19abr 2017
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Lévi-Strauss e a Música – Parte III

Lévi-Strauss em pesquisa de campo

Concluindo a série de apontamentos musicais do antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, quero chamar atenção aqui apenas para um trecho de Tristes Trópicos, de 1955, onde creio que a relação de nosso autor com a música é exemplar. Certamente um dos livros de etnologia mais lidos até hoje – menos uma etnografia no sentido clássico do termo, e mais um misto de memórias e reflexão sobre o progresso no Ocidente –, encontramos nas páginas finais dessa obra as reconsiderações que Lévi-Strauss fez do sentido de sua missão permeadas por uma música específica.

Voltando daquela que seria sua última excursão pelo interior do Brasil, Lévi-Strauss questiona-se: qual a finalidade de tudo aquilo? Por que o mundo que optara como aventureiro parecia-lhe se dissolver entre aos seus olhos, enquanto que a antiga tradição européia se impunha dentro de si no meio da floresta? Diante disso, o antropólogo viu-se “obcecado” pela melodia do Estudo Op. 10 n° 3 de Chopin, espécie do que chamou de “resumo musical” de tudo o que deixa para trás:

“Por que Chopin, a quem minhas preferências não me conduziam especialmente? Criado no culto wagneriano, eu descobrira Debussy em data bem recente, inclusive depois que as Núpcias, ouvidas na segunda ou terceira apresentação, tinham me revelado em Stravinski um mundo que me parecia mais real e mais sólido do que os cerrados do Brasil central, fazendo desmoronar meu universo musical anterior. Mas no momento em que saí da França, era Peléias que me fornecia o alimento espiritual de que necessitava; então, por que Chopin e sua obra mais banal impunham-me a mim no sertão? Mais ocupado em resolver esse problema do que em me dedicar às observações que me teriam justificado, eu dizia a mim mesmo que o progresso que consiste em passar de Chopin a Debussy talvez seja amplificado quando ocorre no sentido contrário. As delícias que me faziam preferir Debussy, agora eu as saboreava em Chopin, mas de um modo implícito, ainda incerto, e tão discreto que eu não as percebera no início e fora direto para a sua manifestação mais ostensiva. Realizava um duplo progresso: ao aprofundar a obra do compositor mais antigo, eu lhe reconhecia belezas destinadas a permanecerem ocultas para quem não tivesse, primeiro, conhecido Debussy. Eu gostava de Chopin por excesso, e não por escassez, como é o caso de quem nele parou sua evolução musical. Por outro lado, para favorecer dentro de mim o surgimento de certas emoções, já não precisava da excitação completa: o sinal, a alusão, a premonição de certas formas bastavam”.

Primeiramente, uma discordância com o mestre: creio que a obra mais banal de Chopin é, muito provavelmente, a Polonaise Op. 40 n° 1. Afora isso, Lévi-Strauss recorre à melodia da Tristesse e à música de Debussy como metáfora para o “diálogo” entre a viagem que empreende e a tradição em que foi criado, ressaltando que o conhecimento da mentalidade de uma cultura alheia passa, necessariamente, por uma aproximação com a sua própria.

Desse modo, gostaria de trazer com essa passagem o que acho uma interessante sugestão para os melômanos: talvez ocorra um entendimento mais completo da música de Chopin através da comparação com obras mais complexas e posteriores, como a de Debussy. A melodia ordinária ganha um novo significado quando defrontada com possíveis desdobramentos mais elaborados a partir do conjunto mínimo de base. Não se trata de afirmar uma linha evolutiva na música, absolutamente, mas em ressaltar a infinidade de combinações que a estrutura básica permite – o sistema tonal – e aproxima compositores que por vezes pensamos como distantes ou inconciliaveis. Em suma, faz um bem danado ouvir Haydn sempre, nada contra. Mas melhor ainda se acompanhado da audição de Mahler, digamos, por onde Haydn não aparece inferior, pelo contrário, mas com sua grandeza devidamente exposta.

Para completar, segue o Estudo de Chopin que não saía da cabeça de Lévi-Strauss:

Chopin – Etude Op. 10 No. 03 in E major ‘Tristesse’ – Lento ma non troppo (M. Pollini – 1972):

Este post pertence à série:
1. Lévi-Strauss e a Música – Parte I
2. Lévi-Strauss e a Música – Parte II
3. Lévi-Strauss e a Música – Parte III

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