19abr 2017
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Fuga felina

Pegando carona nos dois últimos posts do Amancio, eu vou falar de uma fuga muito particular, a Sonata K. 30 em Sol menor de Domenico Scarlatti (1685-1757), mais popularmente conhecida como “Fuga do Gato”.

(não reparem na mulher de pé)

Esta sonata está presente no volume dos Essercizi per gravicembalo que o compositor publicou em vida, em 1738, dedicando à princesa Maria Bárbara de Portugal, mulher do então Príncipe das Astúrias e depois Rei da Espanha, Fernando VI. Como todas as obras para teclado publicadas na época, seu objetivo expresso é de servir como um método de aprendizagem – daí seu nome, Essercizi. Desta forma, as sonatas são encadeadas como um crescendo de dificuldade tanto de técnica quanto de composição. Esta sonata vem na última posição do volume (um procedimento típico do barroco), e serve desta forma como um coroamento desse processo, quase como uma graduação no teclado.

Sem dúvida podemos enquadrar essa fuga entre algumas das exibições de talento composicional às quais os compositores da época não raramente se prestavam – temos em mente a Oferenda Musical de Bach, as diversas fantasias cromáticas, a Fuga no. 11 do primeiro livro do Cravo Bem Temperado e outras tantas obras. Ela possui duas características que se destacam: a primeira delas é a duração, seus 152 compassos, em compasso 6/8, fazem dela uma das mais longas sonatas de Scarlatti; e a segunda é a completa estranheza do seu tema:

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O primeiro gesto inicial parece aludir a uma abertura normal em terças, mas a partir do Fá# – em especial da sua transição para o Si bemol e deste para o Dó sustenido – o tema fica completamente anômalo e sem caráter – não é nem mesmo uma escala exótica, é nada. Apenas uma sequência estranha e sempre ascendente de notas que, se tocada sozinha no piano, não aparenta possuir nenhum aspecto melódico em sua sequência irregular de intervalos, na presença de notas fora da escala e na completa ausência de movimento rítmico.

Tal estranheza deu o apelido pelo qual a obra é mais conhecida: “fuga do gato”. De acordo com a lenda, Scarlatti teria um gato e, ao deixá-lo andar sobre o teclado do seu instrumento, ele tocou essa série de notas e fez uma fuga sobre ela. Tal anedota é até plausível, uma vez que sem dúvida escrever uma fuga sobre um tema felino agradaria em muito o espírito jocoso de Scarlatti. Mas ela tem um pequeno problema: surgiu no século XIX, aparentemente de Clementi, e não temos notícia dela antes disso. Dá-se até nome ao gato, Pulcinella, mas não temos informação da existência do bichano. Além disso, Ralph Kirkpatrick brinca que seria necessário um gato muito magro, ou muito preciso, para acertar as teclas sem esbarrar em algum bemol ou sustenido adjacente – devemos considerar tal anedota como completamente apócrifa, apesar da sua curiosidade.

De qualquer forma, o tema marca a todos, e a sonata converteu-se em uma favorita do público, Liszt incluiu em seus concertos e ela está presente em todas as edições de “melhores sonatas de Scarlatti” e é também uma das mais gravadas.

Mas o mais curioso de tudo é que, apesar dessa aparente estranheza, a forma da fuga é bastante simples: cada episódio da fuga é composto sobre o seguinte baixo: i-iv-v-IV/V–V/V e V, em outras palavras, é uma modulação para a dominante maior usando a tônica como acorde-pivô. E é sobre esse esquema simples que todo esse edifício é construído. Scarlatti, com efeito, mantém o nosso interesse com essa melodia absolutamente exótica, e pelo grande número de modulações (o tema original aparece em ré menor, dó menor, si bemol maior, no meio de várias voltas à tonalidade original de sol menor). É um procedimento característico da música de teclado italiana do barroco, que é derivado ultimamente da prática do basso continuo, e Scarlatti está se valendo dessa ferramenta tradicional, ainda que de forma bastante original.

Tendo em vista esse fato, podemos ver que, longe de ser aleatório, o tema foi moldado para esse fim! As duas notas fora da escala se encaixam perfeitamente dentro desse modelo harmônico, servem para compor as terças dos acordes maiores da modulação (o uso de um acorde maior no lugar da dominante menor é o procedimento padrão, e o uso do acorde maior da subdominante também é bastante comum). Então, apesar de jocosa, não há nada de aleatório, e se o tema foi escrito por um gato, era um gato que sabia muito bem como funcionava um basso continuo!


Este post tem 1 comentário.

Uma resposta para “Fuga felina”

  1. Parabéns Bruno,

    Eu me lembro que há uns 10 anos, no allegro, você disse que nem conhecia Domenico Scarlatti, apenas seu pai Alessandro. Alguns anos depois, você disse que já estava tocando algumas sonatas de Domenico. Hoje você já as analisa de forma primorosa. Parabéns pela progressão.

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