Esse começo é de uma das peças mais populares de Brahms. E, ao contrário de obras mais tardias do compositor, ela deriva claramente de uma obra literária, a balada “Edward”, que Brahms encontrou na coleção Stimmen den Völker (“Vozes dos Povos”) de Johann Gottfried Herder. Esse texto faz parte de um dos movimentos mais importantes da história do pensamento europeu do século XIX, que é a forte influência e interesse gerados tanto pelo passado distante quanto pela arte popular. É na onda desse amor descoberto pelo passado remoto e pela voz popular (um conceito, por si só, importantíssimo na filosofia de Herder) que o século XIX se volta para esse passado desconhecido. Fazem parte desse movimento coleções como o Des Knaben Wunderhorn, os contos dos irmãos Grimm, a valorização da literatura medieval, sobretudo a germânica, como encontrado no Cantar dos Nibelungos, nos poemas de Wolfram von Eschenbach, como o Parzival. Como se pode notar, nenhum desses exemplos é ocioso e ao longo do século XIX diversas obras musicais de enorme vulto foram compostas com base nesse acervo de poesia medieval e popular (para os românticos a distinção era frágil).
Uma das razões da escolha consciente que o romantismo faz pelo arcaico e popular está na “rebelião” contra o racionalismo das luzes. Se a ordem e os padrões regulares e as regras estéticas fazem parte do ambiente no qual circula o autor clássico, o Romantismo vê nisso uma amarra para a expressão e busca nas expressões de povos e lugares pouco clássicos – na Idade Média, na cultura popular, nas crianças – uma forma de se ligar a uma expressão mais autêntica e, para o artista romântico, mais verdadeira.
A balada em questão é inspirada por um poema escocês, “Edward”. Ora, a Escócia era, já na época de Goethe, um dos lugares mais associados a todo esse movimento popular e passadista. Muito por obra dos romances de Walter Scott, imensamente popular na época, e pela publicação dos misteriosos poemas de Ossian, poemas gaélicos escoceses do passado muito distante, que depois se revelaram, em última instância, como criações não de um bardo do alvorecer da história, mas de James MacPherson.
Inspirado por essa “descoberta”, um padre chamado Thomas Percy partiu em busca de poemas populares no interior da Grã Bretanha, e publicou um grande volume chamado Reliques of Ancient English Poetry (1765). Neste volume está a balada chamada Edward, que viria a ser recolhida por Herder e chegaria às mãos de Brahms.
Não cabe aqui relatar toda influência que tal “escocismo” viria a ter na música, mas basta lembrar que Brahms já tinha trinta anos de obras musicais de influência escocesa, como La damma del Lago de Rossini, La dame blanche de Boieldieu – baseadas em Walter Scott – e, claro, as obras de Mendelssohn, como As Hébridas – baseada em Ossian – e a Sinfonia Escocesa.
Podemos analisar a maneira com que Brahms refletiu esse poema na Balada e compará-la com a estrutura do poema. Contudo, outra peça de valor nos ajuda a compreender ainda melhor a estrutura da própria Balada Op. 10.
Anos depois de compor as quatro Baladas Op. 10, Brahms compôs uma série de “Baladas e Romances”, novamente com evocação e temática medieval. A primeira dessas peças é um dueto sobre o mesmo poema que inspirou a balada. Apresentamos aqui:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/07/Brahms-Duet-op-75-n°1-Edward.mp3|titles=Brahms – Duet op 75, n°1 Edward]Dein Schwert, wie ist’s von Blut so rot?
Edward, Edward!
Dein Schwert, wie ist’s von Blut so rot?
Und gehst so traurig da? O!
Ich hab geschlagen meinen Geier tot,
Mutter, Mutter!
Ich hab geschlagen meinen Geier tot,
Und das, das geht mir nah. O!
Deines Geiers Blut ist nicht so rot,
Edward, Edward!
Deines Geiers Blut ist nicht so rot,
Mein Sohn, bekenn mir frei. O!
Ich hab geschlagen mein Rotroß tot,
Mutter, Mutter!
Ich hab geschlagen mein Rotroß tot,
Und’s war so stolz und treu. O!
Dein Roß war alt und hast’s nicht not,
Edward, Edward!
Dein Roß war alt und hast’s nicht not,
Dich drückt ein andrer Schmerz. O!
Ich hab geschlagen meinen Vater tot!
Mutter, Mutter!
Ich hab geschlagen meinen Vater tot,
Und das, das quält mein Herz! O!
Und was wirst du nun an dir tun,
Edward, Edward?
Und was wirst du nun an dir tun,
Mein Sohn, das sage mir! O!
