19abr 2017
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A humanidade do divino Mozart

Amadeus
Amadeus (1984) popularizou ainda mais o nome de Mozart, ao mesmo tempo em que lhe atribuiu uma polêmica imagem. O filme foi indicado a 53 prêmios, e recebeu 40, incluindo oito Oscars (entre eles o de melhor filme), quatro prêmios BAFTA, quatro Globos de Ouro e um prêmio DGA.

Recentemente, um colega me falou surpreso, e algo inconformado, a respeito do comportamento excêntrico do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) no filme Amadeus (1984), o que me motivou a trazer neste post algumas considerações sobre a sua personalidade. Por sinal, em relação ao filme, o neurologista e organista Bernard Lechevalier, em seu livro Le Cerveau de Mozart (Odile Jacob, 2003), dispara indignado severas críticas, considerando-o uma obra estimável talvez em nível cinematográfico, mas detestável a nível histórico, por dar ao músico uma visão absurdamente grotesca e caricatural, ao mesmo tempo em que escondia o seu gênio debaixo de uma máscara de um débil mental.

Maria Anna Thekla Mozart (1758-1841), conhecida como Bäsle, prima com quem Mozart trocou cartas nada tímidas...
Maria Anna Thekla Mozart (1758-1841), conhecida como Bäsle, prima com quem Mozart trocou cartas nada tímidas…

O fato é que é comum, ao tentar descrever Mozart, esbarrar-se imediatamente em aparentes antagonismos de sua personalidade. Se por um lado, ele é o criador de uma música sublime e muito superior a tudo que parece animalesco no ser humano, que testemunha claramente uma capacidade de sublimação altamente desenvolvida, por outro, o mesmo Mozart era capaz de se comportar e fazer piadas que, aos ouvidos das gerações atuais, parecem extremamente grosseiras. Muitos exemplos dessas piadas aparecem nas suas cartas, especialmente aquelas dirigidas à sua prima Maria Anna Thekla Mozart (1758-1841), conhecida como Bäsle (“priminha”, em alemão) – escritas com 21 ou 22 anos, como fruto de uma possível puberdade atrasada.

Uma das cartas criativas e liberais de Mozart à sua querida prima.
Uma das cartas criativas e liberais de Mozart à sua querida prima, com quem deve ter tido suas primeiras experiências sexuais.

A pesquisadora Ruth Halliwell, na sua obra The Mozart Family: Four Lives in a Social Context (OUP, 1998), ressalta que as cartas à Bäsle são meras brincadeiras, quase desprovidas de notícias. São fantasias verbais, que exibem um imaginativo senso de humor de Mozart. Considerando as atuais convenções, elas parodiam gêneros literários e musicais, usando rimas, trocadilhos, ecos e outros recursos. Suas alusões escatológicas e eróticas colocaram tais documentos em grande risco de destruição. Essas cartas “chocantes” sobreviveram por pouco, e não foram impressas por completo até 1938 (na pioneira e valiosa edição de Emily Anderson), despertando perplexidade nas recentes gerações sobre como o, até então, “imaculado” Mozart podia ter escrito coisas tão grosseiras.

Halliwell explica que a análise mais cuidadosa das personalidades de pessoas altamente criativas desafia o estereótipo do gênio como alguém isento do desenvolvimento humano dito normal. Mozart não escapou ao julgamento a respeito de sua inteligência, do seu comportamento e da forma de conduzir seus assuntos. O professor Jean-Victor Hocquard em Mozart ou la voix du comique (Archimbaud, 1999) chega a colocar o problema de uma dicotomia entre o gênio que Mozart foi na sua arte e o homem comum que foi na sua vida. Lechevalier, por sua vez, questiona por que razão o autor de Die Zauberflöte foi alvo de tão duros julgamentos e de uma exigência de perfeição tão elevada e absoluta, quase sobrenatural. O que queriam, de fato, que ele fosse? Um mundano, um conversador eloquente, um lisonjeador, um cortesão, um carreirista hábil e adulado, um homem rico e importante, em suma, a imagem de um “homem de sucesso”, que teria sido, comodamente, um motivo de felicidade e reconhecimento para todos. Sobre a vida de Mozart paira certo ar messiânico, mas ele não foi aquele que gostariam que fosse: o divino Mozart. Lechevalier cita a teoria das personalidades múltiplas da moderna psicologia norte-americana, questionando se seria Mozart um desses casos.

