19abr 2017
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La Clemenza di Torquemada

Detalhe de São Domingos presidindo um Auto da Fé (1475), por Pedro Berruguete (1450-1504)

Hoje completam-se 265 anos da composição de uma das maiores óperas de todos os tempos, La Clemenza di Torquemada, composta por Bach, Vivaldi e Monteverdi, com libretto de Da Ponte, Metastasio e Busenello.

Chega a ser revoltante o fato de uma ópera de tamanha qualidade não ter tido até hoje o reconhecimento necessário do público. Parece-me claro que um dos motivos são as questões sobre sua convoluta história e sua autenticidade, sempre rondando a obra, mas diante de tal música a autenticidade é quase irrelevante.

Monteverdi e Busenello

Claudio Monteverdi (1567-1643) em 1640, por Bernardo Strozzi (1581-1644)

A história da composição desta obra é extremamente confusa e tem seu começo em 1643:

Após o sucesso absoluto de L’incoronazione di Poppea, a dupla Monteverdi e Busanello não se contentou com a glória imortal já adquirida: eles queriam mais, explorar até o máximo todas as potencialidades desse gênero recém-formado, a ópera. Com efeito, já não bastava a Poppea ser a primeira ópera com enredo histórico, tampouco o fato de se cantar os amores do casal imoral Nero e Popéia – ambos queriam ir além, e, em uma carta a Busenello, mesmo antes de terminar a Poppea, Monteverdi nos revela seus planos para o futuro:

“Estava pensando em compor uma ópera contemporânea (…) como você tem ouvido, em um lugar de Castela há não muito tempo, havia um padre cuja fama de sanguinário se espalhou rapidamente, era um inquisidor (aqui a carta tem uma lacuna), pois eu desejo compor a história desse homem”

Tomás de Torquemada (1420-1498)

Parece que simultaneamente ao trabalho com a Poppea, no máximo de sua criatividade, Monteverdi iniciou o trabalho com esta ópera, ainda não nomeada, a partir de um diálogo entre Isabela e Torquemada, que haveria de ser o ponto máximo de toda a obra. Infelizmente, a morte o impediu de continuar seu trabalho; porém, a música foi publicada no duvidoso Nono livro de Madrigais, e nunca foi levada a sério por considerarem-na apócrifa. Esse pedaço de música foi guardado em Roma, como um presente para o Sumo Pontí­fice, e permaneceu por alguns anos na biblioteca do Vaticano.

Vivaldi e Metastasio

Antonio Vivaldi (1678-1741)

Quase cem anos mais tarde, quando as crises de insônia do rei espanhol haviam se agravado e não mais a bella voce de Carlo Broschi conseguia o efeito de outrora, foi chamado à corte de Madrid ninguém menos que o mais famoso libretista da época, e talvez de todos os tempos, Pietro Metastasio. Segundo as próprias palavras do rei, era necessário fazer algo de novo, algo de maior, Segovides musae, paulo maioria canamus, comentava-se pelos corredores do Escorial. Pois era preciso escrever algo para mostrar a glória do povo espanhol, era preciso algo que mostrasse, ao mesmo tempo, como sua cultura devia não apenas aos cristãos, como também aos judeus e mouros. “Era preciso criar o equivalente musical de Cervantes”, era o grande lema na Madri do momento.

Metastasio teve livre acesso aos documentos secretos, teve também poder de decidir quem seria o seu Cervantes musical, que acabou sendo alguém que não falava espanhol e nem vinha da gloriosa Castela: o veneziano Antonio Vivaldi – considerado por todos como o grande operista do momento, depois que Händel abandonou a composição de óperas. Metastasio compôs uma trama formidável, mas graças ao espanhol um tanto castiço do romano, foi preferida a versão italiana de Isabela, reina di[sic] Castela, ou seja, Elisabetta, regina di Castela. Alheio a tudo isto, Vivaldi compôs uma de suas melhores óperas: poucas pessoas sabem, mas o primeiro movimento do Verão das Quatro Estações, foi reaproveitado do prelúdio orquestral da cena do auto de fé e o concerto para flauta La Notte é praticamente uma paráfrase de uma das árias de Cristóvão Colombo.

