19abr 2017
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Verdi, leitor de Shakespeare: I. Macbeth

Shakespeare, que quiçá sentiria engulhos da frescura romântica
Shakespeare, que quiçá sentiria engulhos da frescura romântica

Quem tiver a curiosidade de conhecer óperas baseadas nos trabalhos de William Shakespeare deve lidar com o fato de que nada menos do que vinte e três de seus trabalhos já foram musicados – e não ficarei surpreso se essa conta estiver defasada. Compositores dos mais românticos, sobretudo, idolatravam o inglês, e talvez uma obra tão interessante dessa época como o Roméo et Julliete (1839) de Berlioz, com sua forma peculiar – uma sinfonia dramática? Uma suíte coral? Uma cantata? –, seja significativa de como era um desafio converter obras de teatro excepcionais em música. Por que, então, a insistência em compor para peças tão complexas se é sabido de antemão que “não vai ficar a mesma coisa”? Creio que o mesmo Berlioz, que como já vimos aqui teve uma relação intensa com a obra do poeta inglês, responde em suas memórias: Ao cair de improviso sobre mim, Shakespeare me fulminou; ao abrir-me o céu da arte com um fragor sublime, seu relâmpago iluminou para suas profundezas remotas. Reconheci a verdadeira grandeza, a verdadeira beleza, a verdadeira verdade dramática. Uau.

Desse modo, o século XIX foi instado a recuperar Shakespeare, ainda que fosse dentro de sua visão peculiarmente ególatra e melodramática. No que se segue, quero chamar atenção para outro compositor que tinha o mesmo entusiasmo por Shakespeare, ainda que com certeza de modo mais sereno, e, por que não dizer, calculista: Giuseppe Verdi. Tendo escrito três óperas a partir de seu ídolo – Macbeth, Otello e Falstaff –, todas extraordinárias, Verdi fez bem mais do que se aproveitar de grandes histórias. Em verdade, podemos dizer que o italiano encontrou em Shakespeare um impulso estético decisivo para sua carreira.

O Projeto Macbeth

Quando Verdi se viu acusado de não conhecer Shakespeare por um crítico de Macbeth, respondeu que sua ópera podia não ter sido bem sucedida na adaptação, era verdade, mas não admitia ouvir que não conhecia o autor, uma vez que desde a mais tenra juventude lia e relia as peças dele com muito entusiasmo. De fato, o italiano tinha em sua biblioteca duas traduções diferentes das obras completas de Shakespeare para o italiano – com seu fraco inglês, ele era incapaz de ler no original. Como veremos, certamente isso o influenciou, uma vez que seu interesse era sobretudo na dramaturgia, e não na poesia. Numa carta para seu editor, Ricordi, dirá ainda que considerava o Bardo um realista assim como ele mesmo – realismo por inspiração, em sua expressão, enquanto que Verdi se via como um realista por “planejamento”.

Thomas Hampson como MacBeth e Nadja Michael como a Lady: ninguém segura esses dois
Macbeth (Thomas Hampson) e a esposa (Nadja Michael): ninguém segura esses dois

E por que Macbeth, cujo enredo não é lá dos mais simples? De todas as peças de Shakespeare que Verdi adorava, Macbeth e Rei Lear eram suas preferidas, e foram as primeiras que ele cogitou para se tornarem óperas. Já devidamente célebre na Itália da década de 1840, Verdi já havia recebido propostas para compor em cima de um libreto de Amleto (sic) e A Tempestade, mas delicadamente recusou. Devido ao ritmo de trabalho intenso, em que praticamente compunha uma ópera por ano, sem contar os ensaios e as alterações para distintos públicos que tinha de fazer, o compositor italiano terminou seriamente doente e teve que parar – “febre gástrica”, segundo o médico. É nesse momento de pausa que Verdi pôde pensar nos rumos que queria para sua carreira, que até então se destacava como legítimo representante dos ideais do Risorgimento, com obras que destacavam, não necessariamente de modo sutil, o desejo italiano de liberdade e unidade – Nabucco (1842), I Lombardi (1843), etc.

Mas não dava para ficar nisso para sempre. Verdi era inteligente demais para saber que não podia assentar sua vida em ser porta voz de um ideal – uma glória, sem dúvida, contudo provisória, que já havia sacrificado muitos talentos. Ciente de que seu sucesso estava muito no fato de que encarnava uma ambição local, mirou seus esforços em ir além, criar uma obra de alcance universal. E Shakespeare lhe pareceu ser perfeito para tanto. Então a oportunidade encontrou a vontade e em carta para Lanari, seu empresário, o compositor avisa que tem uma nova ideia para ópera, cujo argumento não será “nem político, nem religioso: é fantástico”. Era a vez de Macbeth.

