Ontem a Royal Opera House de Londres apresentava a sombria montagem de David McVicar do Rigoletto de Verdi, com regência de John Eliot Gardiner, no seu belo auditório principal no Covent Garden – e ao mesmo tempo a transmitia para centenas de cinemas do mundo todo. Eu, com minha camiseta e calça xadrez, saí uns 20 minutos antes de casa e fui ao cinema assisti-la, indiferente à segregação cultural do terceiro mundo.
Com o privilégio de acompanhar o que se tem feito em ópera na Europa (e me adiantando aos que ainda devem acompanhar o resto da temporada até o fim do semestre nos cinemas), faço umas notas da expectativa do operário comum em frente ao Rigoletto e o que foi mostrado ontem.
Rigoletto
Dimitri Platanias, Zhengzhong Zhou e Pablo Bemsch com o coro em Rigoletto
O Rigoletto é um caso especial de operística trágica com elementos bufônicos: estreado em 1851 e considerado a primeira obra-prima do período intermediário da produção de Verdi, estão lá o bobo da corte, o nobre galanteador e seu séquito libertino e oportunista, mas todo o desprendimento de um mundo hedonístico termina cobrando o preço das irremissíveis preocupações geradas pela procura da felicidade. Se “non v’ha amor, se non v’è libertà” (“não pode haver amor, se não existe liberdade”), como afirma o Duque de Mântua na primeira cena, os laços que nos tornam humanos também acabam fatalmente cortados e a crise de uma identidade egoísta logo se instaura, mesmo que disfarçada pelas máscaras dos prazeres. A expressão desse drama ganha tons verdadeiramente shakesperianos na estória inspirada pela peça Le roi s’amuse de Victor Hugo, e uma nova montagem da ópera enfrentará sempre uma adequação tanto dramática, com a progressão desse dualismo entre a vida anárquica dos prazeres e a vida fiel das afeições, quanto musical, com personagens articuladas a partir dos mais diversos gêneros em um mesmo palco – o bufão dividido entre dois mundos, o herói desmascarado, a donzela desprotegida de um mundo que a torna um cordeiro sacrifical, o assassino de princípios e a golpista sedutora com seu lado metade-compassivo.
Transmissão
A transmissão de ontem nos mostrou um pouco das “tendências” atuais das casas de ópera, com o investimento em uma concepção cênica de vanguarda e recursos modernos de atração e formação do público de ópera, que foi incentivado a tirar seus celulares dos bolsos e a interagir pelo twitter! (com alguns tweets sendo selecionados e mostrados nos intervalos). A iniciativa dos ricos e empolgados comentários do anfitrião da transmissão e das entrevistas com diretores e intérpretes do espetáculo antes e durante o intervalo da ópera também foi muito bem sucedida, conseguindo ir além do mero enchimento de linguiça (chegando mesmo a alguns possíveis spoilers).
Montagem
Dimitri Platanias, Ekaterina Siurina, Vittorio Grigolo e Chritine Rice
A montagem de David McVicar, que tem sido adotada pela Royal Opera House desde 2001, coloca todas as cenas em um mundo sombrio: mesmo a primeira cena no palácio do Duque de Mântua, muitas vezes retratada como uma festa luxuriosa em um palácio reluzente, aparece como um submundo de perversões insaciáveis – o que se torna a própria definição da energia que move o Duque de Mântua. Mulheres com os seios à mostra, nu frontal masculino (!) e todos os sete pecados capitais tornaram mesmo a presença da filha do Conde Monterone no palácio – em algumas montagens algo voluntário – tensa e forçada. Essa ambiência em geral acentuou todo o mal presente no enredo, o peso da maldição inicial que o enquadra e ainda definiu ambiguidades: o dueto E il sol dell’anima entre Gilda e o Duque de Mântua é mais sincero e bem menos pitoresco, e mesmo o Rigoletto ganha uma aparência que sempre nos lembra da sua degradação.
Música
Entre os nomes mais reconhecíveis da produção, não é de hoje que John Eliot Gardiner, dos mais celebrados regentes HIP, dirige óperas do repertório romântico. E no Rigoletto, como poderíamos esperar, ele simplesmente afunda o pé quando a música permite, como no final do dueto Sì! Vendetta, tremenda vendetta! que encerra o segundo ato. Já o barítono grego Dimitri Platanias está presente pela primeira vez em uma temporada da Royal Opera House, e pôde mostrar a voz mais madura e convincente do dia, com uma visível matiz expressiva na ária Cortigiani, vil razza dannata. Com um caráter sempre mais circunspecto, Platanias personificou um Rigoletto muito mais ferino – como na comparação feita pela própria personagem entre si e o assassino Sparafucile – do que divertido. Infelizmente, na exasperante cena final o seu desempenho foi muito comedido, ainda mais depois do que já se viu em interpretações antológicas como a de um Leo Nucci.
