19abr 2017
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Licenças poéticas em um filme kitsch e a redenção pela arte

Gary Oldman como Beethoven em “Immortal Beloved” (1994)

Por incrível que pareça, tenho algumas coisas a dizer sobre o filme Immortal Beloved (“Minha Amada Imortal”), hoje mais lembrado como mais uma das caricaturas do cinema dos anos 90. Dirigido por Bernard Rose, o filme ficou famoso ao romancear a busca pela identidade da unsterbliche Geliebte (“bem-amada imortal”) a quem Beethoven dirigiu uma misteriosa carta, de fato encontrada entre seus pertences após sua morte em 1827.

A ideia que estrutura o filme, que reconta algo de toda a vida e obra do compositor, é o seu próprio twist final: a Amada Imortal de Beethoven, enigma biográfico de mais de século, teria sido Johanna Reiss, sua própria cunhada tão duramente criticada e combatida judicialmente pela guarda do sobrinho. A ideia não tem qualquer respaldo biográfico, mas então qual seria a sua graça?

Exatamente dez anos antes, em 1984, o filme Amadeus, dirigido por Milos Forman, encenava a velha lenda de que o compositor Antonio Salieri teria sido o responsável pela morte precoce de Mozart. Não é uma ideia menos excêntrica, mas o filme a utiliza para além de uma ingênua expectativa cine-biografista: a lenda em si, na verdade, é matéria passiva para o desenvolvimento de um poderoso retrato da inveja, esta sim sempre oportunamente lembrada aos incautos como grande tema do filme.

Última página da carta de Beethoven à Amada Imortal não identificada

Do mesmo modo, a lenda proposta por “Minha Amada Imortal” talvez não merecesse preconceito em si mesma por ser extravagante – ela possui inclusive antecedentes: a famosa biografia Beethoven: Vida e Obra, escrita nos anos 80 por Maynard Solomon, por exemplo, possui toda uma seção para explorar o fundo ambíguo da relação psicológica de Beethoven com a cunhada. O notório problema da reputação do filme é que o seu trajeto até a revelação final é um desfile de lugares-comuns sobre música e sobre a figura do artista, o que não só não acrescenta nada, como em muitos casos consegue ser constrangedoramente o ingênuo oposto do que Beethoven representa. A cena em que Beethoven revela a Anton Schindler o conteúdo extra-musical da Sonata “Kreutzer”, por exemplo, provocando neste uma furtiva lágrima epifânica, contradiz a ideia essencial que Beethoven tinha de música, de algo muito mais elevado do que a mera subordinação a uma alusão sentimentalista (algo que ele ridicularizava). Sem falar, claro, no fato de Beethoven não ter sido exatamente bem-sucedido com as mulheres, ideia cuja força é alimentada em prol da dificuldade do mistério a ser decifrado durante todo o filme.

Mas se isso tudo é a lição de que a “licença poética” no cinema precisa superar o status de mera “mentira” na arte para ser bem aceita, penso que ainda há o que ser dito sobre a lenda central de Minha Amada Imortal – da identidade antagônica da Amada Imortal -, independente do caminho vulgar que o filme oferece para revelá-la ao final.

Jeroen Krabbé como Anton Schindler

Ao sugerir que Beethoven, um sujeito que em suas relações pessoais pagava alto preço pelos picos de sua bipolaridade, havia amado verdadeiramente a mulher que ele tentou destruir por tantos anos, não há apenas algo da retórica antitética do retrato renascentista do amor – composto sempre de extremos opostos que desafiam a definição, explorado com sucesso desde o dolce stil novo. Há também o elemento trágico da vida, que pode separar para sempre dois amantes apenas com um desencontro infeliz. E é aqui que entra um tema muito caro para a música: o da redenção por meio da arte. No filme, Anton Schindler visita Johanna Reiss porque está em busca da Amada Imortal ainda não identificada. E além da confirmação de que realmente a havia encontrado, ele descobre que Johanna nunca recebeu a carta a ela endereçada. O fato da carta que Beethoven escreveu a caminho de um encontro com Johanna, narrando sua dificuldade em alcançá-la por problemas ao atravessar uma estrada a carroça durante uma tempestade, não ter sido lida por ela gerou o conflito cerrado (à maneira trágica) de um desencontro nunca esclarecido entre os dois. Mas antes de enfim receber a carta pelas mãos de Schindler, Johanna conta que, mesmo depois de tantos anos de duros conflitos e disputas judiciais com Beethoven pela guarda do próprio filho, ela “fez as pazes com ele”. E essa conciliação havia sido desencadeada desde o evento que moveu Viena, a estreia da Nona Sinfonia em 1824. Como que sob a intervenção de um deus ex machina, depois daquele concerto ela não poderia odiar o autor daquela música, e foi a partir dali que acabou se encontrando com Beethoven em seu leito de morte, selando as pazes, etc.