Vicissitudes de adaptar o inadaptável

Aqui o prelúdio de Macbeth:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/12/Macbeth-Preludio-G.-Verdi.mp3|titles=Macbeth, Preludio – G. Verdi]

Nunca antes Verdi foi tão detalhista na preparação de uma ópera, tendo cuidado até com os elementos da encenação, já que fazia muita questão de uma reprodução convincente do século XI escocês. Chegou mesmo a fazer a exigência de que os cantores fossem bons atores – e isso no ottocento era uma grande exigência –, sugerindo igualmente que Lady Macbeth fosse feia (!), já que a soprano cogitada, Eugenia Tadolini, apesar de ótima cantora, era demasiado bonita e a Lady deveria ser pérfida em toda a expressão. Destaque ainda para os conselhos aos cantores, como o de que nas cenas principais (dueto entre Macbeth e esposa e a cena do sonambulismo) não deveriam ser cantadas, mas sim “atuadas e declamadas com uma voz muito sombria e velada”. Quase um ensaio para a Gesamtkunstwerk, não fosse o fato de que Verdi era completamente inábil com as palavras. Então o libreto ficou a cargo de Piave, a quem começou pedindo “versos fortes e concisos”. Nosso compositor terminou sendo tão duro em seu perfeccionismo que chegou ao cúmulo de preterir alguns trechos de Piave, sem consultá-lo, pela reescritura de Andrea Maffei, como na cena do sonambulismo de Lady Macbeth.

Francisco Piave
Francisco Maria Piave: a gente faz o que pode

Bem, de fato o trabalho de Piave não é lá grande coisa, não se comparado ao de Boito muitos anos depois, que incorporou muito bem a poesia de Shakespeare. Quem gosta da peça e não está imerso no mundo operístico, sobretudo da tradição italiana, tem tudo para detestar o resultado. Os cortes são relevantes, com Duncan e Fleance mudos e personagens como Ross, Lennoz, Porter e Donalbain sumariamente cortados, além da considerável irrelevância de MacDuff. Contudo, não creio que o inverso disso seja verdadeiro – um amante de ópera tem tudo para apreciá-la, basta que ele não vá esperando árias românticas. Sem sofridos desencontros amorosos e sem papel relevante para tenor, Verdi se concentra na relação entre Macbeth e sua esposa e dele com as bruxas, que de três se tornam um coro feminino significativo. Mas a maior diferença que um fã da peça notaria é que Macbeth não é tão hesitante e a profecia é o suficiente para ele se tornar um assassino. Sua parceira de crime ainda dá o seu empurrão, mas a clássica frase clichê é inevitável: nada que se compare ao original.

Macbeth estreou em 14 de março de 1847. Teve algum sucesso, mas é certo que não suscitou a comoção que outras óperas de Verdi haviam causado: não havia nenhum pathos nacionalista ali. Insatisfeito, o compositor perfeccionista passará anos com o desejo de revisar a obra, que considera, segundo a dedicatória de uma cópia da partitura para o sogro e patrono Antonio Barezzi, “a mais relevante de suas óperas”. Quase vinte anos depois, em 1865, quando já era outro, Verdi vê a possibilidade de re-estrear em Paris por insistência de seu editor nessa cidade, Escudier. Nessa ocasião, admite o imprescindível ballet que o público francês sempre queria, entre diversas alterações, e cogita mesmo incluir Hécate, a deusa das trevas.

Por outro lado, Escudier projeta um papel mais relevante para tenor na ópera e pede para Verdi colocar mais presença de MacDuff, cogitando mesmo que este cante um trechinho em “Il brindisi” para brindar a rainha – o que é bem inadequado e o compositor conseguiu driblar. Traços marcantes de seu estilo de anos anteriores, como as cabalettas, são cortados e dão lugar a um material visivelmente mais substancioso. Primeiro, “Trionfai!” dá lugar ao monólogo “La luce langue”. Eis a cabaletta de 1847:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/12/Cabaletta-Trionfai-1847-Ines-Salazar.mp3|titles=Cabaletta Trionfai Ines Salazar – G. Verdi]

É, não é o tipo de música que se espera ouvir numa das mais sombrias tragédias de Shakespeare. E aqui, sua substituta:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/12/14-La-luce-langue-Verdi.mp3|titles=La luce langue . Leonie Rysanek – G. Verdi]

Notte desiata provvida veli
Noite desejada, vela providencialmente

La man colpevole che ferirá
Sobre a mão culpada que ferirá

Nuovo delitto!…È necessario!
Um novo crime! … É necessário!

O mesmo se dá com a cabaletta de Macbeth, “Vada in fiamme”, que é substituída pelo dueto “Ora di morte” no fim do terceiro ato:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/12/07-Ora-di-morte-e-di-vendetta.mp3|titles=Ora di morte e di vendetta]

Ora di morte, ormai t’affretta!
Hora de morte, apressa-te!

Incancellabile il fato ha scritto:
Indelevelmente o escreveu o destino

L’impresa compiere deve il delitto
a empresa deve completar o delito

poichè col sangue si inaugurò. Vendetta!
posto que com sangue se iniciou. Vingança!