O Duque de Mântua foi o tenor-estrela Vittorio Grigolo, que teve direito a todo um profile no intervalo da ópera, mostrando-o como o jovem pop star que vai aos ensaios de ópera pilotando sua moto esportiva. Sua voz não é estentórea como a de um Jonas Kaufmann e seu vibrato é um pouco curto, mas ele acaba incorporando um ar convencido realmente dedicado a dar brilho à performance. A ária Parmi veder le lagrime teve brilho e sutileza e arrancou muitos aplausos do público. A Gilda de Ekaterina Siurina foi um caso à parte: se a sua leveza e agilidade de fato convenceram como a imaculada filha do Rigoletto, a defasagem de potência da sua voz (e uma projeção do que alguns chamam de “canto palatal”) a fizeram ser ultrapassada pelos seus pares. Como compensação, a coloratura do dueto romântico E il sol dell’anima com Grigolo, em que Verdi escreve uma música esplêndida, como de dois pássaros em voo intercruzado, foi algo de notável, pelo que Siurina mostrou um nível avançadíssimo de articulação e sofisticação, especialmente em seus pianissimi. Ao fim, na cena final os seus últimos suspiros foram impecáveis, apesar dos aplausos pouco efusivos.
A montagem teve ainda a timbradíssima voz de Matthew Rose como Scarafucile, a sempre excelente presença cênica de Christine Rice como Maddalena, e um razoável Gianfranco Montresor como Conde Monterone.
Cinemas
O Rigoletto é uma ópera de imensa riqueza dramática, mas mesmo assim escrita para a pronta resposta do público. Por isso o recurso de contarmos com boas transmissões das grandes montagens de casas de ópera como a Royal Opera House ou o MET é inestimável e a vida cultural operística no Brasil agradece. A Rede Cinemark exibe ainda Cendrillon de Massenet, Così Fan Tutte de Mozart, Il Trittico de Puccini e MacBeth de Verdi entre os próximos dias e o mês de maio nos cinemas de várias cidades brasileiras. Clique aqui para saber mais e vá se programando.
olá staff euterpe !
queria aproveitar a ‘deixa’ d’este post do léo para fazer um pedido pessoal , mas que pode ter alguma valia pública – risos . mas antes algumas palavras exordiais :
bem , eu nunca fui muito fã de qualquer gênero de obras vocais – missas , motetos , lieds , óperas e afins – tenho ‘pouco’ [quase nenhum] conhecimento sobre elas . minha subjetividade sempre me conduziu pela vertente instrumental apenas . quando encontrei o site de vocês , estavam em meio àquele sorteio dos convites para a ópera do bizet no qual fui um dos contemplados . foi a primeira vez em que atendi a algo do tipo ; fiquei feliz … e com medo também !
* * *
o tempo passou e fiz algumas reflexões que não caberiam aqui , senão reduzidas . embora nunca tenha sido hábito meu negativar o que não é de meu gosto … percebi que não há razão para sequer ‘não gostar’ de certas coisas . e me resolvi em ‘não gostar’ somente d’aquilo que merece desafeto : violência , indiferença , ciúme [um sentimento corrosivo] , e coisas de semelhante jaez . música é música , ponto . não há o que não gostar … me basta ouvir .
daí – com isso em mente – e sempre lendo os posts de vocês , me cresceu uma curiosidade sobre essa ala musical que negligencio há tempos . o post sobre o requiem de mozart me levou a ouvi-lo ; n’a canção mais assustadora de schubert’ me arrepiei ; e n’um post sobre vivaldi , a ária ‘cum dederit delectis suis somnum’ me paralisou de todo !
acabei desistindo de minhas barreiras com o opus vocal . e creio que devo grande parte d’essa superação a vocês aqui do euterpe – obrigado ! não poderia imaginar maior incentivo que um passe livre para ópera de bizet , pr’além de posts elucidativos e atraentes sobre o assunto … novamente , obrigado !
* * *
ultimamente , ouvi algumas missas de mozart e umas poucas cantatas de bach . mas ‘sei’ que ainda há muito a se descobrir , só ‘não sei’ onde está ! e é aqui onde deixo esse meu blablabla e faço o pedido inoportuno :
vocês poderiam fazer um post estilo aqueles livros : 101 lugares/discos/seilá que você precisa conhecer antes de morrer ?, indicando algumas obras vocais ‘especiais’ de épocas diferentes , e o mais importante : fazendo aquele balanço de gravações e colocando o ‘selo euterpe de qualidade’ nas que mais valem a pena – risos !
só faço esse pedido porque penso que não seria algo tão árduo pra vocês que , de antemão , já possuem esse conhecimento e decerto já ouviram bastante música . e como já disse , acho que seria de grande valia não só para mim , mas para todos os que estão confiando seus primeiros passos na música e desejam conhecer mais obras vocais … mas se estiver fora de cogitação , qualquer indicação aqui no rodapé já está valendo ! ^^
that’s all folks ! aquele abraço … \o/
e que o fim de semana que chega seja agradável a todos .
