Leonardo T. Oliveira
sobre os comentários de “Se Mozart tivesse escrito os quartetos de Bartók…“
Como apreciador da arte, o Denison lida com o que Harold Bloom chama mesmo de “o problema do cânone”: como conhecer no intervalo de apenas uma vida tudo aquilo que realmente vale a pena em arte? Nosso único guia é aquilo que tradicionalmente foi guardado, investido de prestígio e imitado de modo a se fazer presente na formação da cultura que nos diz respeito – assim temos o tal “cânone” e os nomes que se imortalizaram em cada arte. Mas mesmo o cânone, se o considerarmos como todo nome de compositor não esquecido nos catálogos das gravadoras que nos são acessíveis, é imenso e inevitavelmente desigual: não é porque Bach e Suppé tiveram ambos suas obras preservadas até os nossos dias que a presença de ambos é igualmente significativa na história da música. Daí a necessidade de mais uma filtragem, mais uma seleção de “1ª divisão” dentro do cânone, se o ouvinte quiser que o seu desempenho em explorar um repertório potencialmente significativo para ele seja mais acessível e menos aleatório. Mas ainda assim, mesmo o ouvinte mais consumista e leviano – que passe por obras musicais como um turista mais preocupado em fazer o seu próprio currículo do que em entrar em sintonia com aquilo que visita – dificilmente ao fim de uma vida não teria remorso em reconhecer que sim, houve lacunas daquilo que se queria ter conhecido ou ouvido mais e melhor.
Então de fato, isso é um problema! E qual é a solução do Denison? Classificar os compositores do grande cânone em uma lista que vai dos “medíocres” aos “maiores”, a partir de onde ele pode compará-los na hora de decidir o que prefere ouvir ou desprezar (e encorajar ou desencorajar os outros a ouvirem). E é aqui o começo de toda a discussão.
Não há nada de estranho em ter a própria lista de compositores favoritos, porque medir o batimento do seu coração por cada um deles não é impossível, se é você quem está falando por si mesmo. Mas quando vemos o Denison a) entrando em um post e desencorajando os ouvintes a conhecerem Berio porque ele “é menor do que Messiaen”, ou b) nos perguntando o que nós achamos de tal ou tal compositor com base nesse sistema de comparação – como se procurasse conferir um gabarito e como se encontrar lugar para os compositores na sua hierarquia fosse o fim da relação do ouvinte com o cânone –, é inevitável pararmos tudo e perguntarmos: “Mas por que você precisa fazer isso, Denison?”. Pois não há, logo de início, relação lógica entre percorrer e reagir ao cânone e a necessidade de comparar compositores às vezes muito diferentes para decidir, através de um parâmetro relativo, se as suas obras merecem ser ouvidas ou desprezadas. Notem que mesmo no sentido mais subjetivo a conclusão sobre um compositor será apenas tautológica caso se valha de comparações ao invés de descrições: “Massenet é pior do que Beethoven que é pior do que Bach” consegue significar menos do que “Massenet é ruim”, o que mostra que mesmo para se chegar à última conclusão as comparações não bastam, e que o conselho “amenize o impulso de comparar em favor de uma relação mais direta e verdadeira com o que ouve” é mais recompensador.
Por isso a resposta que o Denison dá para a nossa pergunta, de que comparar é necessário para se saber o que ouvir (já que saber o que ouvir envolve investimento de tempo e dinheiro), não justificaria a comparação, e sim apenas a descrição de cada compositor e sua afinidade pessoal com ele antes de investir em novas gravações da sua obra.
Mas a reação do Denison quando dissemos isso não foi apenas subjetiva: para justificar as comparações ele evocou a objetividade de certos juízos de valor – Beethoven é melhor do que Massenet, como negar?, pois é mais presente nas salas de concerto e possui obras-primas em maior número e variedade de gêneros.
Ou seja, comparar compositores é para ele tão natural que quando perguntamos o porquê dessa postura pueril ele a defendeu como se estivéssemos contestando a possibilidade da comparação per se, e como se defendêssemos uma subjetividade absoluta e um relativismo que impossibilita comparações mais do que subjetivas – o que, além de tudo, simplesmente não responde a pergunta.
Mas a questão não era essa: perguntamos qual a razão dele comparar compositores e artistas e desencorajar os supostos alunos a conhecerem tal ou tal artista ou de entrar em outros posts do blog desencorajando a audição de certos compositores com base em comparações por vezes duvidosas. E é isso o que ele não entendeu até agora: comparar é objetivamente possível desde que você saiba qual critério está utilizando, assim como juízos de valor, resultantes da aplicação de um critério, também são possíveis desde que você saiba qual é o critério utilizado afinal e consiga aferi-lo de forma convincente.