Porém, Vivaldi teve de voltar a Veneza para resolver uma questão com o teatro local, e deixou a partitura interrompida na metade do segundo ato. O rei espanhol, irritado com esta atitude de desprezo, resolveu dispensar os músicos e Metastasio, deu este projeto por encerrado e voltou a ouvir Farinelli. Vivaldi, porém, teve o zelo de guardar os originais, “papel é caro e isso pode servir para mais coisas no futuro, como embrulhar carne”, anotou em uma de suas cartas. Anos mais tarde, quando expulso de Veneza, Vivaldi resolveu atender uma encomenda de uma ópera em Dresden, mas aquela parada em Viena seria a última de sua vida.

Bach e Da Ponte

J. S. Bach (1685-1750) em 1748, por Elias Gottlob Haussmann (1695-1774)

Parece que Vivaldi estava com a intenção de fazer executar “Elisabetta, regina di Castela” em Dresden, pois só isso explica como, em 1745, essa partitura foi aparecer, completa, em Leipzig nas mãos do Kapellmeister do lugar, após um leilão de papel usado. Segundo se diz, ele não conseguia acreditar que tinha um original do grande compositor veneziano em mãos, e tomou aquelas partituras como troféu levando-as para casa.

Bach, que não tinha as pretensões nacionalistas do rei espanhol, concluiu a obra e modificou-a bastante em seu conteúdo. O que ele fez foi sistematicamente reconstruir toda a obra, a começar pelo libretto, com a ajuda de Orlando da Ponte, que seria pai de Lorenzo, dando destaque impressionante à figura de Torquemada e reduzindo a parte dedicada aos reis. Além disso, Lorenzo trouxe do Vaticano a antiga partitura de Monteverdi, que havia sido vendida a sua famí­lia, depois que o Sumo Pontí­fice vendeu algumas de suas relí­quias para pagar o arquiteto e escultor Bernini.

Bach adicionou o diálogo entre Elisabetta e Torquemada composto por Monteverdi e, além disso, modificou totalmente as partes previamente compostas: a quantidade de comentários e referências orquestrais adicionadas na ópera, dando uma unidade impressionante, fazem-me dizer que Bach foi o grande mestre da ópera de todos os tempos. Se em Vivaldi a ópera corre no esquema recitativo-ária simples, Bach anarquiza esta ordem, colocando recitativos acompanhados, lindas passagens solí­sticas dos instrumentistas, belí­ssimas passagens orquestrais, até colocando um “dueto canônico cancrizans”, baseado na Oferenda Musical.

O que mais impressiona os estudiosos é que o libretto tem uma importância completamente secundária nesta obra – ele apenas é o motivo da existência da ópera, nada mais. A música de Bach faz com que todo o resto seja apenas o resto.

Muito já foi dito sobre esta ópera, mas deixo, mais uma vez, a entrada que Wagner colocou em seu diário logo após travar contato com esta ópera:

“Esta é a ópera mais bela que já vi em minha vida. Tenho que destruí­-la, publicando-a estarei eclipsando minha música; e isto é inadmissí­vel”

Renascimento

Sobre a história do renascimento desta ópera, a história é simples:

Felix Mendelssohn-Bartholdy (1809-1847) em 1839, por James Warren Childe (1778–1862)

Seus manuscritos circulavam em Berlim com a mesma frequência dos da Paixão de São Mateus, mas Mendelssohn não a quis montar por ver no drama de um executor de judeus querendo sua redenção uma afronta a sua raça. Mendelssohn não vira a extrema dignidade com que seu povo foi tratado na obra, dignidade que não estava no libretto horrível de Mestatasio, mas estava marcada em uma das passagens mais belas da ópera, que é o Sábado, uma longa página descritiva da religiosidade judaica, que começa citando uma melodia do Kol Nidre e segue se modificando em uma série de variações que anuncia as Goldberg.

Desde então, os manuscritos chegaram a sumir. Conta-se que um excêntrico milionário os comprou e guardou para a posterioridade, pois uma ópera sobre judeus não conseguiria a menor empatia na Alemanha do final do século XIX. Os descendentes desse milionário guardaram a relí­quia, mas, antes da guerra, fugiram para os EUA e deixaram as partituras na Alemanha, onde foram guardadas como relí­quias na casa de ópera de Königsberg. As forças soviéticas de ocupação conseguiram os originais e a levaram para o Hermitage de São Petersburgo, e foi apenas em 1995 que o mundo pode saber que aquelas estranhas entradas nos diários de Wagner não haviam sido causadas pelo seu recente tratamento com alucinógenos.

Outra hora comento sobre a outra grande obra-prima de Bach e completada por Bomtempo, escrita na nebulosa passagem do mestre alemão por Portugal: “O Anel do Gnomo”, uma trilogia com um prólogo: “Ouro do Tejo”, “As Tágides”, “D. Sebastião” e “Crepúsculo dos Avis”.