Deve ser muito legal poder participar de uma ópera…….:)
eu gostaria de um dia ir em uma :)
Os atores são formidáveis, interpretam os papéis com maestria, como se incorporassem o personagem :)
Tbm tivemos apresentação no Cinemark aqui da minha cidade. Só não fui por ter que trabalhar naquele horário. Nos conte mais detalhes, Leonardo! Deu a impressão de estar presente no Teatro ou ficou longe disto? E quanto ao som? Perfeito? Muito alto? Obrigado!
Lúcio, seu comentário sincero e interessado merece uma resposta. Qualquer amante ou conhecedor de música poderia fazer pra você sem problemas uma lista de dez, cem ou até mil obras inesquecíveis, indispensáveis ou incontornáveis. Mas quem deve chegar a essa lista é você mesmo, com seu próprios ouvidos, cabeça e coração. Então vá a concertos, assista aos programas na tevê, compare as versões na internet, converse com músicos, matricule-se num curso de férias e escute o que a turma tem a dizer. Você vai gostar, vai fazer amigos e vai descobrir muitas obras do seu gosto, o de agora e o de depois.
Se alguém perguntasse como se aprende a degustar vinhos, a resposta seria: com o saca-rolhas. El camino se hace al caminar. Happy new ears!
Lucio,
Sempre muito bom receber os seus comentários, e incrível saber da sua excursão pela música vocal desde aquela Carmen 3D! Eu também tive minha fase instrumental, acho mesmo que a nossa cultura de “voz de garganta” da música popular nos dá uma primeira resistência inevitável com o canto lírico (depois é que você descobre que também pode haver aquela técnica na música clássica em certos repertórios). Mas aqui a história de cada um é certamente muito pessoal, justamente pela variedade de gêneros que emprestam o recurso vocal. Reconhecer essas variantes pode ajudá-lo a identificar o caminho mais familiar, tanto entre formas corais, camerísticas e solistas, gêneros sacros e seculares, dramáticos e líricos, como de tal ou tal escola de escrita para o canto, tal ou tal período histórico, com tais ou tais intérpretes, etc. No meu caso o meu primeiro contato com a música vocal se deu pelos lieder: as seis canções do Op. 48 de Beethoven e depois os lindíssimos Lieder Wesendonck do Wagner. Em certos gêneros se vai descobrindo o quanto a função do texto que se canta constitui o sentido da obra e o quanto o conhecimento do libretto pode, ou não!, mudar totalmente o nível da sua sensibilidade por ela. Outra obra de que me lembro em uma fase inicial é a Missa em Si menor de Bach, que sempre me impressionou muito, quando a música coral na verdade nunca soou estranha pra mim. E gostei de saber da sua conquista de uma postura mais aberta às coisas: de fato, além da distinção de que não é porque desgostamos de algo que esse algo é necessariamente ruim, pode haver também a de que nós não precisamos, em um vício de opinião, decretar prontamente o nosso DESgosto por tudo aquilo de que (talvez ainda) não gostamos. Mantenha-nos atualizados das suas descobertas!
Heber,
Em que cidade você mora? A ópera é um espetáculo de impacto imenso, fique de olho pra ver se aparece alguma montagem perto de você! Ou mesmo essas transmissões, que também são muito bem feitas!
Mario,
Deu pra notar que a filmagem foi toda planejada, com alguns focos em momentos chave e com uma cobertura mais fílmica das cenas. A imersão no espetáculo ficou bastante eficiente, sendo que nos intervalos nós tínhamos uma visão completa do auditório, acompanhando toda a organização do evento. A qualidade do som deve ser igual nas várias salas por pertencerem à mesma rede de cinemas, ele é perfeito sim, e eles conseguem sincronizar uma legenda em português também (o que hoje em dia é comum nos teatros de óperas e certamente acontecia em inglês lá em Londres, mas nesse caso houve essa conversão automática para o português que funcionou muito bem).
Leonardo T. Oliveira, eu moro em São Paulo – SP – mas tenho trabalhado muito e até tarde e não tenho tido tempo de ir a lugar algum…..