Leopold, pai e principal influência de Mozart, foi excessivamente zeloso na educação do filho.
Leopold, pai e principal influência de Mozart, foi excessivamente zeloso na educação do filho.

Até mesmo em cartas para o pai, Leopold Mozart (1719-1787), Wolfgang usava expressões de referências anais e escatológicas sem qualquer mostra de constrangimento. Nesse sentido, considero fundamental trazer a abordagem do renomado sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) em sua obra Mozart: Sociologia de um Gênio (Zahar, 1995), onde afirma que havia espaço de sobra para tais fantasias no círculo social de Mozart. Nessa sociedade, havia menos necessidade de escondê-las das vistas do público – e, portanto, de reprimi-las da consciência – do que nas sociedades industriais do século XX, explica o sociólogo. A própria mãe do compositor não se privava de inserir brincadeiras “atrevidas” nas cartas que enviava ao marido.

Lechevalier corrobora Elias, afirmando que tal linguagem escatológica fazia parte da cultura da Áustria e do sul da Alemanha na época, além de ser hábito também na França, quando Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673), conhecido como Molière, divertia o rei com histórias de clisteres e quando, muito tempo depois, as multidões vindas dos bairros elegantes de Paris se empurravam para assistir às proezas de Roger Vitrac (1899-1952) e seus gases na peça Victor ou les enfants au pouvoir (1928). É preciso reconhecer, entretanto, que Mozart se deixou, por vezes, levar por uma excitação verbal excessiva, recheada de palavras grosseiras e algumas vezes incompreensíveis, percebida por Hocquard nos textos dos célebres cânones escritos em várias línguas – compostos sem dúvida com amigos e destinados a serem cantados estritamente entre eles.

A “sujeira” verbal era um elemento do comportamento descontraído entre os jovens – e também entre os mais velhos – com quem Mozart se relacionava. Não era de maneira alguma proibido, segundo Norbert Elias. No máximo, recebiam uma proibição tão leve que as zombarias coletivas quanto ao tabu provocavam muita algazarra entre os jovens da época. Desde cedo, porém, Mozart sabia exatamente onde tais piadas eram permitidas. Sabia que eram permitidas e apreciadas entre os pequenos burgueses empregados das cortes, o que incluía os músicos (e mesmo aí apenas entre amigos próximos), mas que eram completamente fora de lugar nos círculos mais altos.

Traços da personalidade também influenciavam o uso aparentemente compulsivo que Mozart fazia de expressões anais e orais. Elias supõe que conflitos ligados à educação higiênica na infância ressurgiram na puberdade. Podem também ser uma expressão indireta de agressão contra o pai – e, mais amplamente, contra a ordem estabelecida, a que tinha sido negada qualquer expressão direta. Sentimentos agressivos em relação à classe dominante da época estavam presentes em Mozart, e formavam um traço muito forte de sua personalidade – isto pode ser observado em toda a sua carreira posterior.

Constanze, esposa de Mozart, em retrato feito já na sua viuvez, em 1802.
Constanze, esposa de Mozart, em retrato feito já na sua viuvez, em 1802.

Halliwell afirma que alguns dos traços de caráter adulto de Mozart podem ser progressivamente rastreados desde a mais tenra infância; outros se desenvolveram como respostas posteriores a aspectos específicos de seu ambiente. Desde a infância, Mozart foi o centro das atenções de sua família, graças às suas habilidades musicais, sua alegria e sua inteligência musical (aspecto estudado por Lechevalier em sua obra). A necessidade de ser amado era forte – inicialmente ele dependia, sobretudo, do amor de Leopold; depois, de sua esposa, Constanze Mozart (1762-1842). As cartas de família, as reminiscências do amigo Andreas Schachtner (1735-1795) de Salzburg e os relatos de observadores das turnês européias de Mozart na sua infância, oferecem várias evidências das suas características infantis. Schachtner, por exemplo, comentou que Mozart era “cheio de fogo” e tão impressionável que podia ter se tornado um “vilão covarde”, caso não recebesse a rígida educação de Leopold. Essa impetuosidade pode ser vista também no Mozart adulto, especialmente durante o seu envolvimento com Aloysia Weber (1760-1739), que se tornaria sua cunhada.

Mozart, o pai e seu grande amigo Schachtner, que deixou valiosas referências sobre a infância do compositor, como a curiosidade de que Mozart tinha medo do som do trompete.
O pequeno Mozart, seu pai e o grande amigo Andreas Schachtner, que deixou valiosas referências sobre a infância do compositor, como a curiosidade de que Wolfgang tinha medo do som do trompete.

