Caros leitores, gostaria de convidá-los a voltarmos quase 650 anos na história e nos situarmos na imponente catedral gótica de Notre-Dame de Reims, patrimônio da humanidade pela Unesco, distante 144 quilômetros da capital francesa. Lá foi estreada a chamada Messe Nostre-Dame, uma obra-prima da música sacra composta pelo poeta, diplomata, músico e padre Guillaume de Machaut (c. 1300-1377).
Chamado de “o romântico do século XIV” pelo musicólogo alemão Heinrich Besseler em Die Musik des Mittelalters und der Renaissance (1931) e de “o último poeta-músico” pelo francês Roland de Candé em sua Histoire Universelle de la Musique (1978), Machaut nos deixou uma fascinante obra manuscrita e ilustrada que se divide em duas partes: a obra poética, com cerca de 400 poemas, e as composições musicais agrupadas por forma e gêneros. Muitos dos poemas de Machaut não têm música. Para ele, escrever um poema era algo sempre preliminar e mais importante à composição de sua música. A maior parte de seus poemas líricos trata do chamado amor cortês, referindo-se à submissão a uma dama ou ao sofrimento e alegrias do poeta.
Machaut foi um mestre em elaborar rimas planejadas em esquemas, o que o tornou precursor dos grandes retóricos do século XV. Observa-se no compositor uma preferência pelos textos profanos franceses. Praticamente todos os seus motetos são submetidos ao princípio isorrítmico, que desempenhou um papel importantíssimo na música da Ars nova (esse princípio unificador baseia-se em estruturas rítmicas periódicas). Além disso, usam bastante o hoquetus – recurso que consiste em compartilhar uma linha melódica entre duas vozes. Donald Grout e Claude Palisca, em sua History of Western Music (1960), registram que o mestre acrescenta nessas peças um elemento progressista ao tender a um maior laicismo e optar pelo incremento da tensão e pela maior complexidade rítmica.
A Messe Nostre-Dame constitui um modelo do contraponto medieval. É a única peça de Machaut com uma função estritamente litúrgica e o maior trabalho musical que compôs, sendo considerada a primeira missa completa que se conhece escrita por um mesmo autor. A obra existe copiada em cinco manuscritos. Quatro deles estão na Bibliothèque Nationale em Paris, enquanto o quinto está atualmente em Nova York, numa coleção privada. Este é o único manuscrito que traz o título Messe Nostre-Dame.
Com essa composição, Machaut rompeu com o costume de selecionar fortuitamente, de várias fontes, as diferentes partes da missa a serem interpretadas durante o serviço religioso – o interessante conjunto conhecido pelo nome de Messe de Tournai é um importante exemplo dessa tradição. O ordinário da missa passa, com a Messe Nostre-Dame, a ser tratado numa unidade musical, com homogeneidade estilística a partir de células melódicas e rítmicas características.
A obra tem sido objeto de grande interesse desde o século XX por ter inaugurado uma nova era na música. Para alguns autores, trata-se do representante mais importante da música medieval, coroando toda uma época. É a mais antiga missa polifônica em quatro vozes conhecida. O compositor adicionou uma quarta voz (contratenor) às três vozes que eram habituais nas obras polifônicas da época. Divide-se em seis partes: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei e Ite missa est. O Kyrie, o Sanctus, o Agnus Dei e o Ite missa est são isorrítmicos, próximos aos motetos, ainda que todas as vozes cantem o mesmo texto.
Machaut: Messe Nostre-Dame: Kyrie (Kyrie eleison)
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/07/Machaut-Kyrie-Kyrie-eleison.mp3|titles=Marcel Pérès – Ensemble Organum – Harmonia Mundi]Machaut: Messe Nostre-Dame: Gloria (Gloria in excelsis Deo)
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/07/Machaut-Gloria-Gloria-in-Excelsis-Deo.mp3|titles=Marcel Pérès – Ensemble Organum – Harmonia Mundi]O Gloria e o Credo não são isorrítmicos, mas adotam notavelmente o estilo do conduto (forma em que a polifonia mantém a unidade e a inteligibilidade do texto, entoando num contraponto mais contido e obedecendo a uma regularidade métrica e estrófica, sem base no cantochão, em oposição ao caráter polifônico do moteto), com as caudae sem texto, e terminam ambos num longo Amen em vocalise – verdadeiras composições de vanguarda (áudios abaixo).
Machaut: Messe Nostre-Dame: Gloria (Amen)
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/07/Machaut-Gloria-Amen.mp3|titles=Marcel Pérès – Ensemble Organum – Harmonia Mundi]Machaut: Messe Nostre-Dame: Credo (Amen)
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/07/Machaut-Credo-Amen.mp3|titles=Marcel Pérès – Ensemble Organum – Harmonia Mundi]Pontuando a polifonia e contrastando com sua complexidade, como destaca Candé, grandes acordes – sobre os quais o discurso musical repousa – parecem sustentar o edifício como os pilares das catedrais. O sentimento harmônico que essa verticalidade traduz se exprime de forma surpreendente numa curta passagem do Credo – quando uma série de acordes em valores longuíssimos (oito vezes os valores precedentes) interrompe o ritmo da composição com as palavras Ex Maria Virgine (áudio abaixo).
