19abr 2017
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Medea riconosciuta

O ano de 2010 foi marcado por belas descobertas musicais na minha discoteca: Telemann, Schumann e outros compositores, além de várias obras de mestres já admirados. Não ouso usar a palavra “redescoberta” porque realmente eu nunca havia descoberto algo de peso nessas obras/compositores. O problema estava nas gravações que eu tinha até então…

O caso de Medea de Cherubini foi categórico. Eu tinha comprado a gravação dessa ópera com Maria Callas e Tullio Serafin pela EMI (1957) há uns 10 (ou mais) anos, na qual fiquei decepcionado com a atuação da soprano, num dos seus – como ouvia falar – grandes papéis. Quem me chamou a atenção, nesse registro, acabou sendo a jovem Renata Scotto, que arrebatou as atenções com sua Glauce doce e virtuosa. Bem depois, conheci outra Medea de Callas, de 1953, com Bernstein, que a exibia em melhor forma, mas a qualidade sonora não ajudou. Enfim, a ópera ficou abandonada no meu acervo, atropelada pela sede em adquirir e conhecer obras dos meus compositores tradicionalmente favoritos.

Medea/Decca
Medea/Decca

Há alguns anos, conheci a ária de Glauce cantada por Gruberova no Youtube e percebi que havia bem mais beleza em Medea do que tive acesso até então. Logo me veio a raiva sobre a pessoa (seja lá quem fosse) que mutilou a gravação de Callas. Então fui à busca da gravação de Medea com Dame Gwyneth Jones pela Decca (numa árdua e demorada jornada) e aí – somente aí – eu fui ver como eu praticamente não conhecia a ópera. Hoje, posso dizer que devo à gravação da Decca, de 1968, com elenco impecável e regência igualmente nobre, a descoberta de Medea.

Obviamente que não posso deixar de reconhecer o talento de Callas nesse papel. De fato, ela sabia incorporar a protagonista com toda carga exigida. Mas Dame Gwyneth não deixou NADA a desejar… Aliás, para mim, foi na sua Medea que a cantora se revelou, e passei a conhecer melhor sua carreira.

A qualidade da Decca já começa com sua reconhecida técnica de gravação. O “Som Decca” é famoso por sua pureza e refinamento – considero esse selo como o mais bem equipado para gravação de clássicos.

Dame Gwyneth Jones
Dame Gwyneth Jones

No elenco da gravação sem cortes (algo chocante quando comparado à de Callas) da Decca, Fiorenza Cossotto estava no seu auge, como uma Neris compenetrada e obscura – sua voz e técnica mostram uma artista no topo do firmamento musical da época (não foi à toa que Karajan a escolheu, naquele momento, para gravar o Requiem de Verdi no Scala, com os jovens Leontyne Price e Luciano Pavarotti); Bruno Prevedi trouxe um Giasone sério e sincero, como devido, com timbre e consistência técnica irretocáveis; Pilar Lorengar abre a ópera com seu brilhante recitativo acompanhado e sua ária fartamente regada à flauta com toda potência – aliás, a ária está em sua versão integral, com tudo que tem direito e todos os obstáculos devidamente vencidos por essa grande soprano do Classicismo; e, finalmente, Lamberto Gardelli trouxe sua regência à frente da lendária Accademia di Santa Cecilia, digna da pérola que tinha em mãos – ele soube captar as sutilezas e contrastes do enredo para transmitir com eficiência a riqueza da ópera ao ouvinte. Isso sem se falar do coro da Accademia absolutamente sintonizado com a evolução do drama. Cherubini usou uma orquestração inovadora na época, que prendia a atenção do espectador sem pausas e, certamente, foi decisiva para Bellini em suas introduções de ato, e outros compositores que vieram em seguida.