Elias alerta, ainda, para o fato de que qualquer análise sobre a coprofilia verbal de Mozart necessariamente se equivocaria se aplicássemos os padrões atuais de civilização – usando, implicitamente, o nosso próprio padrão de sensibilidade como universal e válido para toda a humanidade, e não como algo que se desenvolveu ao longo do tempo. Para fazer justiça à tendência de Mozart, seria preciso ter uma idéia clara do que o sociólogo batizou de processo civilizador, ao longo do qual o padrão social de comportamento e de sentimento muda de maneira específica, ou seja: na sociedade de Mozart – mais exatamente, na fase do processo social civilizador em que viveu – o tabu quanto ao uso das palavras chocantes que encontramos em suas cartas não era, nem de perto, tão estrito e rígido quanto em nossos dias.

Mozart sempre circulou em dois mundos sociais distintos: o círculo não-cortesão de seus pais, que hoje em dia poderia ser referido pela expressão “pequenos burgueses”, e o dos aristocratas da corte – que ainda se sentiam muito seguros de seu próprio poder nas regiões alemã e italiana, a despeito dos relâmpagos distantes e dos primeiros trovões da Revolução Francesa. Tal divisão em sua existência social também se fazia sentir na estrutura de sua personalidade. Toda a atividade musical de Mozart, toda a sua formação de instrumentista virtuose e de compositor foram modeladas pelo padrão musical das sociedades de corte hegemônicas da Europa.

Halliwell considera que, pelo fato do talento de Mozart haver guiado todas as atividades de sua família durante a sua infância, ele estava acostumado a ter todas as suas necessidades generosamente atendidas. Enquanto os outros “meninos musicais” estavam em aula de canto no coro, a rica educação de Mozart foi talhada e transmitida sob medida por Leopold ao filho para que jamais se tornasse mais uma atração entre muitas – Lechevalier o chama de “produto de estufa”. Somente aos 22 anos de idade Mozart fez a sua primeira viagem sem o pai.

Barão von Grimm, que Mozart conheceu na sua juventude em Paris.
Barão von Grimm, que Mozart conheceu na sua juventude em Paris.

O pequeno gênio foi mimado por nobres e encorajado a acreditar que um futuro magnífico o esperava. Quando Mozart tinha dez anos, Friedrich Melchior, Barão von Grimm (1723-1807) acreditava que os monarcas brigariam para atrair os Mozart. Porém, quando isso não aconteceu, explica Halliwell, a frustração de Mozart mostrou-se numa série de traços de caráter. Primeiramente, Mozart não podia suportar o tédio, e começou a mostrar arrogância e falta de tato. Para Leopold, ele escreveu de Mannheim, em 1778: “Deixo isso para as pessoas que nada podem fazer a não ser tocar piano. Eu sou um compositor e nasci para ser um Kapellmeister”. Em segundo lugar, a complacência e a falta de talento para aspectos práticos (especialmente no campo financeiro), decorrentes da superproteção do pai na infância (o elemento que mais modelou a sua personalidade, segundo Lechevalier), formaram uma combinação ruim na vida de Mozart. Finalmente, ele se tornou extremamente sensível quanto ao seu valor na sociedade, queixando-se de não ter a companhia de pessoas que, apesar de sua classe social mais alta, não eram intelectualmente ou moralmente superiores a ele.

Mozart exibindo a comenda recebida do papa, que lhe deu o título de Cavaleiro ("Ritter", em alemão).
Mozart, com 21 anos, exibindo a comenda recebida do papa Clemente XIV aos 14 anos de idade, que lhe deu o título de Cavaleiro (“Ritter”, em alemão).

A recusa persistente de Mozart em usar o título nobiliárquico da Ordine dello Speron d’Oro que foi conferido pelo papa Clemente XIV (1705-1774) – ao contrário do compositor Christoph Willibald Gluck (1714-1787) que, tendo recebido a mesma comenda, intitulou-se “Ritter von Gluck” por toda a vida – é um sintoma de não-identificação com a classe aristocrática. Wolfgang tinha o direito de assinar “Ritter von Mozart”, se preferisse. Mozart tinha forte desejo de ser reconhecido e aceito como igual pelos círculos cortesãos aristocráticos – mas exclusivamente pela sua importância como músico, e não pelo título. Como tal reconhecimento lhe foi negado desde as suas primeiras tentativas de conseguir uma colocação, o compositor certamente tinha sentimentos muito negativos a respeito da sociedade dominante. Não é improvável, sugere Norbert Elias, que tal agressão reprimida se refletisse nas referências verbais do compositor às funções animais. Por sinal, o desejo de ser aceito por seus méritos foi certamente uma das principais razões para o ingresso de Mozart na maçonaria, o que lhe deu a oportunidade de interagir em condições de igualdade com muitos membros das classes mais altas.