Talvez o filme aqui seja ingênuo ao ligar a música com o caráter do compositor, coisa que devemos aprender a desligar se quisermos ouvir a música de Wagner, por exemplo. Mas se pensarmos que a música é capaz de submeter os sons a acontecimentos (no sentido físico mesmo) que emulam a essência da nossa subjetividade, podemos entender que Johanna, tão ligada a conflitos pessoais com Beethoven, pôde ter uma “catarse” emocional, pertinente em sua vida, diante da obra do compositor – a música ofereceu meios para libertar o seu espírito. Não por acaso, a Nona Sinfonia claramente encena em termos sonoros um longo caminho da tensão até a distensão – ou seja, como arte ela é capaz de instaurar um mundo em que esse caminho se prova possível. É só depois disso que Johanna recebe de Schindler a carta que deveria ter recebido há anos, o que apenas revela a verdadeira dimensão de toda uma vida perdida (“E que vida teremos!”, dizia a carta) por conta da tragédia do desencontro amoroso com Beethoven e suas consequências. Mas isso a experiência significativa (o que é mais do que a mera informação de um argumento em uma discussão) promovida pela música em si já tinha sido capaz de redimir, como ela mesma reconhecia.

É assim que o final do filme é que parece guardar o seu verdadeiro conteúdo – uma encenação dramática do poder de redenção da tragédia da vida por meio da arte aplicada ao que a vida e a obra de Beethoven representam -, e só a partir daqui ele se faz mais honestamente criticável (se entendermos que o resto fica abaixo da crítica). Se licenças poéticas em filmes não fazem bem ao serem adaptações preguiçosas nem de mau gosto, em “Minha Amada Imortal” o maior defeito está claramente na falta de maturidade para sustentar a revelação da sua surpresa final, mais do que a sua surpresa em si.

O tema da redenção por meio da arte é um tema que pode ser complexo, envolvendo essencialmente a relação Arte x Vida, mas nessa aplicação específica do filme resta ainda pensar a pertinência de enxergá-lo na Nona Sinfonia, mais do que em qualquer outra obra musical. Amancio dá uma valiosa ajuda aqui, em um dos primeiros posts do blog.


Este post tem 17 comentários.

17 respostas para “Licenças poéticas em um filme kitsch e a redenção pela arte”

  1. Leonardo, infelizmente nós, fãs de Beethoven, ainda estamos no aguardo por uma obra cinematográfica que seja minimamente razoável sobre a vida do grande mestre. Achei Minha Amada Imortal um filme de mau gosto, que só não se sai pior por conta das boas atuações (e que só não é tão medíocre que O Segredo de Beethoven). Mas achei interessante você ressaltar o ponto positivo (talvez o único) final do filme no post. Quanto à definição da “criação” da Kreutzer do filme, tive vontade de rir na hora.
    Se você quiser, pode passar no meu blog depois, fiz um post recentemente falando sobre a interpretação de Gary Oldman como Beethoven.
    Um grande abraço!

  2. Cla, é exatamente a minha opinião: O Segredo de Beethoven, que tem uma linda fotografia e boas atuações, tem um roteiro de quinta categoria. E minha relação com o Minha Amada Imortal é difícil de definir, porque também acho ruim demais, só que assisti recentemente depois de muito tempo e não pude deixar de pensar sobre a sugestão final do filme, de vincular a música com a ideia de redenção, e o quanto isso pode ser pertinente com a música de Beethoven e com a Nona Sinfonia, mesmo que no nível da dramatização do cinema.

    Gary Oldman estudou piano de verdade e pôde fazer cenas bem convincentes no filme. Foi um pouco excêntrico se pensarmos no testemunho de Czerny, que dizia que Beethoven – ao contrário do que poderíamos imaginar – tocava piano com muita elegância. Mas de qualquer forma é um bom ator (reconhecido como um dos melhores atores a nunca terem sido indicados ao Oscar).

