19abr 2017
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150 de Debussy

Claude Debussy (ca. 1908) (Félix Nadar)

Hoje comemoramos o sesquicentenário do francês Claude Debussy (1862-1918), um dos compositores mais importantes de seu tempo. Sua originalidade pode ser medida pela simples comparação com o que mais se fez em sua época e com aquilo que veio antes dele. Se o final do século XIX e início do século XX são marcados pelas grandes formas sinfônicas e teatrais, com a forte influência de Wagner e Brahms na Alemanha e Verdi na Itália em compositores como Mahler, Strauss, Bruckner, Puccini e outros, Debussy afasta-se – conscientemente – desse padrão: não escreveu sinfonias no sentido tradicional (embora La Mer possa ser chamada de uma sinfonia, ele não quis dar esse nome), completou uma ópera – obra que, por si mesma, é mais uma negação do projeto wagneriano – e suas aventuras no final da sua carreira, em sua breve obra na música de câmara apontam mais para o século XVIII do que para Brahms, Dvorák e outros expoentes de sua época.

Sua obra para piano, possivelmente a parte mais significativa de sua produção, encontra apenas um gênero correspondente nas obras do período: os prelúdios, mas estes, desde Chopin, se caracterizam justamente pela liberdade formal. E foi justamente a liberdade formal, ou melhor, a libertação do compositor dos padrões musicais do século XIX, uma das maiores bandeiras tanto do Debussy música quanto do Debussy crítico.

A música de Debussy se mostra assim como uma recusa constante em aceitar os chavões musicais de sua época. Se em sua estada em Roma ele rejeitou a música de teatro italiana de sua época, em sua casa, na França, era principalmente o wagnerismo que ele combatia ferozmente. Em uma de suas críticas ele argumenta:

Wagner, se me permitirem me expressar com a pomposidade que lhe cabe, foi um lindo crepúsculo que foi confundido com uma aurora.

Debussy cresceu no auge do wagnerismo, quando a música Wagner era considerada o farol que iluminava o futuro da música, daí a referência a “aurora”, Wagner era visto como o compositor que apontou o caminho da música do futuro, a Zukunftsmusik. É contra esse dogma estabelecido que ele se rebela, tanto na sua música – basta ver em sua ópera como ela recusa a utilizar do procedimento wagneriano mais característico: o Leitmotiv –, quanto na crítica, escrevendo constantes ataques a Wagner e seus discípulos.

Uma segunda característica, ligada sem dúvida a esse inconformismo com sua tradição, é a busca e a inspiração em outras tradições musicais. É famosa a anedota que fala da admiração que ele teve ao ouvir o gamelão balinês na Exposição de Paris de 1899, e influências orientais são centrais para se compreender sua música – no seu uso constante de escalas exóticas, na sua orquestração, no uso não funcional da harmonia. Debussy aqui sem dúvida não está sozinho, pois orientalismos abundam na música do final do século XIX, mas ele é o que mais radicalmente insere inovações e aspectos musicais que divergem da prática tradicional da música europeia.

Podemos ver essas duas características expressas em uma única peça: a última peça da suíte Children’s corner, de 1908.

Children’s corner

Claude-Emma “Chouchou” Debussy (1905-1919)

A suíte Children’s corner foi composta por Debussy em homenagem a sua filha, Chouchou, que tinha, à época, três anos de idade. Toda a peça é composta tentando evocar o mundo infantil com suas atividades e interesses, e constitui, podemos dizer, em uma versão do século XX das Kinderszenen de Schumann. A peça mais famosa, e que vai merecer nossa análise aqui, é a que conclui a suíte: Golliwogg’s Cake Walk.

Golliwogg

Golliwogg e seus Amigos em 1895.

O nome Golliwogg vem de uma boneca feita de tecido negro e com formas alusivas aos traços negroides – hoje mesmo a boneca é tida como um exemplo de brinquedo racista. No entanto, na virada do século, a boneca se tornou muito popular, principalmente por causa de uma série de livros infantis, desenhada por Florence Kate Upton, em que a boneca figurava como personagem principal. Assim, a peça representa a dança dessa boneca, e como seu exemplo musical foi escolhido o ragtime ou cake walk.

Cake walk

O Cake walk era uma dança americana de teor cômico e grotesco, um pouco como paródia, que era dançada e apresentada por negros e, de um início apenas jocoso, tornou-se muito popular na virada do século atingindo até a Europa. Acompanhava a dança uma versão em orquestra ou em piano de um ragtime, que às vezes também era chamado de cake walk, um gênero que tinha acabado de explodir nos próprios EUA e que deve ter chegado à Europa à época da Exposição Internacional de Paris, em 1899.

