No início do mês, faleceu o famoso crítico literário, filósofo, ensaísta, romancista e educador franco-americano George Steiner (1929-2020).
Vez ou outra, Steiner privilegiava também a nós, musicófilos, expressando a sua paixão pela música. Em 2010, à ocasião das NEXUS Conferences, no Concertgebouw de Amsterdã (sede da famosa orquestra holandesa), Steiner palestrava sobre o tema: “What’s Next for the West?” (“O Que Vem a Seguir para o Ocidente?”), e encerrou a sua apresentação com um belo discurso sobre o mistério da música. Que um dos maiores críticos literários da atualidade tenha dito que a música lhe parece superior à literatura como “força de uma possibilidade transcendente” não é coisa que Euterpe poderia ignorar e, há algum tempo, postamos uma bela montagem deste vídeo (infelizmente não mais disponível) em nossa página no Facebook.
Compartilhamos agora o vídeo original, portanto, como homenagem ao mestre, com uma tradução logo abaixo por nossa cortesia.
Música, o mistério da música. O que Nietzsche chamou tão corretamente de o mysterium tremendum. O mysterium tremendum do último ato de Tristão [e Isolda], e tantos outros casos: pode ser uma Étude de Chopin, uma frase ou mais em Mozart, que nos fala que há algo além, que paradoxalmente pertence a nós profundamente, mas que de algum modo toca em um significado universal de impossibilidade. Que não somos apenas um conjunto fisiológico eletro-químico e neural, que há mais na consciência do que fiação eletrônica. A música para mim parece, mais do que a literatura, a grande força, a esperança de uma possibilidade transcendente.
Essa é a razão pela qual é vitalmente importante que nossas crianças tenham acesso, desde a mais tenra idade, a boa música. Eu soo como um velho chato reacionário, e não me desculpo por isso, mas nada me aterroriza mais do que a exclusão de música séria das vidas de milhões de crianças pequenas: a substituição de muitas formas de música pelo horror de barulho ordenado, pelo barbarismo de barulho ordenado, a derrocada ensurdecedora de não deixar uma criança encontrar boa música, de não lhe ensinar um instrumento, se possível, de não lhe ensinar a cantar, se possível.
Houve um tempo na vida diária, no século XIX e começo do século XX na Europa, em que apresentações amadoras eram uma realização natural de pessoas educadas. Não precisava ser muito bom, não precisava ser muito grande, mas era parte de se reunir e estar em contato com aquele mysterium tremendum do transcendental. Se levarem isso embora de nós, estaremos realmente em apuros. Não acho que conseguirão. Durante os piores períodos de despotismo e tirania, pessoas podiam aprender partituras de cor. Mesmo quando a música era proibida, ela ainda podia ser confiada à memória. A música é algo muito difícil de se censurar – sim, ela pode ser interrompida, ela pode ser suprimida, músicos podem ser caçados, e perseguidos, e torturados. Mas, ainda, ela está lá, e sempre o seu estranho mistério permanece.
O Concertgebouw é um lugar para se lembrar dos últimos concertos daquele gênio muito ambíguo, [Wilhelm] Furtwängler. A luz caía regularmente e temos gravações em que você ouve o tiroteio da artilharia russa se aproximando de Berlim. Em uma gravação de Beethoven e uma de Haydn daquele tempo, tocados no escuro, as pessoas na plateia, sabendo que estavam condenadas a um destino horrível…, e não há gravações ou interpretações, que eu conheça, maiores daquela música. Há algo na música que é muito mais forte mesmo nas nossas maiores apresentações, a música em certo sentido nos toca, somos tocados por ela. Isso não significa que haverá consenso sobre os seus significados, não significa que não continuaremos debatendo ferozmente sobre a escolha de um andamento lento de uma sinfonia de Bruckner para marcar a morte do Führer. Temos uma gravação e ela também é fantástica, assim como outras gravações excelentes.
Por muitos e muitos anos, eu tentava entender por que a música não diz “não” em certas ocasiões. Dachau, como vocês sabem, fica nos arredores de Munique, muito próxima, e os trens com as pessoas morrendo dentro deles de sede e de fome a caminho para Dachau costumavam passar não muito longe da sua grande sala de concerto. Nessa sala, [Walter] Gieseking apresentava o seu ciclo de Debussy, e bons críticos dizem que nunca houve uma interpretação superior de Debussy. E a minha pergunta era, para estudantes alemães – e comecei a perguntá-la imediatamente após a Guerra –, para crianças de escolas alemãs, por que a música não disse “não”? – o que é uma pergunta sem sentido. Mas é uma pergunta sem sentido? Ainda não sei a resposta. Poderia a música ter se recusado a ser tocada? É claro que poderia. Poderia ser tocada de modo errado pelo menos? Poderia Gieseking tocar notas erradas pelo menos? Não tocou.