Tenho visto concertos e óperas pela TV, pela internet e pela rádio, é o mais perto que consegui chegar………… :)
Mas um dia vou conseguir ver ao vivo um concerto ou ópera…..
Excelente post esse, parabéns
Ópera no cinema, ótima idéia. Já vi a Valquíria transmitida ao vivo ano passado. Entrei no cinema às 13:30 e saí às 19:00. Infelizmente foi a última (última mesmo) ópera transmitida aqui em Recife. Mas não podemos reclamar, hoje a internet democratizou tudo (até quando?). Há toneladas de Gigabites pra todo mundo baixar. Na minha época eu gastava quase um salário mínino (~100 reais naqueles dias) em 2 cds. Hoje minha média é de 100 cds e 10 DVDs por mês a baixíssimo custo. Mas o conhecimento das obras é medido pelas quantidades? Não, mas é o primeiro passo. Passo que era impossível. Agora tudo é diferente. hoje podemos (não eu, pois Recife abomina ópera) desfrutar Rigoletto neste nível de produção sem viajar para Londres.
Hoje não há desculpa para ignorância.
Hoje vi Così fan tutte no Cinemark. Sensacional!
Só posso agradecer ao Leonardo por uma descoberta tão boa.
Pena que seja tão caro. Felizmente (ou ‘pelo menos’) sou estudante, pago ‘só’ a meia-entrada. Mas faz sentido quando entramos no cinema e não vemos nem 10 pessoas…
Leonardo, no site do Cinemark é mostrada a programação só até maio. Eles só vão passar até aí ou vai divulgando a programação com o tempo mesmo?
Abraços!
André,
Fico muito feliz que o post tenha valido como recomendação prática, a ideia era essa mesma, pra que quem não assistiu a esse Rigoletto não ficasse de fora da conversa.
A exibição das montagens da Royal Opera House nos cinemas é um projeto à parte, parece que algumas transmissões ficam abertas a serem compradas pelos cinemas, mas parece que se trata mesmo de uma temporada 2011/2012 que acaba em maio, e as óperas exibidas pela Cinemark são as mais clássicas disponíveis (estou vendo aqui, por exemplo, que alguns cinemas pelo mundo vão transmitir no próximo dia 16 o balé “Le Fille mal gardéé” de Ferdinand Hérold, que nenhum cinema brasileiro irá transmitir). O site da Royal Opera House Cinema é este: http://cinema.roh.org.uk/.
Mas transmissão de ópera pelo cinema está cada vez mais comum, já tivemos transmissões não só da Royal Opera House, mas do MET também.
Abraços!
haha , :D
agradeço a atenção léo e mr. monteiro !
desde minhas últimas palavras aqui já ouvi algumas peças ;
comecei pelo schubert … e foi um baque a partida ‘súbita’ do dieskau tão logo que o conheci . também ouvi algo vocal do mahler ; me encantei especialmente com sua 8ª sinfonia – symphony of a thousand – e ouvi uma dezena de gravações d’ela . gostei da maneira suave e ‘ponderada’ que o abbado e o maazel a conduzem – mas que não chega a ser quase ‘quebradiça’ como acontece com o tempo do chailly – e gosto também da condução ‘espalhafatosa’ [se comparada as citadas] do bernstein … ele deixa tudo muito empolgante ! *-*
outra coisa : fiquei ainda mais espantado com a qualidade da missa fúnebre de mozart ao ouvir a de alguns outros compositores – brahms , verdi , lloyd-webber , etc . é incrível o que ele conseguiu fazer dentro d’aquele modelo e cartilha . a viva , densa e ardorosa sublimidade que vibram em cada passagem : o rex tremendae , o confutatis , o lacrimosa … nunca pensei que fosse possível criar contrastes tão bem delineados entre belo |e| belo ! ^^’
vou procurar :
‘os lindíssimos Lieder Wesendonck do Wagner’ …
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só me ficou uma dúvida , @MONTEIRO :
o que é um ‘curso de férias’ ? o_O’
Adoro o Rigoletto!
E Verdi é o italiano oitocentista mais genuinamente conectado com os ares românticos mais legítimos, sendo esta ópera uma dos maiores momentos nesse sentido. E a música de Verdi, ah!, é um primor. Tive uma espécie de êxtase artístico-músico-sensitivo quando li uma entrevista do Fischer-Dieskau na qual ela dizia que, em sua opinião, Verdi era o Schubert da ópera, ou algo assim, e fez todo o sentido! Nenhum outro italiano operista, daquele século, se compara a ele (Bellini, talvez… e olhe lá).
Uma pena que aqui em Maringá tenham parado as transmissões do MET. Estava sendo muito bom. A última que vi foi um fantástico Don Giovanni. Adoraria ter visto esse Rigoletto. :-/