Exemplos:

Em pouco tempo, a dança e a música tornaram-se um sucesso em Paris, ajudada pela popularidade da imprensa musical, que fez com que Scott Joplin vendesse um milhão de partituras do Maple Leaf Rag. Pouco tempo depois, um jornal alemão já notava como o cake walk era famoso e reproduzido em todos os salões chiques da Paris daquele tempo.

Golliwogg’s Cake Walk

A forma é um ABA característico desse tipo de peça breve, em que a parte A, muito mais do que a parte B, traz os aspectos mais marcados da paródia ao cake-walk.

A peça traz características marcantes do ragtime, a ponto de podermos chamá-la de um “rag erudito”. O tempo é em 2/4, característica do todos os ragtimes, com uma introdução em que ambas as mãos tocam a mesma melodia em oitavas, como, por exemplo, acontece no início de The Entertainer (1902), hoje o rag mais famoso, por causa do filme Golpe de Mestre:

Scott Joplin – The Entertainer – Intro (Alexander Peskanov – 2002):

Debussy – Children’s Corner – 6. Golliwoog’s Cake Walk – Intro (Arturo Benedetti Michelangeli – 1971):

No que se segue a estrutura é bastante parecida: a linha da mão esquerda marcando o tempo de forma bem característica, incluindo os acordes quebrados com o baixo no tempo forte e o complemento no tempo fraco, que são específicos do gênero. Como podemos ver no acompanhamento de The Easy Winners:

Scott Joplin – The Easy Winners – Excerpt (Alexander Peskanov – 2002):

Que é mimetizado no acompanhamento da peça de Debussy:

Debussy – Children’s Corner – 6. Golliwogg’s Cake Walk – Beginning (Arturo Benedetti Michelangeli – 1971):

A música segue de maneira bastante próxima as convenções do gênero, o ritmo do ragtime é basicamente um ritmo de semicolcheia-colcheia-semicolcheia-colcheia, as notas mais longas se encontram fora do tempo forte, é aquilo que chamamos de síncope[1].

A síncope não é o único procedimento rítmico do ragtime, mas é aquele que Debussy escolheu por ser o mais típico – o rag também pode fazer ritmos simples de semicolcheias, mas este é mais comum na tradição ocidental.

Interessantemente, Debussy mistura o seu idioma com o idioma mais característico do ragtime: embora o ritmo e a lentidão harmônica sejam do estilo, Debussy insere acordes de 9a e 11a, que são típicos do seu próprio estilo harmônico. E a peça toda tem uma sofisticação musical que fazem dela mais do que um simples ragtime.

A parte B sublima um pouco mais o estilo evocativo ao rag: a síncope continua, mas agora apenas intervalos soltos na mão direita nos tempos fracos, e, brevemente, surgem como evocação ao estilo as escalas descendentes nas cadências.

Debussy – Children’s Corner – 6. Golliwogg’s Cake Walk – B1 (Arturo Benedetti Michelangeli – 1971):

É justamente em uma dessas escalas descendentes que entra uma das cadências mais famosas da história da música: Debussy mistura à sua dança da boneca o acorde de Tristão:

Wagner – Tristan und Isolde – Act I – 01. Prelude – Tristan Chord (K. Böhm – Orch. der Bayreuther Festspiele – 1966):

Debussy – Children’s Corner – 6. Golliwogg’s Cake Walk – Debussy Chord (Arturo Benedetti Michelangeli – 1971):

Essa é uma paródia do início de Tristão e Isolda, que chamamos de acorde de Tristão. Debussy segue a mesma melodia: lá-fá-mi natural-ré sustenido (aqui escrito enarmonicamente como mi bemol), e a entrada do acorde é praticamente idêntica (há diferenças por causa da tonalidade e do modo). Essa abertura é repetida, com variações na formulação do baixo, por três vezes e a música retorna à parte A.

A citação de Wagner é um exemplo do estilo e do senso de humor característicos de Debussy. Nada pode estar mais distante do estilo erótico e apaixonado da ópera do que um ragtime que acompanha a dança de uma boneca preta. Isso acaba fazendo parte e demonstrando parte do projeto estético de Debussy, que é de mostrar e procurar alternativas à “grande música” do século XIX. A citação de Wagner de certa forma revela a importância que o compositor havia adquirido na época de Debussy, e o escárnio também revela de modo bem claro a sua escolha estética de buscar uma solução alternativa em questões de forma, de harmonia e de linguagem.