Mozart com Madame de Pompadour
Mozart, na infância, sendo recebido em Versalhes por Jeanne-Antoinette Czernichovscki Poisson (1721-1764), mais conhecida como Madame de Pompadour, cortesã francesa e amante do Rei Luís XV da França, considerada uma das figuras mais emblemáticas do século XVIII.

A obra de Mozart foi, em grande parte, caracterizada pela sintonia com os círculos aristocráticos, não apenas através da adaptação consciente e deliberada em seu trabalho para imperadores, reis e outros patronos, mas também através do involuntário ajustamento de sua consciência artística a tal tradição musical. Ao mesmo tempo, ressalta Elias, em sua estrutura de personalidade, especialmente no que se referia às relações sociais, continuou sendo um homem da pequena burguesia – quando as pessoas enfrentavam seus semelhantes muito mais diretamente, no que diz respeito a gostar ou não gostar. Ainda assim, como salienta Lechevalier, Mozart sempre teve consciência do seu talento excepcional, e nunca suportou ser humilhado.

A dependência de Leopold durante a infância tornou a transição de Mozart para a vida adulta muito problemática. Ainda assim, ele era incansavelmente sociável e adorava rir, dançar, cartas, tiro e bilhar. Quando jovem, seu humor exibia uma frivolidade desenfreada. Talvez os traços de caráter mais atraentes na vida adulta de Mozart fossem o seu otimismo quase incansável, a sua coragem de perseverar nas dificuldades pessoais e sua determinação de preservar sua integridade artística. Embora ele ocasionalmente expressasse desespero, suas cartas à esposa exibia uma notável capacidade de confortar e encorajá-la, mesmo quando seu desânimo dificultava a sua amada atividade de compor.

O escritor norte-americano Saul Bellow, em Mozart: une ouverture (Tout compte fait, 1995), depois de analisar o caráter de Mozart, simplesmente renunciou a encontrar uma explicação para ele. O enigma do seu caráter, escreveu ele, ultrapassa-nos. Dissimula-se por trás da sua música e nunca o alcançaremos profundamente. Bellow queria dizer que a música ocupava permanentemente a sua consciência, e que só interrogando-a é que se conhecerá a verdadeira personalidade de um músico de tal magnitude.


Este post tem 27 comentários.

27 respostas para “A humanidade do divino Mozart”

  1. Foi para mim difícil associar um gênio como Mozart a uma personalidade tão “imatura”, que fala palavras grosseiras e se diverte com indiretas de cunho sexual. Ao assistir Amadeus, fiquei perplexa. Não entrava em minha mente que um compositor famoso e dono de obras tão sublimes pudesse ser tão infantil, e pior… ter aquela risada. Isso tudo por causa de um estereótipo que nos é arraigado. Como imaginamos um gênio da música erudita e da ópera? Com certeza um homem educado, que domina um linguajar culto e que carrega um porte elegante.
    Mas quando nos desprendemos de qualquer ideal e aceitamos o real, vemos que é normal que um homem como Mozart tenha esse tipo de comportamento. Afinal, ele era um gênio, mas também era humano. Tinha seus defeitos.
    É interessante e válido discutir a personalidade do grande compositor. Mas, a obra e o legado que Mozart deixou faz com que suas falhas de personalidade se torne um mero detalhe irrelevante de sua figura como um todo.

  2. Amanda,

    Mas neste caso o que eu percebo é que, a despeito do choque de encontrarmos um Mozart fazendo brincadeiras grosseiras, na verdade há uma contextualização cultural que nos explica que esse tipo de brincadeira era aceitável dentro de certo meio. Por isso mesmo as brincadeiras nesse tom ficavam confinadas às suas companhias burguesas, não invadindo ambientes em que não seriam apreciadas. Isso significa que se tratavam mais de um tipo de interação de determinado círculo social de Mozart do que tanto de um traço da personalidade dele. Sei que não é a analogia perfeita, mas eu compararia essa dinâmica de adaptação do tom das brincadeiras a reuniões de homens respeitáveis em um bar, que não raras vezes dizem coisas que obviamente não diriam na frente das mulheres (e, claro, isso também pode acontecer da parte das mulheres nas suas próprias reuniões).