Então o mistério permanece, mas também permanece a forte e urgente esperança de que não deixaremos que nos levem embora essa experiência sobrepujante, esse privilégio de existir, que é a grande música.
Obrigado.
De fato a música é chave mestra da alma. Portão onde todos aqueles que buscam um caminho poderiam encontrar passagens a águas mais tranquilas neste revolto e turbulento mar da vida. Se relaciona com o viver humano em tantos vetores que arranca-lá da existência humana seria o mesmo que dividir corpo, alma e espírito. Sempre escutei o termo “a grande música” e quando pude realmente ouvi-la pude sentir nos ossos o porque de ser chamada “GRANDE” Música grande para todos! Música Grande para os pequeninos! E eu sou o menor deles!
Estou adorando o blog! Precisamos de iniciativas com conteúdos tão bons.
Guardo entre meus alfarrábios uma entrevista que Steiner deu em 2014, por ocasião dos seus 85 anos, em sua casa em Cambridge. E vejam só, lá pelas tantas ele diz: “Nós pensávamos que os ideais humanísticos, museus e teatros fossem uma proteção contra o desumano. Mas eles não apenas deixaram de proteger, como permitiram à barbárie surgir do solo dessa alta cultura. Enquanto se tocava Debussy em Munique, podiam-se escutar os gritos nos trens que iam pra Dachau. Eu sei que isso não faz sentido, mas preciso fazer essa observação burra: a música tampouco disse não. Nenhuma obra de arte disse não.”
O que significa que a incapacidade da Arte em evitar o Mal incomodou Steiner por vários anos. E sua amargura em repetir sua incompreensão é muito parecida com aquela dos que perguntam: “Se Deus existe, por que ele não evitou as guerras, o Holocausto, etc?”
Antes de morrer, ele certamente se perguntou novamente: como pudemos permitir que, 75 anos após a Segunda Guerra, deixamos a Barbárie tomar conta de boa parte do mundo, outra vez mais?
Steiner certa vez disse que os filósofos são “as pulgas no couro do leão”. Mas ele também tinha consciência de sua melancolia. O título da entrevista acima já dizia: “Pessimistas são ridículos”.
Denis, Maria e Fabio, muito obrigado pelos comentários!
A citação do Fabio ainda serviu de contextualização perfeita para esse depoimento de Steiner!
Obrigada por manterem a cultura nesse país, a
divulgação das belas artes e entre elas a sublime , a Música, que indubitavelmente mostra a grandeza do ser humano, suas altas capacidades de criar, sentir, refletir sentimentos, emoções e aspirações. Sua beleza assim como uma bela poesia demonstram que realmente temos o toque de Deus.
Triste ver que este blog está morrendo. Eu o considerava o que de melhor possuíamos no país no quesito Música. Hoje não temos mais posts, não temos mais análises, quadros com maravilhoso potencial e séries propostas foram simplesmente abandonadas. Fico muito triste por isso e gostaria de entender melhor as razões.
Meus melhores votos a toda equipe.
Caro Leonardo,
Por que não aproveitar esse momento para realizar um worshop de música clássica via Google Meet? Uma semana de palestras.
Abraço,
Bosco
Walter Gieseking no piano e mais ainda, Wilhelm Furtwängler , na regência, ficarão para a posteridade pelo que realmente são: Imensos Artistas!
Certamente ambos tinham um convivência próxima (e talvez tóxica) com o nazismo .. Mas, não sabemos bem como foi essa relação.
Enfim, o que importa é a sua arte de fazer música 🎶 E essa, será ouvida por nós outros, com deleite e admiração
André, não desista de nós! Estamos nos esforçando por aqui para não deixar os tantos projetos morrerem – o entusiasmo pela música não deixará!
Atualmente, estamos tentando reestruturar o site para disponibilizar o seu conteúdo de modo mais coerente. Há cerca de 20 rascunhos aqui nos bastidores, queremos continuar!
Obrigado por escrever!
Caro Bosco, ideia genial! A vida toma tempo (estou concluindo a escrita da minha tese de doutorado), mas chegaremos lá!
Abraço!
@ J. L. Francis: a relação de muitos músicos alemães (e de outros países tb) com o regime nazista já foi bastante estudada – e diferenciada – em diversos países. É claro que, de acordo com a perspectiva e “ótica” (pra não escrever ideologia) do resenhista, figuras como Gieseking, Furtwängler, Orff, Karajan, R. Strauss etc. foram vistas com maior ou menor severidade. Não é o lugar, aqui, para analisar a fundo a motivação de cada um desses músicos, muito menos para julgá-los. Mas se vc quiser minha opinião: lembrar sempre, perdoar talvez, esquecer nunca.
Ótimas notícias, Léo. Boa sorte com sua tese.