Em meu post anterior, sugeri que convicções políticas dos compositores – quando eles tinham alguma – na grande maioria das vezes tinham bem pouca relevância em seus trabalhos, e isso se devia pelas razões mais prosaicas, como a necessidade financeira. Contudo, não quero dizer que eles viveram isolados da realidade, e é evidente que é possível resgatar algum zeitgeist de suas obras, pelo menos no mais prolixo dos gêneros musicais: a ópera. Para mostrar como a preferência de um compositor aparece em sua obra, quero chamar atenção aqui para a única ópera de Beethoven, Fidelio, e a exposição reveladora sobre valores republicanos que seu libreto termina fazendo de maneira mais ou menos explícita.
Para tanto foi muito útil e inspiradora a leitura do artigo Opera and republican virtue: Beethoven´s “Fidelio”, de John Bokina. Para ele, cumpre não esperar que Fidelio seja uma ode à Restauração, nem tampouco um elogio à Revolução. A primeira interpretação é possível quando se percebe o potencial crítico ao período do Terror na França, algo muito presente na memória européia do começo do século XIX, e que persiste mesmo com a ação sendo transferida para a Espanha do século XVIII. A segunda, quando se ressalta o fato de que seu libreto é, basicamente, uma história exemplar da vitória do espírito humano contra a opressão. Porém, Fidelio é, essencialmente, uma obra que surge num momento de transição, em que resíduos de idéias políticas e sociais antigas convivem ao lado de idéias novas e informes. Desse modo, é difícil qualquer leitura definitiva da ópera – pelo menos não uma partidária – pelas suas próprias ambiguidades. E talvez por isso mesmo seja interessante observar como uma era se revela ali.
Em busca de uma história exemplar
É bastante conhecido o fato de que Beethoven tinha problemas com óperas, especialmente por causa da frivolidade dos libretos de seu tempo, e ainda por cima muitas vezes acompanhadas por uma música banal que não tinha outra utilidade senão reunir pessoas num evento social. Veja-se, por exemplo, como ele avaliava as óperas de Mozart, considerando muitas vezes excelente música, mas difíceis de assistir pela “vulgaridade” dos textos – particularmente os de Lorenzo Da Ponte. Não surpreende, portanto, que sua ópera preferida do austríaco seja a Flauta Mágica, que apesar do clima de fábula, não teria as lacunas morais das anteriores ao fazer uma alegoria da maçonaria ilustrada.
Vale a pena frisar: ainda que apenas quatorze anos mais velho, o mundo de Beethoven é muito distinto do de Mozart, que morreu durante os eventos da Revolução Francesa, enquanto que o primeiro era jovem o suficiente para sentir entusiasmo do momento e, posteriormente, se desencantar com o desenvolvimento daquilo. Mozart viveu num ambiente otimista, racional, onde ainda havia a crença na reforma dos regimes – os conflitos sociais de suas óperas sempre encontram uma resolução serena, onde ninguém sai perdendo muito, como nas Bodas de Fígaro. Beethoven, por sua vez, viveu num mundo que conheceu o Terror, Napoleão e a Santa Aliança.
Quando finalmente se decidiu por uma narrativa que fosse digna o suficiente de sua música, Beethoven escolheu a peça de Jean-Nicolas Bouilly, Léonore ou L´Amour Conjugal (1798). História popular em sua época – há nada menos que outras três óperas sobre esse tema no começo do século XIX por compositores há muito esquecidos –, baseava-se num evento real que ocorreu durante a Revolução: uma mulher, disfarçada de homem, infiltra-se numa prisão para salvar o nobre marido injustamente preso. Se dependesse do compositor teria estreado com o nome de Léonore, porém a direção do teatro preferiu não causar confusão no público com outra ópera de sucesso com o mesmo nome e deu o nome pelo qual é conhecida até hoje (e atualmente Léonore I e Léonore II são os nomes usados para diferenciar as versões anteriores à definitiva).