Este post tem 21 comentários.

21 respostas para “La Clemenza di Torquemada”

  1. Bruno,

    Parabéns pelo texto criativo… deve ter dado trabalho…
    Feliz Primeiro de Abril pra vc tb…

  2. fabulosa ‘avalanche’ histórica!
    o little Richard não errou no arranjo das palavras

    afinal,
    Monteverdi e Vivaldi revisados por Bach?
    é de eclipsar qualquer sol…

    belo post
    inclusive,
    creio que irá acariciar sobre maneira
    o orgulho filial de PQPBach ~ 8D

  3. Achei o blog que tanto procurava, já o adicionei entre os favoritos. Aprecio muito a história da Música, adoro pesquisar o processo de criação das composições, a biografia dos compositores, etc, etc. Embora seja um diletante em matéria de música, vivo e respiro música, e aprecio desde a música do período medieval, renascentista, barroco, clássico, romântico, e por aí vai. Achei vocês através do PQP Bach, outro blog essencial.
    Obrigado, estarei sempre por aqui, abraço!

  4. Excelente texto, um aula de História da Mùsica. Parabéns, e vamos esperar agora pela obra, que o PQPBach prometeu postar amanhã.

  5. esse post e essa história parecem bons demais pra ser verdade. parece até aquelas coisas tipo código da vinci, cheia de mistério e emoçao. voces tem certeza que nao é pegadinha de primeiro de abril?
    brincadeira. sinceramente, parabens pelo blog, pela atençao e pela qualidade com que voces tratam a musica erudita.

  6. Foi uma estória tão bem engendrada que algumas pessoas já estão aguardando ansiosamente o upload da obra.

  7. ‘esse post e essa história parecem bons demais pra ser verdade.
    parece até aquelas coisas tipo código da vinci, cheia de mistério e emoçao. ‘

    nem precisa entrar no mundo da ficção de brown,
    me lembrou muito a ‘estória’ do achado do evangelho segundo judas! haha
    essa sim é – literalmente – cavernosa e, aliás, difícil de engolir…

  8. O meu trecho preferido desta ópera é aquela ária que abre o segundo ato: Il Fauno brucia: in fiamme! in fiamme!

    É tão mágico que a flauta parece encantada.

  9. Meu “Oh!” faz referência ao comentário do Louis, o qual faria a alegria de Jair Bolsonaro (PP-RJ).

  10. CLEMÊNCIA de Torquemada? Aquele fdp da Inquisição? Se ele tiver clêmencia no inferno, pode ser o de Dante mesmo, acredito nesta estorinha! Nóis é minero, mas num é bobo não! Viva o 1º de Abril!

  11. Ouço, neste instante, a primorosa gravação de Gardiner, com um Vickers em fim de carreira, porém brilhante, no papel título. O marco maior desse registro, porém, é o notável Rene Jacobs em sua incomparável perfomance da grande ária “Non voglio essere tostato!”

  12. Por favor, analisem também as óperas “Brazilian Political Honesty (1499)” de Francesco Landini, “L’innocente Hitler (1937)” de Julius Simon, e “Tous sont honnêtes (8.000 a.c)” de Tartelieri. Tenho essas gravações mas não sei o enredo.

  13. Se não me falha a memória, Sr. IvanRicardo, o enredo da ópera “Brasilian Political Honesty” esta guardada na sede do PT, sob os cuidados do J. Dirceu. Dizem que, inspirados nele, fundaram o glorioso partido! Já “L’innocent Hitler” foi uma tentativa do francês Julius de angariar simpatias para a Alemanha! Não colou na Inglaterra por conta da forte crítica do Churchill. Finalmente a peça de Tartelieri é uma tradução mal e porca do diário de Noé, justificando sua escolha como o capitão da Arca! O enredo original era de 80 rolos – 40 para os dias e 40 para as noites. Extremamente repetitivo e maçante!

  14. J. L. Borges apreciaria quão ilustre imitador ele tem na pessoa do Sr Bruno gripp.
    Ademais, Bravo!
    E confesso que como na leitura dos contos borgianos pus-me atrás dos fatos pra verificá-los, e senti aquela emoção ao me ver enganado.

  15. também senti isso… \o/

    ainda mais eu, que ‘pus-me atrás dos fatos’ [inexistentes]
    apenas depois de comentá-los tão acriticamente, haha.

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