Medea/Decca: álbum original
Medea/Decca: álbum original

Na Medea da Decca, o maior espanto está na atuação mágica (por mais brega que seja esse adjetivo, eu não encontro outro agora – talvez por tratar de uma feiticeira) de Dame Gwyneth Jones. Todos os seus registros são magistrais! A sua potência vocal é de mover montanhas e todo vigor do papel está no sangue, sem cessar! Os momentos de desespero em tentar recuperar o marido são comoventes; ao passo que a frieza e o ódio ofegante, ao final, são impactantes. Ela parece tremer de fúria! Até as pausas são dosadamente programadas para gerar a expectativa ideal no ouvinte. Aliás, as pausas são um aspecto especial nessa gravação. A orquestra, nos belos momentos sinfônicos da ópera, sabe (à luz do regente, obviamente) explorar bem as pausas e entrelinhas da partitura.

Escolhi, para exemplificar algumas qualidades da Medea da Decca, a segunda metade do final da ópera, em áudio segmentado nos principais blocos da cena, a seguir.

Parte 1: Medea aterroriza Giasone, com insinuações ameaçadoras sobre o risco de morte que os seus próprios filhos correm em suas mãos, salientando estar próximo o seu grande momento de vingança:

Medea
Tu Glauce piangi sol,
spietato! e i figli tuoi?
A lor non pensi più?
Scordato hai forse tu
ch’ei sono in mio potere?
Risparmia lor più lunghi pianti ancor!
No, sospettar non puoi
dove andrà la vendetta!
 
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Parte-13.mp3|titles=Medea/Decca: Final (1)]

Parte 2: Medea invoca as Fúrias e se convence de que realmente é chegada a hora de executar o seu plano funesto – ela está completamente transtornada pelo ódio a Giasone:

Medea
Non più dubbiezze né timor;
sorpassar io mi vo’,
vo’ compir l’opra mia funesta!
Atre Furie, atre Furie, volate a me,
la man a piombar già s’appresta!
Date, orsù, questo sangue !
A me, figli miei, ch’io v’uccida!
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Parte-2.mp3|titles=Medea/Decca: Final (2)]

Parte 3: Medea corre e se fecha no templo, onde estão os seus filhos com Giasone. Ele e o povo também se dirigem em tumulto ao local e todos se desesperam com o que a protagonista pode fazer contra as crianças:

Giasone
O cielo, il vil delitto
punir non saprai?
Dei, i figli ove son?
Dei, ridateli a me!
La vostra bontà li protegga!
Oh, mia Glauce fedel!
Oh, destino fatal!
Oppressa cada al suolo,
la vita a lei sia spenta!
Sconterà questuo duol
con il suo martir.
La viltà sua cruenta
scontar col suo sangue dovrà!
Coro
Vendicar, giusto ciel,
dovrai l’orrenda colpa!
Oh padre sventurato!
Disperdiam la crudele!
Col suo sangue, col suo tormento
l’orrendo duol scontar dovrà!
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Parte-3.mp3|titles=Medea/Decca: Final (3)]

Parte 4: Neris, antiga companheira de Medea, escapa tremendo do Templo e se dirige a Giasone com palavras desordenadas, sem conseguir expressar bem o que testemunhara…

Neris
Ah signor!
la crudele
vostra donna…
or nel Tempio…
Giasone
Parla, orsù!
per pietà!
Che mai fece?…
Neris
Persegue i figli ancor…
è pronta già ferir!
Coro
Oh Dei! Oh madre snaturata!
Giasone
Se siamo in tempo ancor
l’opra sua, deh, tronchiam!
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Parte-4.mp3|titles=Medea/Decca: Final (4)]

Parte 5: Giasone, armado, tenta invadir o templo, mas Medea aparece na porta e manda o ex-marido constatar como fica uma esposa humilhada e rejeitada, segurando um punhal e coberta de sangue. Giasone se afasta chocado e o povo se movimenta aterrorizado. Logo, ele pergunta pelos filhos. Ela friamente responde que foi vingada pelo sangue das crianças. Giasone pergunta o que eles fizeram de mal para ela… Ela diz que “apenas” eram filhos dele:

