantores – Quixote (barítono), Mestre Pedro (tenor) e o trujamán (criança ou soprano ligeiro), El retablo é a mais inusitada das adaptações de que falamos aqui e, provavelmente por isso, não aparece tanto nos palcos talvez pela sua curta duração, com pouco mais de vinte minutos de execução. Seu libreto é baseado no capítulo 26 da segunda parte, onde Quixote e Sancho são convidados a assistirem a narrativa do rapto de Melisendra por Marsílio, rei mouro, e de seu resgate e fuga com o esposo, Don Gaiferos, no teatro de marionetes do Mestre Pedro. Aqui o chamado deste para todos assistirem ao espetáculo:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/18-El-Retablo-De-Maese-Pedro_-El-Pregón.mp3|titles=El Retablo De Maese Pedro]Uma vez que a estória se passa durante o domínio árabe sobre a península, De Falla aproveita e dá um tom oriental à música, algo muito peculiar ao folclore de sua terra natal, a Andaluzia:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/Cuadro-III-El-Suplicio-Del-Moro.mp3|titles=Cuadro III – El Suplicio Del Moro]Ao longo das ações narradas no palco, Don Quixote interrompe mais de uma vez o trujamán, menino que narra as ações das marionetes, para corrigi-lo, uma vez que ele conhece bem mais detalhes sobre a história da Reconquista – “entre moros no se usan campanas, sino atabales y dulzainas!”. Contudo, como era de se imaginar, o cavaleiro de La Mancha se envolve demais na ficção que assiste até que, não aguentando mais ficar impassível frente à perseguição dos mouros ao casal em fuga, sobe ao palco para “lutar” contra os infiéis e destruir as marionetes, para desespero do Mestre Pedro (¡Deténgase, deténgase vuesa merced, mi señor don Quijote; mire que me destruye toda mi hacienda!):
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/Midia5.mp3|titles=Midia5]Em seu pronunciamento final, o Quixote ainda encontra tempo para uma declaração à sua célebre musa, Dulcineia del Toboso:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/Declaracion-a-Dulcinea.mp3|titles=Declaracion a Dulcinea]E a homenagear seus heróis cavaleiros predecessores para, ao fim, afirmar categoricamente seu maior valor:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/10/El-retablo-de-maese-Pedro-Final.mp3|titles=El retablo de maese Pedro – Final]¡Viva la andante caballería sobre todas las cosas que hoy viven en la tierra!
Menção honrosa
Cabe aqui lembrar as ótimas canções de Ravel que quase apareceram numa adaptação do clássico. Em 1932, a pedidos de um produtor de cinema, o compositor francês se dedicou a elaborar três canções com a promessa de serem usadas no filme Adventures of Don Quixote, de Georg Pabst. Ocorre que o produtor era malandro, e encomendou canções para outros compositores para ver no final qual conjunto era mais adequado. Assim, De Falla, Ibert, Milhaud e Delannoy também escreveram suas canções. Sem conseguir terminar a tempo devido aos primeiros sintomas da doença que o incapacitaria até a morte em 1937, Ravel foi preterido por Ibert, o que o decepcionou – ele também não sabia que participava de uma “seleção” –, considerando mesmo um processo judicial. De todo modo, ficaram as canções de Don Quichotte a Dulcinée que, ao lado dos concertos para piano, formam as últimas obras de Ravel. Com letras de Paul Morand, as canções eram destinadas a um baixo – no filme de Pabst, que não é uma ópera, elas seriam cantadas por ninguém menos que o célebre baixo russo Feodor Chaliapin, que interpreta o Quixote. Don Quichotte a Dulcinée é o epílogo da influência da música espanhola na obra de Ravel, como se vê na “Chanson romanesque”, em que o piano imita um violão (!) na declaração de devoção do cavaleiro à sua amada, ou ainda na “Chanson épique”, cujo ritmo deriva do zortzico basco.
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lembrei desse texto: http://www.revistappgsa.ifcs.ufrj.br/pdfs/ano2v3_artigo_roger-chartier.pdf
Parabéns pelo artigo ^^ estou sempre acompanhando o euterpe em todas as publicações ^^
Li certa vez que o Cervantes escreveu o Dom Quixote na cadeia, e sua intenção inicial era expó-lo ao ridículo. Acabou criando um personagem imortal, amado por ricos e pobres, cultos e simplórios pelo mundo afora, séculos a fio.
É impressionante a lista de compositores que também se apaixonaram pelo cavaleiro da triste figura. Além dos citados no seu belíssimo texto, com suas obras consagradas (Strauss, Ravel, De Falla) ou ainda não (Telemann, boa lembrança!), gostaria de lembrar três outros: Henry Purcell (The Comical History of Don Quixote, 1694/5, magnífico!), Felix Mendelssohn-Bartholdy (As Bodas de Camacho, op.10, sua última ópera completa, escrita aos 15 anos!) e Roberto Gerhard (o balê Don Quixote, de 1950), um compositor catalão, aluno de Schönberg, e hoje injustamente esquecido.
Pequenas correções: Camacho, e não Camancho. E Danican (e não Ducanan) Philidor. Aliás, François-André Danican Philidor (1726-1795) era não só um músico talentoso, como também um dos melhores enxadristas do seu tempo. Seu manual “L’Analyse de Jeu des Échecs” (1749-1777), é ainda hoje leitura obrigatória pra quem se interessa por xadrez. Mas isso é outra história. E viva o Dom Quixote! Abs.
Muito interessante este blog. Gostei muito e vou indicar aos amigos amantes de musica de qualidade. Parabéns!
Sensacional esse artigo. Bom ver citarem Telleman, músico simplesmente sensacional!