Horror. Macbeth e sua esposa deixam para trás amostrações de dotes vocais e assumem um espírito muito mais próximo ao da peça: crimes e mais crimes, assassinatos em sequência, um círculo vicioso de sangue derramado para garantir o anterior e que consequentemente leva a outro até a liquidação de ambos. Se no original vemos o declínio dos dois pela ambição, na ópera acompanhamos um casal atroz desde o começo, mas igualmente ambicioso o suficiente para dar prosseguimento aos assassinatos.

Ambas substituições não são somente mais interessantes como música, mas também são dramaticamente mais consistentes. E o texto que vemos aqui, devidamente aprovado por Verdi, é novamente de Piave, esse homem sem rancores, que também melhorou visivelmente com o passar dos anos.

E a recepção pelo público dessa vez foi… um fiasco. Depois da décima quinta apresentação saiu de cartaz. Não será a primeira vez que uma obra de arte melhora na qualidade e perde popularidade, mas nesse caso o próprio Verdi dirá que achou que tinha acertado, e que, aparentemente, não foi o caso. Depois de 1874, Macbeth praticamente não subiu mais aos palcos, sendo recuperada somente no século XX.

Stefano Russomano, musicólogo italiano, sugere que o Macbeth foi um catalisador para o talento de Verdi da mesma maneira que Idomeneo foi para Mozart, uma espécie de tomada de consciência das potencialidades que até então apareciam latentes e que agora serão presentes em toda a obra posterior; nesse caso, o controle total de Verdi sobre suas óperas – e não fosse o fato de que ele não escrevia nada, seria possível dizer que o italiano tinha um controle pleno de tudo. Mais ainda: com Macbeth, pela primeira vez Verdi se deu conta de que escrever uma ópera era mais do que dar música à estória no palco. Nas palavras acertadas do crítico Massimo Mila, a ópera passou de um espetáculo comovedor para um “estudo da alma”. No próximo post tratarei de dois consideráveis estudos desse tipo: Otello e Falstaff.

E aqui uma das mais célebres passagens de Macbeth, o sexteto e coro final do primeiro ato, após o assassinato do rei Duncan, sob a batuta de Sinopoli:

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Menção honrosa: Rei Lear

Verdi chegou ainda a planejar com Salvatore Cammarano – autor do libreto de Il Trovatore – uma ópera baseada em Rei Lear em 1850. Com o mesmo perfeccionismo de Macbeth, a correspondência entre compositor e libretista avança, alternando esperança e pessimismo. “Così intricciato”, dirá Verdi, acertadamente, sobre a peça. Mas é sintomático que a vontade de Verdi em fazer outra ópera a partir de Shakespeare tenha se fortalecido depois do sucesso de Rigoletto (1851), a partir de uma peça de Victor Hugo, provavelmente imaginando que estava pronto para o desafio como não estivera antes. Contudo, Cammarano falece sem ter feito muita coisa, e seu substituto, Antonio Somma, trabalha alguns anos para tão logo entregar a versão final e Verdi querer discutir outro projeto, o que viria a se tornar Un ballo in maschera. Não há muitos elementos para saber por que ele desistiu depois de tantos anos de dedicação, exceto que não lhe parecia ser o momento para compor Rei Lear. Em 1865, ano em que Somma morre, Verdi garante em carta para a Condessa Maffei que, cedo ou tarde, irá musicar a peça de Shakespeare. Estamos esperando até hoje.

Este post pertence à série:
1. Verdi, leitor de Shakespeare: I. Macbeth
2. Verdi, leitor de Shakespeare: II. Otello
3. Verdi, leitor de Shakespeare: III. Falstaff

Este post tem 7 comentários.

7 respostas para “Verdi, leitor de Shakespeare: I. Macbeth

  1. Acompanho seus artigos. Recentemente vi uma montagem no recém inaugurado Teatro Facisa em Campina Grande, PB de uma releitura de Macbeth, um monólogo, “Lady Macbeth” e as coisas dessa peça shakesperiana novamente me despertaram interesse.

  2. Oh muito bom hein ^^ paabéns pelo artigo, um feliz natal e um próspero ano novo a todos no euterpe e a todos os lietores.

    É por isso que eu gosto do euterpe, sempre com artigos interesantíssimos ^^

  3. Parabéns pelo blog e pela qualidade dos textos. O que me chamou a atenção, de início, foi a imagem de Brahms, meu compositor favorito, perene fonte de inspiração. Acompanharei o trabalho de vocês.

  4. Mais uma vez encontro link que não funciona. (2. Verdi, leitor de Shakespeare: II. Othello e Falstaff) Essa segunda parte do post não está ativa? Ou sou realmente um ignorante no uso do PC?
    OBS. Por favor não entenda como uma reclamação, jamais, diante de tão belo trabalho e esforço informativo e cultural. Apenas fico com sede do restante.
    J.Farias-PE

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