Medea
T’arresta! e affisa ben
la tua sposa schernita!…
Giasone
Oh visione d’orror!
Coro
Oh terror! Guisti Dei!
Giasone
Barbara! e i figli miei?
Medea
Mi vendicò il lor sangue!
Giasone
Che ti fecer, crudel?
Medea
Eran figli tuoi!
Giasone
Dei!
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Parte-5.mp3|titles=Medea/Decca: Final (5)]

Parte 6: Medea, considerando-se vingada e satisfeita, anuncia o seu destino (aqui a potência da soprano faz a diferença), que é o mitológico rio Estige – e lança fogo ao prédio do templo. Logo o incêndio toma todo o edifício e o povo corre para todos os lados tentando se salvar, num grandioso final orquestral:

Medea
Al sacro fiume io vo’! colà t’aspetta
l’ombra mia!….
Giasone, Neris, Coro
Giusto ciel! Oh terror!
Terra e ciel fiamme son!
Fuggiam, fuggiam
l’arso ciel, l’atro duol !
Già l’abisso s’aprì!
Fuggiam da questo infausto suol!
[Fine]
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Parte-61.mp3|titles=Medea/Decca: Final (6)]

Vale a pena indicar ainda o recente DVD de Medea com Anna Caterina Antonacci pela Hardy Classic Video e regência de Evelino Pidò no Teatro Regio di Torino. Já era tempo de termos essa obra-prima em DVD! Antonacci traz impressionante presença cênica e heróico desempenho musical, especialmente pela habilidade ao lidar com papéis densamente emocionais como Medea. A montagem é moderna, mas moderada – felizmente…

DVD de Medea com Antonacci
DVD de Medea com Antonacci

Este post tem 7 comentários.

7 respostas para “Medea riconosciuta”

  1. Medea é uma ópera muito moderna e muito bem dramatizada (o drama corre solto e sem estapafurdices) de uma das tragédias mais chocantes do teatro grego. Muito bom ter a garantia de uma boa gravação! :) Beethoven admirava muito Cherubini, tínhamos que conhecer mais obras dele além de Medea e o famoso Requiem, e mesmo um dia apresentá-las em um post à parte.

    Mas cá entre nós, Fred, que Schumann foi esse que você descobriu? :O

    Abraços!

  2. Gosto muito do Requiem de Cherubini, e por esses trechos me entusiasmo em conhecer Medea. Callas ao que parece gostava muito da personagem, aceitando interpretá-la num estranho filme de Pasolini.

  3. Pois é, Leo. Eu estava pensando dia desses como Norma de Bellini se parece com Medea de Cherubini… É um enredo muito forte, de fato.
    Rapaz, eu me tornei fã das sinfonias de Schumann! Tanto que comprei as integrais de Karajan, Muti e Bernstein. Obras geniais!
    Abração!

  4. Nando, comprei esse DVD da Medea de Pasolini com Callas e achei aquilo muito estranho, como você disse. Tudo é misterioso, com linguagem obscura. Por outro lado, gostei dos ambientes e o figurino é interessante, apesar de exagerado em alguns momentos.
    Na sua opinião, qual a melhor gravação do Requiem de Cherubini? É mesmo a de Markevitch/DG?

  5. Fred,
    Que sensacional, não me sinto mais sozinho: mais alguém no mundo além de mim aprecia as sinfonias de Schumann – sobretudo com Karajan.
    Agora do requiem conheço apenas as gravações de Markevitch, q acho ótima, e a da Naxos q escutei bem pouco pq não me agradou. Tenho curiosidade em conhecer a de Muti.

  6. Nando,
    Especialmente a segunda sinfonia de Schumann me agradou bastante! A gravação de Karajan tem aquela atmosfera colossal, como sempre! Comprei sem ouvir porque eu já sabia que ia ser impactante – e foi… Como foi…
    Quanto ao Requiem de Cherubini, eu, que sou “um pouco” (rsrsrs!) ansioso, cai em campo e já comprei a gravação de Markevitch na Livraria Cultura. Apenas do som não ser dos melhores, é um registro brilhante!

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