Auf Erden soll mein Fuß nicht ruhn!
Mutter, Mutter!
Auf Erden soll mein Fuß nicht ruhn!
Will wandern übers Meer! O!
Und was soll werden dein Hof und Hall,
Edward, Edward?
Und was soll werden dein Hof und Hall,
So herrlich sonst, so schön? O!
Ach immer steh’s und sink und fall!
Mutter, Mutter!
Ach immer steh’s und sink und fall,
Ich werd es nimmer sehn! O!
Und was soll werden dein Weib und Kind,
Edward, Edward?
Und was soll werden dein Weib und Kind,
Wann du gehst übers Meer? O!
Die Welt ist groß, laß sie betteln drin,
Mutter, Mutter!
Die Welt ist groß, laß sie betteln drin,
Ich seh sie nimmermehr! O!
Und was willst du lassen deiner Mutter teu’r?,
Edward, Edward?
Und was soll deine Mutter tun,
Mein Sohn, das sage mir? O!
“Fluch will ich Euch lassen und höllisch Feu’r,
Mutter, Mutter!
Der Fluch der Hölle soll auf euch ruhn,
Denn ihr, ihr rietet’s mir! O!
Como se pode ver, a peça é um dueto entre a mãe e o filho. Ainda assim podemos distinguir três seções. A primeira parte consistindo em um diálogo entre a mãe e Edward:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/07/pedaço2.mp3|titles=pedaço2]Até um momento em que Edward explode e confessa o assassinato de seu pai.
A estrutura se repete, o tema original retorna e conclui com a descoberta da culpa da mãe no assassinato do pai:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/07/pedaço-3.mp3|titles=pedaço 3]Seguindo o próprio original escocês, há um refrão no nome do personagem e que dá nome ao poema:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/07/pedaço4.mp3|titles=pedaço4]Edward! Edward!
Esse dueto, composto depois, ajuda-nos a compreender melhor a estrutura da balada mais famosa.
A Balada
[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=eDvWFcJJjgo” maxwidth=”600″]Ela se inicia com um tema em Ré menor. A sonoridade, com acordes com quintas abertas, sem grandes complexidades harmônicas, apenas tríades simples, é um aspecto marcante dessa passagem e lhe dá um ar solene e, por que não dizer?, medieval à música. Ao fim de cada uma das frases vemos repetido, como um refrão, a cadência na dominante: mi-lá – mi-lá:
Esse refrão com acento na segunda nota nos remete imediatamente ao dueto que acabamos de ouvir. Nele também há um refrão com um aspecto muito semelhante. Ele está sobre o nome do personagem “Edward! Edward!”. Penso que seja bastante provável imaginar que essas primeiras frases representam o discurso da mãe de Edward inquirindo o filho sobre as razões do sangue em sua roupa.
A resposta a essa frase vem não na Dominante, como é o procedimento musical padrão na música tonal tradicional, mas sim na Subdominante. Essa modulação plagal parece ampliar o caráter “medieval” e “arcaico” do texto, uma vez que o intervalo melódico de quarta está demasiado associado aos modos eclesiásticos e, portanto, a um passado longínquo.
Se nos voltarmos ao poema e ao dueto, veremos aqui a resposta do filho. Aqui a mudança está na construção dos acordes. Vão-se as quintas abertas e a os acordes ficam mais “fechados”. Harmonicamente a mudança é pequena, mas em termos de sonoridade – aqui dependendo mais das ressonâncias do instrumento – o resultado é perceptível.
As duas passagens são, grosso modo, repetidas até conduzirem a modulação para o modo maior. Toda essa segunda seção é baseada no segundo tema da primeira seção, ou seja, ao tema que interpretamos como a resposta do filho às perguntas da mãe. Com isso podemos sem sombra de dúvida associá-la ao filho: o caráter dramático e extremamente enfático só podem ser uma referência ao motivo do sangue e da tristeza do filho – a morte do pai. Bem como sua manifestação no modo maior também pode ser uma representação de que agora ele fala a verdade e não se esconde.
A terceira parte é uma reprise do tema que associamos à mãe. Mas aqui há uma importante particularidade em relação à primeira parte. A mão esquerda não mais completa os acordes, mas sim toca um acompanhamento instável em tercinas, que quebra um pouco a segurança rítmica que a passagem original tinha e também quebra a segurança harmônica, pois agora a nota raiz de todos os acordes é mencionada apenas poucas vezes, deixando o conjunto bastante ambíguo, sobretudo com os intervalos de segunda “sujando” harmonicamente a passagem.