A originalidade republicana de Fidelio
Sim, versões: não faltou a Beethoven a vontade de apresentar uma ópera digna de suas intenções e, para complicar, a permanência dela nos palcos demorou para acontecer, então há três libretos para Fidelio. Na estréia de sua primeira versão, com libreto de Joseph Sonnleithner, em 1805, Viena estava ocupada pelas tropas francesas e muitos patronos da ópera não estavam na cidade. Uma segunda versão da ópera surgiu em 1806, com alguns cortes para reduzir a ação a dois atos, mas não foi longe graças às disputas entre o compositor e a direção da ópera. Somente em 1814 é que Fidelio volta ao palco, agora em definitiva versão, com mais alterações, agora com o libreto revisado por Georg Treitschke, tornando-se no opus 72 que conhecemos.
Ainda que tenha jeito de singspiel, Fidelio detém uma seriedade inédita para o gênero. Isso ocorre porque Beethoven teve como modelo as “óperas de resgate” que fizeram sucesso na França, principalmente as de Cherubini e Méhul, onde alguém, evidentemente, é salvo heroicamente de um perigo ou cativeiro. Trata-se de uma alternativa na época, quase um meio-termo, entre a opera comique, com seus tipos populares, mais banais e reais para o grande público, e a opera seria com seu nobres e míticos personagens. Porém, não se confunde com uma opera buffa, onde a resolução do conflito ocorre de uma maneira improvável, mas devidamente adequada para todos.
Nada disso. Beethoven escolheu o gênero que melhor evidenciava uma visão otimista da capacidade de grupos e indivíduos atuarem no mundo: se a opera buffa reforçava o status quo do Antigo Regime, o fim do conflito na ópera de resgate se dá com uma mudança abrupta das relações entre governantes e governados. E esses últimos podiam ser homens virtuosos, atuando deliberadamente para alterarem seus destinos. Não há mais um final feliz como o do Rapto do Serralho, que depende da boa vontade conciliadora do Paxá. Na boa metáfora de Bokina, em lugar do “deus ex machina” surge o “populus ex machina”.
Alguém tem que perder algo no final. Não se trata aqui de pedir a cabeça do rei, simplesmente, e o fato de Fidelio ter um personagem que representa o rei de maneira tão paradigmática não significa que, ao contrário, ela seja uma propaganda desse regime. A questão aqui está nos valores, e Fidelio é atravessado por valores republicanos. Se digo valores em lugar de republicanismo puro e simples é para ressaltar que, mais do que a preferência por um regime político, os valores republicanos se estendem por toda a sociedade – e mesmo uma monarquia pode admitir a primazia da liberdade política e a igualdade de todos perante a lei, por exemplo. Em sua narrativa há diversos elementos peculiares do que se entendia por virtude republicana na época, a começar pela mais imediata: a fidelidade conjugal de Leonora está de pleno acordo com a fidelidade ao Estado de direito por Florestan.
Não que a ópera não siga algumas convenções, haja vista que os personagens de Rocco e sua filha Marzelline são reminiscências do antigo estilo – o carcereiro tem muito do tradicional basso buffo –, servindo como alívio cômico e contraste aos heróis. Porém, Beethoven irá introduzir uma densidade inédita nesse tipo de personagem, sobretudo ao pai, que se revela muito característico na ária “Hat man nicht auch Gold beineben”. Nela, o baixo se revela um típico burguês, que avisa para a filha e Fidelio, seu acidental e relutante pretendente, que não é possível viver apenas de amor, pois só a estabilidade financeira permite um casamento feliz:
[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=LBHFj9LIps4″ maxwidth=”600″]Das glück dient wie ein knecht für sold,
A felicidade é um criado a quem se tem de pagar,
es ist ein schönes Ding, das gold.
é uma bela coisa ter dinheiro.