    Sobre o filme Amadeus, de todo modo, note-se que ele ainda é um grande exagero se for visto de uma perpectiva histórica, então acho que não deve ser tomado como referência.

  3. Prezada Amanda,

    Obrigado pelo comentário, que reforça a motivação do post. Sua reação diante do filme Amadeus foi e continua sendo bastante comum aos que o assistem. O Mozart apresentado no filme não corresponde exatamente ao Mozart histórico, e mesmo o Mozart histórico vivia em outra época, com outros padrões e relações sociais, como foi colocado por Leonardo acima, e pelo post. Isso significa que, na época dele, certos comportamentos e expressões atualmente estranhas/inadequadas eram perfeitamente aceitáveis e rotineiras. Da mesma forma, certas coisas de nossa época seriam muito chocantes para a época de Mozart. É muito importante termos em mente esses detalhes ao analisarmos a vida do grande Mozart, cuja música é a mais perfeita imagem do seu caráter.

    Saudações mozartianas!

  4. Assim como a Amanda, eu também me impressionei com a personalidade de Mozart, e o que Frederico Toscano e o Leonardo disse é verdade, naquela época era normal tal atitude, mais não deixa de impressionar, nós imaginamos uma pessoa culta, bem comportada, que fala bem, que se comporta bem em qualquer ocasião, mais Mozart tinha um caráter diferente, do tipo que nós não imaginaríamos que seria, mais seu caráter não influenciava na sua musica negativamente, mais positivamente, essa sua personalidade só nos mostra a grande capacidade de Mozart de criar, inventar, imaginar e ir a “terra do nunca” como ninguém nunca jamais foi. :)

    Eu acho que a personalidade de Mozart era mais influenciada pela sua mãe do que pelo seu pai, como vimos no artigo, até a própria mãe de Mozart escrevia cartas com brincadeiras, para o marido, o que me faz pensar que Mozart tenha herdado o humor de sua mãe e também, entre os seu amigos que gostavam de suas brincadeiras, tornando esse seu lado piadista, engraçado, mais evidente, se, se não fosse por isso acho que Mozart seria diferente.

  5. Caro Heber,

    Grato por sua opinião. Apenas esclarecendo: a influência determinante de Leopold sobre a personalidade de Mozart foi exercida no sentido de contribuir para a sua formação, não no sentido de torná-lo semelhante a ele.

    Abraços!

  6. Herman Hesse retratou isso muito bem no seu romance “O lobo da estepe”. Apesar da personalidade dele ser um enigma, tenho para mim que Hesse foi quem melhor explicou essa ambiguidade não só dele mas de todos nós.

    Abraços!

  7. Ótimo post, Fred. Sobre a questão de ser “normal para época” eu gostaria de citar o escritor Marquês de Sade, que ainda continua insuperável no quesito escatologia, e Choderlos De Laclos, cujo “Ligações Perigosas” retrata como funcionava as picantes relações aristocráticas. No entanto, ainda sim, não penso que o caráter de Mozart fosse “normal ou convencional” (nessa característica só conheço Haydn). Como muito bem você colocou, Mozart sempre foi muito mimado e não tinha realmente papas na língua. No filme Amadeus, que não é tão inverossímil assim, vemos Mozart enfrentando personalidades importantes (ex:o arcebispo Colloredo) e subjugando quase todos os seus colegas. A música nem sempre traduz o espírito e a personalidade do compositor.