Se observarmos o conteúdo do dueto, vamos ver que o dueto entre a mãe e o filho é resumido para momentos depois retornar o mesmo material do clímax, agora relembrando a mãe que ela foi a responsável pelo assassinato. Essa estrutura não prevalece na peça pra piano, porém, vemos o tema que tínhamos associado com a mãe em um contexto instável tanto rítmica quanto harmonicamente. A interpretação que faço dessa passagem é que Brahms alude à culpa da mãe, mostrando que a calma e a tranquilidade da primeira parte era apenas ilusória.
O poema conta uma história bastante difícil, o final, inseguro e titubeante, mostra todo o impacto que a confissão do filho causa no leito. A balada é um exemplo máximo de miniatura romântica, tanto na ligação da forma com um contexto literário quanto na temática escolhida por Brahms em um das suas primeiras obras-primas.
Ao mesmo tempo, essa balada quebra o esquema formal clássico. Se o final de uma peça na forma sonata, por exemplo, se caracteriza por uma restauração e o cumprimento de uma “viagem”, aqui o final apenas aparentemente é restaurador: ele antes dá ao início uma instabilidade que ele não tinha, sem trazer uma conclusão real. Podemos associar isso com o irracionalismo típico do romantismo e sua recusa à forma clássica.
O curioso é que Brahms é tradicionalmente visto como o autor neoclássico do romantismo. Sim, ele é, possivelmente, o grande mestre da grande forma depois de Beethoven, contudo, em suas miniaturas ele sabe ser romântico.
Pra quem quiser ler a balada Edward em inglês:
http://www.recmusic.org/lieder/get_text.html?TextId=18818
No final do texto vem uma lista de compositores que trabalharam a balada. Além das duas versões de Brahms: Schubert, Carl Loewe, Tchaikovsky e outros.
Começando, é claro, com Schubert:
http://www.youtube.com/watch?v=4ywIuLdWYxI
Continuando com a bela versão de Loewe:
http://www.youtube.com/watch?v=3tq3toJTU7w
A de Tchaikovsky é mais difícil de encontrar na net, mas tb muito interessante:
http://www.youtube.com/watch?v=dcpGVMy6kwk
Como dizia minha mãe: essa balada deu pano pra manga. Abs.
Excelente Artigo, muito interessante ^^
Parabéns
Muy bueno el articulo, super interesante
¡enhorabuena !
Muito bom, Bruno. Tudo relacionado a Brahms me interessa. O debate ainda persistente sobre o grau de romantismo na estrutura clássica desse compositor infelizmente acaba sempre na relação dele com Clara Schumann. Por isso é ótimo saber, através do seu belo artigo, que Brahms era um homem do seu tempo sim, sem precisarmos dessa visão “wagneriana” (olha só) da negação do amor. Mas ao contrário dos seus contemporâneos, Brahms tinha muito interesse por música antiga, com um acervo de partituras antigas invejáveis. Minha dúvida é saber o quanto dessa influência da música antiga está presente na obra do mestre alemão. Algo como “aqui percebemos a influência de Schutz” da mesma forma como fazemos inúmeras vezes com a forte presença de Robert Schumann. Meu palpite é que de todas as influências que Brahms teve (foram inúmeras), acredito que a música popular ou folclórica foi a mais forte.
Brahms é, até hoje dos grandes mestres um dos mais executados e infelizmente dos menos compreendidos, e isso tudo começou com o filósofo alemão Nietsche com suas famosas e duras palavras sobre Brahms e sua “Melancolia da Impotência”. Voces estão de parabéns por contribuirem com im ponto a mais para o restabelecimento da autêntica compreensão musicológica sobre o verdadeiro Brahms, que era bem mais compreendido e justamente homenageado em sua própria época. Reitero Nietsche além dos wagnerianos fanáticos como Hugo Wolf, além de grandes críicos ingleses wagnerianos como o Dramaturgo George Bernard Shaw, e alguns americanos, como o que mandou escrever em letras bem visíveis em algumas salas de concerto do EUA: “Exit in case of Brahms”. Impossível tapar o Sol com a peneira e da mesma forma que Tchaykowsky, Grieg e Villa-Lobos, que também possuem legiões de invejosos a tentarem através de gerações, minimizar-lhes a importância, Brahms só cresce dia a dia no coração dos verdadeiros e lúcidos amantes da grande música erudita. Parabéns mais uma vez!
LUIS ROBERTO A TRENCH – crítico, musicólogo, conferencista e cn=onsultor cultural. Consultor de Cultura da Governo do Estado de SP, Membra da International Society for Contemporary Music of London. Ex membro de Diretoria da Sociedade Brasileira de Musicologia
Parabéns pelo trabalho!