No caso das comparações que ele faz, percebo que o critério mais utilizado é completamente irrelevante para o que ele pretende aferir: ele mede a presença de certas obras nas salas de concerto para dizer que elas são melhores. Como eu disse, as óperas de Janacek e Martinu aparentemente não são tão produzidas pelo mundo quanto as óperas de Puccini, e mesmo assim isso não diz nada da qualidade das obras daqueles dois compositores, que se mostra fora do alcance do que esse critério poderia revelar. Então descrever esse critério afirmando simplesmente: “La Bohème, Tosca, Madama Butterfly e Turandot são, aparentemente, muito mais produzidas pelo mundo do que Katia Kabanova ou A Raposinha Esperta ou Julietta” não equivale a dizer que as últimas são inferiores às primeiras, quanto mais que Puccini seja maior operista que Janacek e Martinu.
O segundo critério mais usado pelo Denison é simplesmente afirmar que uma obra é uma obra-prima e outras não. Então ele soma as obras-primas de um compositor e lhe confere mais pontos se as obras-primas se distribuem em uma diversidade maior de gêneros, e aquele que somar mais pontos é um compositor maior. O problema desse critério não é nem a óbvia limitação em se decidir se uma obra é uma obra-prima ou não (problema solucionado pelo Denison simplesmente pela afirmação de que uma obra é uma obra-prima na prática), mas aquilo que se faz com essa informação. Claro, Bach ou Haydn possuem um número muito grande de obras em que identificar um primor não é difícil, mas quantos pontos devemos garantir a eles caso essas obras sejam mais repetitivas? E quando passamos para outro período histórico, em que o paradigma da originalidade individual passa a informar as artes ao invés de uma técnica mais artesanal de se dominar diferentes estilos, quanto vale uma obra-prima que se destaca das outras com soluções realmente exclusivas depois do séc. XIX? Telemann é maior do que Beethoven porque possui mais obras-primas, mesmo que este tenha escrito uma obra revolucionária como a 9ª Sinfonia? E quanto a compositores que morreram muito cedo, como Purcell ou Schubert? E aqueles que escreveram suas obras-primas com pouca idade, como Mendelssohn? Uma obra-prima de proporções wagnerianas vale mais do que uma obra-prima de proporções schumannescas? E quanto a diferentes tradições, como a música inglesa renascentista para teclado e a música aleatória de vanguarda do séc. XX, qual favorecer mais? E se nós não gostarmos de uma obra importante por simples falta de afinidade, como isso vai influenciar a pontuação? Seja qual for a solução dada para essas discrepâncias, o fato é que o sistema de pontos corridos (inclusive nos seus resultados mais inócuos) achata uma variedade de megacontextos a um mesmo paradigma, e se a postura diante dessa lista for normativa como a do Denison nós estaremos literalmente condenando Massenet por não ter sido um Beethoven. Mas quem disse que ele queria ou devia ser um Beethoven? Tudo deve pagar o preço por não ser como o primeiro colocado? Como fica a história da música sem a prerrogativa das culturas que a geraram em cada local com cada gênio criativo diferente? Sem esquecer, é claro, que tudo isso está sendo feito com nomes do nosso grande cânone, mas que na verdade foi, por sua vez, formado por diferentes cânones!, cada um representando suas próprias tradições (não montamos nossa antologia de compositores de Hildegard von Bingen a Boulez cumulativa e simultaneamente).
Portanto, comparar não é impossível, é natural e revelador e inclusive uma ferramenta importante para o estudo de épocas, estilos, convenções e inovações. Mas se o objetivo da comparação for o desprezo da qualidade de um compositor e a pregação desses valores para outras pessoas, eu temo que isso só possa ser explicado da seguinte maneira: Denison quer um consolo que lhe garanta estar consumindo as coisas boas e não as ruins, mas sinto muito, esse consolo não existe – sempre estaremos deixando de conhecer coisas boas. E a grande lição disso é que não é se tornando um péssimo apreciador da arte – que por alguma razão sente que precisa achatar o cânone radicalmente entre “maiores” e “medíocres”, incapaz de ver a devida qualidade de Rafael ou Massenet ao se forçar a uma adjetivação tão limitada – que ele vai resolver esse dilema. Pois é isso o que ele faz quando pega o repertório limitado que conhece e, ao invés de se relacionar com cada obra da maneira como cada uma delas merece, procura para elas uma posição relativa na sua lista, na qual elas deixam de ter a qualidade reconhecida por direito porque são forçadas a se contentarem com valores como “medíocre” simplesmente porque o rigor da escala dele, que espreme a história da música, só tem valores que vão do “medíocre”, passando pelo “legalzinho”, até chegar no “maior”. Tentar resolver o cânone com uma nova régua que força valores tão limitados em um ranking (em que aquele que pega a medida maior deixa o seguinte com a medida debaixo!) não é solucionar o problema do cânone, é agravá-lo de maneira ainda mais débil quando falamos em arte.