Machaut: Messe Nostre-Dame: Credo (Ex Maria Virgine)
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/07/Machaut-Credo-Ex-Maria-Virgine.mp3|titles=Marcel Pérès – Ensemble Organum – Harmonia Mundi]Outras passagens marcantes no Qui ex Patre, no Et in terra pax hominibus e no Jesu Christe (início e final do Gloria) – ou ainda as dissonâncias que sublinham a palavra Crucifixus (áudio abaixo) – revelam uma notável maestria de Machaut nas possibilidades dramáticas da música polifônica.
Machaut: Messe Nostre-Dame: Credo (Crucifixus)
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/07/Machaut-Credo-Crucifixus.mp3|titles=Marcel Pérès – Ensemble Organum – Harmonia Mundi]No século XVIII, o pesquisador Anne-Claude-Philippe de Tubières-Grimoard de Pestels Levieux de Lévis de Caylus, mais conhecido como conde de Caylus (1692-1765), em sua Premier memoire sur Guillaume de Machaut, poete et musicien dans le XIVe siecle (1753), sugeriu que a Messe Nostre-Dame teria sido composta para a coroação de Charles V de Valois, o Sábio (1338-1380), em 1364, o que passou a ser replicado pelos historiadores.
Recentes pesquisas, no entanto, revelam – graças à análise dos temas em cantochão usados na parte para tenor – que trata-se, na verdade, de uma obra escrita para uma festa em homenagem à Virgem Maria – ver Daniel Leech-Wilkinson: Machaut’s Mass: an Introduction (Claredon Press, Oxford, 1990) e Anne Walters Robertson: “The Mass of Guillaume de Machaut in the Cathedral of Reims”, in Plainsong of the Age of Polyphony (Cambridge, 1992). As quatro festas marianas mais solenes são a da Natividade da Virgem (8 de setembro), a da Purificação (2 de fevereiro), a da Anunciação (25 de março) e a da Assunção (15 de agosto). Não se sabe exatamente em qual destas festas teria sido executada a missa de Machaut.
Além disso, uma miniatura da época mostra Machaut assistindo, no coro, à coroação do novo rei da França. Candé defende que, se ele tivesse composto a missa durante o pouco tempo que separa a morte de Jean II da sagração de Charles V, para embelezar a cerimônia, provavelmente teria feito questão de participar de tão solene execução e não teria deixado de relatá-la em seus escritos, como sempre fez nas menores circunstâncias.
Por meio de uma análise harmônica da missa, o pesquisador Daniel Leech-Wilkinson (King’s College, London) demonstrou que Machaut deve ter composto sua obra-prima por volta de 1363, ligeiramente antes ou depois do Voir Dit, um pérola literária, pictórica e musical do amor cortês. Assim, num último ato de humanidade no crepúsculo de sua vida, o cônego da catedral de Reims, para quem toda a criação seria impossível sem o amor, teria desejado render um tributo final à fé compondo duas obras-primas: uma devotada ao amor de uma mulher e outra à Mãe de Deus.
Por suas dimensões, por sua unidade, com células melódicas e rítmicas percorrendo toda a obra, por sua força expressiva, pela homogeneidade de sua escrita, a missa de Machaut se apresenta, indubitavelmente, como um dos grandes monumentos da história da música. No vídeo abaixo, a missa é apresentada integralmente pelo Ensemble Gilles Binchois, sob a direção de Dominique Vellard.
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Excelente post….. Parabéns :)
Prezados,
Acabo de assistir ao vivo (nesta tarde) à Missa de Notre Dame de Machaut no Convento de São Francisco de Olinda (PE), apresentada magnificamente pelo renomado Ensemble Musica Nova, de Lyon (França).
O impressionante é que isso ocorre logo após ter publicado o post acima dedicado especialmente a esta obra-prima… A felicidade foi imensa! Uma experiência ímpar na vida.
Mais detalhes sobre o conjunto:
http://www.musicanova-lyon.fr/
Sua agenda nos próximos dias:
06/08- Master-class à Olinda (Pernambuco)
Convento São Francisco “ – X° Encontro de Música Antiga de Recife”
07/08- Concert à João Pessoa (Pernambuco)
Salle de concert : “Igreja São Francisco” – 20h00
10/08- Concert à Rio de Janeiro (Rio de Janeiro)
“Conservatório Brasileiro de Música” – 20h00
11/08- master-class à Rio de Janeiro (Rio de Janeiro)
“CBM – Conservatório Brasileiro de Música” 10h30
11/08- Concert à Niterói (Etat Rio de Janeiro)
“Basílica Nossa Senhora Auxiliadora” – 18h00
Legal; gosto de música antiga, quer dizer renascentista ou anterior,, e também num certo contraste, alguns estilos modernos como música eletroacústica. Menciono esses dois para dizer que gostaria de mais postagens tanto de música antiga como apresentando mais estilos contemporâneos dos que existem hoje, são duas áreas que tem ainda pouca postagem no blog.