  8. Valeu a lembrança de Hesse, Doni.
    Registrando que Mozart também aparece em O Lobo da Estepe
    Abraços!

    Meu caro amigo Carlos,
    Lembrei de você ao comprar recentemente a caixa com sinfonias de Mozart gravadas por Davis e a Staatskapelle Dresden (Decca). Não esqueci essa valiosa indicação sua.
    De fato, Sade é hors concours nessa área de atuação… rs. Dizem que Laclos vivia em tanto tédio nas guarnições em cidades do interior que se dedicou à literatura, mas acho que, para ter tanta “inspiração”, a vida dele não devia ser tão pacata assim… rs. Os relatos em As Ligações Perigosas são tão criteriosos que houve quem pensasse na época que se tratava de relatos escritos por personagens reais. Quanto a Mozart, devemos considerar que se tratava de uma pessoa obviamente apta para viver em sociedade – nada perto de um débil inválido, como alguns já pensaram. Apesar de suas dificuldades em lidar com assuntos domésticos, como as finanças, instalou-se em Viena, lá se casou, formou família e construiu suas relações profissionais relativamente bem-sucedidas. Tinha muitos amigos e admiradores em todas as classes, inclusive distantes (em Praga, por exemplo). Evidentemente, como qualquer pessoa, ele tinha traços de personalidade positivos e negativos, neste caso frutos basicamente da educação recebida do pai (há quem defenda que Mozart também sofria da síndrome de Tourette, no que há sérias controvérsias). Como eu disse acima, o filme Amadeus não retrata exatamente o Mozart histórico, mas traz, sim, algumas características reais do compositor, como esta que você indicou, de enfrentar a aristocracia e ter consciência da qualidade da sua música, chegando a ser intolerante com alguns colegas de profissão (isso ele trouxe do endeusamento que recebeu quando criança e do pai, que era muito seletivo). Concordo que uma música nem sempre traduz a essência do compositor, geralmente quando se trata de encomendas despretensiosas para eventos formais, bailes etc. Ainda assim, é possível perceber traços pessoais de rigor no método, criatividade, fontes de inspiração, originalidade e atitude de forma geral em relação à sua produção artística. Acredito que, quando consideramos a produção dos grandes compositores, podemos encontrar nas suas obras-chave sua marca exclusiva, com reflexo de sua personalidade e contexto vivido.
    Abraços!

  9. Fred, grato por sua observação. Sobre o que podemos pinçar da personalidade de Mozart em sua música, creio que foi Karl Bohm que notou uma “sombra” em toda produção musical do compositor, inclusive nas peças mais alegres. Note que até nos allegros há alguma frase musical triste ou contemplativa. Não podemos esquecer também a fixação que Mozart tinha com a morte (nas cartas). E no último ano (1791) de vida parece que Mozart pressentia seu fim (Mozart ficou muito comovido na despedida de Haydn, que naquele momento iria para Londres. O velho compositor pensou que Mozart temia por sua vida).
    abraço,

    p.s.: Infelizmente perdemos Sir Colin Davis esse ano.

  10. Extamente, Carlos! Böhm comenta isso no valioso documentário de uma hora que vem em dos seus DVDs com as sinfonias de Mozart, pela DG. Bem lembrada a questão dos pensamentos fúnebres de Mozart no final de sua vida. Acredito que, de todos os observadores que conviveram com Mozart, talvez Joseph Lange, marido de sua cunhada Aloysia, foi quem teve a maior compreensão dessas aparentes incoerências de personalidade comentadas no texto. Lange sugeriu que algum comportamento imaturo e fútil que Mozart apresentasse era um subproduto da intensidade criativa que cercava o seu processo de composição. Relatou ele que, nessas ocasiões, Mozart, às vezes, falava de maneira confusa e desconexa e, eventualmente, fazia brincadeiras que não se esperaria dele. Lange disse que, nessas horas, Mozart encobria sua tensão interior por trás da frivolidade superficial. Outra característica notada nele era a sua habilidade para compor acima das pressões emocionais. Eric Blom chama isso de “insensibilidade de gênio”, citando o exemplo da cena de Mozart trabalhando no Quarteto em Ré menor (KV 421), enquanto sua esposa estava em trabalho de parto no cômodo ao lado. Andrew Steptoe, grande pesquisador mozartiano e professor de psicologia da Universidade de Londres, diz que é pouco provável que as dificuldades financeiras e profissionais tenham afetado o processo de composição de Mozart. Acha que, na verdade, isso recebia reflexo do seu estado de saúde física [se bem que, no fundo, isso podia haver relação com tais dificuldades] e de sua esposa, sendo sua relação com ela um dos principais fatores que moldaram sua personalidade e vida adulta. Ainda assim, uma fantástica característica de Mozart era a confiança em sua própria criatividade. Abração!

  11. Mestre, parabéns pelo belíssimo post sobre o lado, digamos, menos angelical de Mozart e pela oportuna lembrança de Norbert Elias. É uma grande pena que Elias não chegou a completar seu livro, planejado para o bicentenário da morte de Mozart, em 1991. Mas é importante lembrar que suas anotações estavam destinadas a fazer parte de um projeto ainda mais ambicioso, um livro com o título provisório “O Artista Burguês na Sociedade Aristocrática”.