Guiado pelo interesse próprio, Rocco não é um mau sujeito, apenas quer casar a filha com alguém com melhores perspectivas profissionais que Jaquino, digamos assim. Com certeza ele é um homem com sentimentos, mas nada muito nobre. É incapaz de agir heroicamente, de se sacrificar por uma causa – ele está, infelizmente, corrompido ao servir ao despotismo de Don Pizarro. Sem questionar as razões pelas quais há um preso político nos porões da prisão onde trabalha, Rocco entende que ter cometido grandes crimes ou ter grandes inimigos são, no fundo, a mesma coisa. Nada mais distante do casal principal, para quem o amor não é o fundamento do interesse particular, mas do interesse comum.
Vejamos que Florestan é o inverso de Rocco. Alguém pode lembrar que um nobre lamentando muito dignamente os reveses do destino é elemento já presente nas óperas barrocas, mas a distinção está no desenvolvimento da ária de Florestan, que vai de um lamento ao consolo do dever cumprido. Ao contrário do carcereiro que mede muito bem as palavras, nosso héroi cometeu o “crime” de ser honesto e denunciar os crimes de Pizarro. Sua sinceridade é mais do que uma virtude, é uma virtude republicana pelo interesse patriótico:
[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=hAqLJAEzFF0″ maxwidth=”600″]Willig duld ich alle schmerzen,
De bom grado suportarei todos os sofrimentos
ende schmählich meine bahn;
A minha vida chegará tristemente a um fim;
süßer trost in meinem Herzen:
No meu coração trago uma grande consolação:
Meine Pflicht hab ich getan!
cumpri o meu dever!
Mas por que a aventura de Leonora para salvar o marido da morte certa é moralmente superior ao cuidado de um pai com o futuro da filha? Primeiramente, porque o amor que motiva a esposa de Florestan está dentro do que era considerado virtude republicana, inclusive quando esta não se excede em seu papel. Ao contrário do ativismo feminino dos tempos anteriores à Revolução, Leonora não se sente à vontade quando se traveste de Fidelio, sentindo mesmo remorso pelo disfarce, um caso de falsidade ideológica para uma cumpridora das leis. Mais ainda: ela não perde as características femininas que se esperam numa personagem da ópera, como quando se mostra rapidamente fatigada ao ajudar Rocco a preparar a cova de Florestan no porão, bem como ao ficar nervosa em finalmente reconhecer o marido. Nossa protagonista se apresenta o tempo todo uma mulher devotada, profundamente emocional, guiada pelo dever de esposa fiel:
[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=u5Y1LcdGZsI” maxwidth=”600″]Der treuen gattenliebe!
Do meu amor conjugal
o du, für den ich alles trug,
ó tu, por quem eu tudo padeci,
könnt‘ ich zur stelle dringen,
quem me dera poder chegar ao local
Wo bosheit dich in fesseln schlug,
onde a maldade te mantém acorrentado
und süßen trost dir bringen!
e trazer-te doce consolação!
O que há de virtude republicana nisso? Para começar, Leonora reconhece seu lugar. Na concepção de virtude republicana difundida pela Revolução Francesa, o ativismo feminino era absolutamente impróprio. Havia mesmo uma identificação entre Antigo Regime e mulheres da aristocracia, tidas como impertinentes, que com suas intrigas ajudaram na decadência e no despotismo do sistema. Desse modo, mulheres em posição de liderança eram algo muito suspeito – e a Rainha da Noite na Flauta Mágica é uma prima distante de Maria Antonieta. Em lugar do entusiasmo feminino, os revolucionários republicanos tinham forte preferência por uma mulher idealizada que cumprisse com seu papel no corpo social – qual seja, cuidar da casa e da família, entregando cidadãos à vida social, indivíduos devidamente adequados para a esfera pública.