    Vou visitar o seu blog sim!

    Um abraço!

  3. Aliás, outra coisa ridiculamente decepcionante em O Segredo de Beethoven é o quanto ele toma Amadeus como modelo. Amadeus é um grande filme, mas não acho que seja um filme pra fazer escola na abordagem cinematográfica da música.

    E uma página que faz um bom panorama de filmes sobre Beethoven é esta: http://www.lvbeethoven.com/Fictions/FictionFilmsImmortalBeloved.html. “Un grand Amour de Beethoven”, de Abel Gance, por mais brega, tem pelo menos uma ótima cena retratando a descoberta da surdez de Beethoven.

  4. Olá, Leonardo!

    Quanto ao Segredo de Beethoven, foi bem aquilo que eu postei lá no blog. Achei a interpretação do Harris um pouco exagerada sim, embora ele, no geral, seja um ator muito competente. Existem bons atores coadjuvantes, mas alguns pecam (não gosto muito da que interpretou a Anna Holtz). A fotografia eu tenho que concordar, é realmente excelente!
    Minha Amada Imortal é bem aquela coisa hollywoodiana, não gostei desde a primeira vez que eu vi. E sim, concordo que o papel de Beethoven não ajudou muito no desempenho do Gary Oldman. Mas seu post ficou excelente, você extraiu a informação certa no momento certo do filme (algo que seria impossível na cena da Kreutzer, infelizmente)!
    Quanto ao detalhe do Beethoven no piano, certa vez li em uma biografia dele que seu semblante era muito sereno quando tocava. Achei isso curioso, porque acreditava que ele fosse mais agressivo. Como sempre, ele nos surpreende!
    Em relação ao que você colocou lá no blog, concordo que a Inglaterra conte com muitos bons atores! Depois comente sobre suas ressalvas em relação ao documentário Eroica, fiquei curiosa (pode responder aqui mesmo!)!
    Por fim, confira Beethoven lives upstairs sim, eu até achei esse filme nesse site que você me passou no comentário acima (vou ver o filme brega, pode deixar, haha!). É coisa bem simples, mas acho que você vai gostar!
    Meus agradecimentos por ter passado lá no blog e ter lido o post! :)
    Um grande abraço e bom final de semana!

  5. Senhores,

    Desculpe a sinceridade, mas a vida de Beethoven não é interessante para um filme, como a de Mozart também não foi. Amadeus é um ótimo filme pois conta uma mentira, algo que foi muito válido na Minha Amada Imortal. Infelizmente o resultado não deu certo.

    Eu gostaria de ver um filme sobre o compositor negro chamado Saint-George (“Mozart Noir”) do século XVIII, por exemplo. A vida dele foi riquíssima, muito mais interessante que a solidão castrada de Beethoven.

  6. Para não ser totalmente do contra, o melhor filme sobre Beethoven é um documentário ficcional chamado Eroica feita pela BBC. Imperdível.

  7. Cla,

    Em Minha Amada Imortal ainda há o detalhe de os instrumentos soarem como instrumentos modernos e não de época, e na cena em que Beethoven toca “Für Elise” (valha-me Deus) com o sobrinho ele está de pé, mas a música soa obviamente com o pedal sendo acionado. São umas ingenuidades que o tornam essa coisa comercial e hollywoodyana mesmo, não dá pra extrair muita coisa.

    Carlos,

    Eu nunca entendi essa sua opinião sobre a vida de Beethoven não render um filme. Como a vida de um artista relevante que apanhava do pai bêbado na infância, era um rebelde anti-aristocrata em meio ao mecenato da nobreza, testemunha engajada na ascenção de Napoleão, músico que ficou surdo (!), que de fato tinha um temperamento no mínimo bipolar, que se envolveu em uma disputa judicial maluca pelo sobrinho, que foi infeliz no amor, não ser uma vida interessante pra um filme? Se isso for uma ressalva de que a vida do artista costuma ser sobrevalorizada à compreensão da sua obra, eu concordo totalmente e nunca me interessei tanto assim por biografias apenas. Mas não faz sentido pra mim pensar que essa vida não tenha matéria de interesse ao cinema, por mais que isso possa soar um pouco sentimentalista.

    Em outro momento eu comento sobre as ressalvas ao filme sobre a Eroica.

    Abraços.

  8. Oi Leo,

    Você mesmo respondeu.