    No livro não realizado, a ênfase seria, talvez, menos a linguagem escatológica de Mozart e mais suas relações problemáticas com a nobreza. Nas suas óperas com Da Ponte, Mozart tematizou claramente sua aversão à aristocracia, mas, mais importante, ele tampouco escondeu sua simpatia pelas camadas menos favorecidas da sociedade. Agora vou especular: pra mim, sua linguagem vulgar tem também a ver com sua identificação com o “povinho”. Ou, como disse recentemente o maestro Bruno Weil: “ao contrário de Beethoven, que tende a idealizar o ser humano, Mozart mostra, em suas óperas, as pessoas como elas são. Com isso, ele nos toca profundamente.”

    Quanto ao Mozart “boca-suja”, que tanto já ocupou freudianos de todos os matizes, este não deprecia nem o homem, nem o compositor. Pelo contrário, torna-o mais humano, mais próximo a nós, e por isso, mais admirável. Abs.

  12. texto muito bom.
    Os músicos mais atentos às questões históricas costumam se arrepiar com as versões cinematográficas da vida dos compositores. É claro que, ao querer falar da vida de Mozart, um filme de duas horas vai reunir informações e concatená-las de um modo que sirva à fluidez do roteiro e não à Norton Anthology of Western Music.
    O filme Amadeus, que, aliás, é ótimo, se visto sem as lentes para minúcias históricas, é baseado numa peça do dramaturgo Peter Schaffer, que por sua vez se baseou na peça de Mozart e Salieri (1830), de Pushkin, que já abordava o conto apócrifo de que Salieri teria sido o algoz de Mozart. Pra completar a ciranda, a peça de Pushkin foi a base do libreto da ópera Mozart e Salieri, de Rimski-Korsakov, em 1897.
    Amadeus não deveria ser visto como uma biografia de Mozart, mas como o retrato da inveja e da admiração. até porque Salieri era bem-sucedido e respeitado numa sociedade que prezava por músicos submissos (e que “conhecessem” seu lugar social) como ele, e não outsiders (termo usado por Norbert Elias) como Mozart.
    Por isso, Salieri talvez nem tivesse inveja de Mozart, mas assim como Haydn, provavelmente ficava perplexo diante das obras mozartianas.

  13. Caro Fábio,

    Obrigado pela mensagem e atenção, sempre nos estimulando. Realmente é uma pena que o grande Norbert Elias não tenha terminado a sua obra mozartiana. O mesmo aconteceu com Stanley Sadie, que estava escrevendo uma profunda biografia de Mozart, mas faleceu na metade do projeto. O resultado parcial foi publicado como Mozart: The Early Years, 1756-1781 (Norton, 2005), que recomendo fortemente. Sem dúvida, Mozart tinha familiaridade com as diversas camadas da sociedade, incluindo as mais simples. Desde criança, mesmo estudando intensivamente, sua família era muito sociável. Tinha amigos de várias classes, todas as idades e ambos os sexos, que o chamam quase todas as tardes para passear, praticar tiro ao alvo, jogar cartas, ir ao teatro, tocar e dançar. É um mito a idéia de que Mozart era uma criança solitária, que não fazia nada além de estudar música. Recreação, atividades físicas e ar puro eram valorizados nos hábitos familiares. Essa rica experiência de Mozart nos vários estratos da sociedade desde a infância, conhecendo suas intimidades, deu-lhe uma habilidade diferenciada ao caracterizar suas personagens, especialmente nas óperas de Da Ponte e em Die Zauberflöte. Pelos relatos que temos, Mozart tinha comportamento e linguagem bastante simples na vida doméstica, sabendo, porém, portar-se adequadamente em eventos aristocráticos.

    Prezado Joêzer,

    Agradeço sua contribuição ao tópico. De fato, devemos ter em mente que Amadeus se trata de uma obra cinematográfica, com todas as liberdades que tem direito. Neste caso, como você destacou, o filme ainda tem vínculos com peças teatrais, que também possuem suas respectivas doses de ficção/romantismo. A questão é que para a esmagadora maioria dos espectadores de Amadeus o filme acabou servindo como a maior referência biográfica do compositor… Reverter os prejuízos causados por esse entendimento distorcido dos fatos é uma tarefa nada fácil, mas aqui estamos dando nossa contribuição.

    Abraços a todos.