Não quero dizer aqui que a virtude republicana da ópera tem a ver com a conhecida noção renascentista, eminentemente baseada em atributos masculinos, tais como força, perícia militar e, muito importante, auto-controle. Essa virtude está presente nas óperas de Monteverdi, mas não no Fidelio. A idéia republicana dos revolucionários de 1789 é distinta quando dá ênfase na ausência de privilégios, na frugalidade e na abnegação pela pátria – os homens são partes de um todo, iguais em direitos e aptos para cumprirem seus deveres cívicos. É uma noção de virtude, sobretudo, emocional.
Assim, o amor conjugal não é desconectado do amor ao “bem comum”. Ele é mesmo condição necessária para a participação na vida pública, encontra-se em continuidade com aquela. Leonora não é somente fiel ao marido, mas fiel também à virtude cívica conforme os republicanos de seu tempo compreendiam: não se trata mais de uma questão meramente privada, mas de um dever para com a pátria. Não que Leonora consiga expressar isso, seu desenvolvimento é somente interior. Porém, o fato é que a ópera não termina apenas com o resgate de Florestan. Pelo contrário, Fidelio conclui com a aclamação da virtude de Leonora pelo povo e na presença do representante do rei, Don Fernando, que é quem, efetivamente, pune Don Pizarro.
Aliás, não poderia faltar um vilão que encarnasse todas as qualidades do tirano, que usa de modo impróprio o Estado a que supostamente serve. Don Pizarro é a representação do despotismo aristocrático e, talvez por isso mesmo, não seja um personagem tão elaborado quanto os outros – sequer sabemos quais foram seus crimes e o que Florestan denunciou para ele lhe pôr em ferros. Seu avesso é Don Fernando, representante do rei constitucional e amigo pessoal de Florestan (que feliz coincidência!), cujo papel também demonstra ser um resíduo da opera seria ao servir de demonstração da magnanimidade do monarca. Suas palavras são típicas de um líder em prol da conciliação:
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[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=Ve9rKnQXPDQ#t=127s” maxwidth=”600″] Des besten königs Wink und WilleA vontade e o querer do melhor dos reis
führt mich zu euch, ihr Armen, her,
enviou-me, infelizes, até vós
Daß ich der frevel Nacht enthülle,
Para que ilumine as trevas da noite da injustiça
Die all umfangen schwarz und schwer.
que todos envolvia, pesada e negra.
Contudo, não convém exagerar, afinal, logo em seguida o mesmo Don Fernando afirma:
Nein, nicht länger knieet sklavisch nieder,
Não, nunca mais tereis de ajoelhar como escravos,
tyrannenstrenge sei mir fern.
Não sou um tirano inexorável.
es sucht der bruder seine brüder,
sou um irmão que procura o seu irmão
und kann er helfen, hilft er gern.
e que, se o puder, o ajudará com alegria.
Houve, de fato, uma mudança ao longo da narrativa: um personagem foi destituído de sua posição e outro voltou à sua, da qual, diga-se, o libreto indica que ele tinha pleno direito. Na simbólica passagem da escuridão dos porões para a claridade da superfície no fim de Fidelio, Beethoven terminou explicitando uma sensação compartilhada por toda a sociedade européia do começo do século XIX: novos valores surgiram e não seria mais possível pensar ou agir no mundo sem considerá-los.
Parabéns pelo post, eu sempre acompanho a todos os post que são postados, o trabalhos de vocês é realmente muito importante para todos.
Parabéns
O pobre Beethoven libertário sempre foi abusado por déspotas de todas as cores e países. Conheci muita gente que, décadas mais tarde, ainda não podia escutar a Nona Sinfonia sem se lembrar da pompa nazista que a acompanhava, na época.
Quando a Áustria foi anexada ao Reich nazista em 1938, a Ópera de Viena comemorou essa “libertação” com uma apresentação de gala do “Fidelio”, tb em homenagem a um certo Hermann Goering. E depois da Segunda Guerra, a nova república austríaca foi comemorada pela mesma casa vienense em 1945 sabem com que ópera? Adivinharam!
“Os austríacos conseguiram a façanha de transformar Beethoven num austríaco, e Hitler num alemão.” (Billy Wilder)