    “pai bêbado na infância” – Meio banal, não é?

    “rebelde anti-aristocrata” – Ma non tropo. Haja vista as dedicações de suas obras(“Foi por causa do dinheiro!” você pode dizer. Não estou certo. De alguma forma era seu mais importante público.) Mas é verdade, ele sabia que valia muito mais que todos eles.

    “músico que ficou surdo” Isso sim uma tragédia. Mas não ocorreu de uma hora para outra, levou tempo a deterioração auditiva. Mas foi o que o afastou do público como músico (acho que após 1812) e de algum modo, dos saraus aristocráticos. Enfim, a surdez acaba matando o músico Beethoven, mas não atinge, em termos de qualidade, o Beethoven compositor.

    “judicial maluca pelo sobrinho” e “infeliz no amor” É verdade, um bom roteirista pode fazer milagres com esses temas.

  9. O maior risco da biografia de Beethoven passar por desinteressante é ela parecer apelativa, banal e barata. Mas inacreditavelmente é biografia e não ficção. Vidas desinteressantes, talvez a de Mendelssohn, que constantemente julgam que teria sido maior compositor se tivesse tido uma vida um pouco mais trágica (o que é uma maldade), mesmo com a morte aos 38 anos.

  10. E sobre essa relação dele com a aristocracia, penso que é justamente uma relação complexa e ambígua também de interesse. Ele repudiava a ideia da nobreza herdada pelo nascimento, mas acho que ainda acreditava em um tipo de nobreza meritocrática, na qual se incluía. Daí ele achar espaço no meio daquela nobreza em que acreditava ter o seu lugar, ao mesmo tempo em que desprezava o modo como ela era normalmente reconhecida. E de um lado tinha pessoas a quem verdadeiramente estimava ali, enquanto de outro acreditava nos ideais humanitários que acabariam derrubando aquela mesma nobreza e aquelas mesmas pessoas (vide o caso do arquiduque Rudolph e a Sonata Les Adieux). É tudo muito ambíguo e curioso.

  11. Ei, não pensem que não me interesso pelo homem, li duas biografias sobre ele e um livro de cartas. Todos os temas citados aqui foram importantíssimos para sua música. No entanto sao temas que excitam musicologos e não cinéfilos . Não sei quem poderia ter dito uma besteira dessa sobre Mendelssohn, já que sua importância como compositor já havia decaído antes dele morrer. Ele havia perdido aquele vigor tão importante na sua juventude . Olha aí um tema interessante. Como suas obrigações como regente e sua relação com a sociedade cultural inglesa levaram a essa decadência como compositor.

  12. Eu e Carlos temos pontos de vista totalmente opostos sobre biografias, pois as vidas de Mozart e Beethoven são provavelmente as mais interessantes e fascinantes que eu conheço.

  13. É triste de fato constatar que Beethão (como diria o Leonardo) não possui ainda um filme à altura de sua grandeza.

    Mozart, por outro lado… Essas duas resenhas do grande Roger Ebert fazem justiça ao filme (as duas são igualmente iluminadoras, e distam duas décadas uma da outra):

    Aqui a primeira, feita logo depois do lançamento do filme:

    http://rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/article?AID=/19840101/REVIEWS/401010306

    Aqui a segunda, feita por ocasião do lançamento do “Director’s Cut”:

    http://rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/article?AID=/20020414/REVIEWS08/204140301/1023

  14. ABSOLUTAMENTE MARAVILHOSO ESTE BLOG EUTERPE, DO QUAL SÓ AGORA TIVE CONHECIMENTO, ALIÁS, POR ACASO, ENQUANTO PROCURAVA VALSAS PARA COMPOR UM CD. ESPERO QUE O MANTENHAM SEMPRE NESTE ALTO NIVEL. AGORA MESMO O ESTAREI RECOMENDANDO A AMIGOS AMANTES DA BOA MÚSICA.

  15. Acho que você está enganado. O filme tem a ótima cotação 7.5 no site IMDB e foi muito bem aceito pela crítica.

  16. Alipio,

    Seu argumento é devastador, acho que vou deletar o post.

    Falando sério, este texto traz vários pontos, alguns deles evidenciando a mediocridade notória do filme (reconhecida em especial no meio musical), mas outros pontos explorando uma dialética que o filme sugere e que é muito promissora. Então não sei em que sentido a nota do IMDb me faz estar enganado: em qual ponto específico?

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