Essa atitude de recusa, contudo, também esconde uma certa admiração que sempre existiu no compositor. Pois não é a única passagem que faz referência à mesma música, há outra citação, escondida, no quarto ato de Pelléas et Mélisande, que mostra que nem sempre Debussy podia citar Wagner por escárnio. A importância de Wagner para a cultura musical da formaçào de Debussy foi muito forte e, por mais que às vezes as próprias declarações públicas de Debussy sejam negativas com relação a Wagner, sua influência no próprio estilo do compositor é por demais grande para ser ignorada. E ele não se furtou de uma leve referência em Pelléas et Mélisande:

Debussy – Pelléas et Mélisande – Act IV – Scène 4 – Debussy Chord (C. Abbado – WPO – 1992):

Assim, vemos como essa breve peça musical revela traços característicos do estilo e das escolhas estéticas de Debussy: uma tentativa consciente de busca de novos sons e de novas formas para sua música, uma abertura para influências de tradições fora da música tradicional. Ao mesmo tempo que há uma atitude ambígua em relação à tradição que ele recebeu.

 


[1] Essa “quebra” do ritmo esperado é uma das características mais centrais da música de origem negra, ela é um elemento definidor no ragtime, mas aparece também de norte a sul do continente americano, da habanera ao tango, é como se fosse uma adaptação para a música europeia dos ritmos africanos originais.


Este post tem 10 comentários.

10 respostas para “150 de Debussy”

  1. Essa musica é bem bonita, eu não havia ouvido falar desse acorde “acorde de Tristão” interessante e essa dança, “ragtime” também não havia ouvido falar, mais uma que aprendi. :) parabéns pelo artigo

  2. Muito bom, Bruno. Debussy realmente tinha uma relação difícil com a música de Wagner. Sabia de cor Tristão e Isolda, tocava para os amigos algumas passagens ao piano (acho que ele chegava a cantar também, preciso ver no livro “Debussy Remembered”), foi à Bayreuth duas vezes,…Mas sua música soa tão anti-wagner. Chausson, Lekeu e outros franceses não conseguiram escapar. Talvez a resposta venha dessa influência da música oriental, não podemos esquecer também da influência da pintura na obra de Debussy. Outro compositor que Debussy era fascinado foi Beethoven, mas lembro bem dele dizer “detesto ouvir aquelas variações intermináveis”.
    Enfim, Debussy escapou das influências que amava e foi o compositor mais original de todos os tempos.

  3. Parabens a todos por esta maravilhosa aula.Cheguei ao blog agora e não saio mais.Estarei sempre por aquí.Odeni.

  4. Percebem como o trabalho de vocês tem grande valia para as pessoas? :) todos que entram no euterpe adoram o trabalhos dos autores, elogiam e nunca mais saem daqui :).

    Continuem assim e não parem, pois eu também não saio nunca mais daqui rs

  5. Parabéns! Adorei o texto! Sou apaixonada por Debussy e adoro Scott Joplin, foi legal ler um texto que juntou os dois e ainda de forma tão bem explicada, objetiva e divertida! Sou mais uma que continuará vindo aqui.
    E concordo com o que o Heber Fiori falou, o trabalho de vocês tem grande valia pras pessoas!

  6. Ei, vocês viram o que perguntei?

    Na peça “prelúdio à tarde de um fauno” também tem uma citação à Wagner?

  7. Olá, hikaru-san! Eu particularmente não me lembro de uma citação direta a Wagner no prelúdio de Debussy, mas ele tem uma relação fundamental com uma maneira de se afastar da noção de tonalidade e de funções harmônicas, o que torna a sua lembrança de Wagner bastante pertinente: é o cromatismo explorado desde a figura do seu tema inicial, que podemos comparar com a função dos motivos do sofrimento e do desejo que abrem o prelúdio do Tristão e Isolda.

    E por falar em influência wagneriana, estou ouvindo justamente agora o poema sinfônico “Francesca da Rimini” de Tchaikovsky, que também mostra muitas wagnerices (o cromatismo para retratar o segundo círculo do inferno), tendo sido escrito depois que Tchaikovsky viajou a Bayreuth para ouvir os dramas musicais de Wagner (e embora ele mesmo tenha reconhecido a influência nessa obra, disse que não gostou do que ouviu na viagem!).

  8. Legal, gosto de Debusy, ele é um dos modernos que fez uma música que tem uma coisa em comum com a música antiga, não é tonal mas também não é muito dissonante dentro do padrão de nossa escala ocidental de 12 notas e é uma música bem leve. Isso pode parecer detalhes “bobos”, mas mostra bem como dá pra ser contemporâneo sem ser “difícil” para quem não está muito por dentro da área.

    Abraços.

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