  14. Joêzer e Fred,

    Apesar de ser uma ficção, há certos ingredientes em Amadeus que realmente existiram. De fato, Salieri confessou ter matado Mozart por envenenamento, mas essa confissão foi feita quando o compositor já havia sido diagnosticado com demência. Não podemos negar também que o maior admirador de Mozart, na época, também foi Salieri, e para um compositor medíocre (diferentemente de Haydn) não deve ter sido fácil. Em geral, um compositor medíocre não tem um bom ouvido…mas Salieri tinha um. Foi um dos primeiros a perceber a magnitude de Mozart.

    A questão Salieri e Mozart, o medíocre e o grandioso, vale para todas as áreas humanas. Não é uma mera questão de inveja, mas uma percepção aguçada de valores. Infelizmente vivemos uma época de uma relativização generalizada nas artes, poucos tem coragem de ver uma quadro ou ouvir uma peça musical e dizer “que coisa horrível”.

  15. Caro Carlos,

    Sem dúvida, Amadeus traz elementos concretos da biografia de Mozart. Como mostra o filme, Mozart foi uma criança prodígio, que viajava para se exibir a reis, nobres e autoridades da Igreja; era um grande virtuose do teclado e violino; faleceu jovem, aos 35 anos, e realmente foi enterrado num enterro simples em vala comum; havia uma rivalidade profissional entre Mozart e Salieri, ao competirem nas encomendas reais e aulas a nobres; alguns autores sérios, como Robbins-Landon, defendem que Salieri realmente dificultou o acesso/aceitação dos trabalhos de Mozart aos decisores da corte; Mozart acreditava ter sido envenenado nos seus últimos momentos de vida, e havia suspeitas naturais sobre Salieri, diante da rivalidade conhecida no meio artístico; após a sua morte, esses boatos dominaram a opinião pública e o próprio Salieri assimilou a culpa na sua demência, como colocado; Mozart eventualmente tinha comportamentos excêntricos, como relatou Lange e outros; ao final da vida, a família Mozart enfrentava dificuldades financeiras, entre outros dados/fatos verídicos. Por outro lado, o grande erro do filme foi construir o envolvimento de Salieri com a encomenda do Requiem. Todo o filme é canalizado para isso, exibindo cenas com a inveja de Salieri em várias ocasiões como motivação para acabar com a vida de Mozart. Na verdade, Salieri era assíduo espectador de apresentações das obras de Mozart em Viena; regeu obras dele lá e em Praga; não escondia a admiração por Mozart ao próprio, como no famoso relato deslumbrado de Salieri ao assistir Die Zauberflöte. Sobre a arte de Salieri, acho apenas que “medíocre” ficou muito pesado… Considero o italiano um compositor de talento razoável, como podemos conferir na sua ópera Europa Riconosciuta – magnífica do começo ao fim. Concordo contigo sobre a perspicácia de Salieri e a sua lucidez ao valorizar a qualidade dos trabalhos de Mozart. Quanto à relativização das artes, no que assino embaixo, a coisa chegou a tal ponto que dizer que algo é ruim/horrível virou sinônimo de brutalidade e ignorância – quase um risco de vida!

  16. Caro Fred,

    Mas o Requiem, por ter sido realmente uma encomenda secreta, foi o ponto culminante na própria vida e morte de Mozart. O próprio Mozart ficou transtornado com a misteriosa situação. É natural que o filme jogue com essa possibilidade, apesar de Landon, no seu precioso livro “1791 – o último ano de Mozart”, nos convencer que a encomenda foi feita pelo apaixonado Conde von Walssegg, que entristecido com a morte prematura da esposa, gostaria de ter um Réquiem de “sua autoria” dedicado à amada.

    Sobre Salieri medíocre, considerando sua importância e sucesso na aristocracia, soa realmente pesado. Mas ainda sim, perto de Mozart, Salieri evapora como uma gota em ferro quente.

  17. De fato, Carlos, foi uma temática muito tentadora para um filme relacionar Salieri ao mistério da encomenda do Requiem. O livro que você indicou de Robbins-Landon é a melhor referência que conheço sobre o contexto de composição da obra, com ricos detalhes muito bem fundamentados. A peça teatral Amadeus de Peter Shaffer, que serviu como roteiro do filme (lançado em 1984), é de 1979, que, por sua vez, baseia-se na peça Mozart e Salieri de Alexander Pushkin, publicada em 1832, em cima da forte suspeita de envenenamento de Mozart por Salieri. Em 1897, Rimsky-Korsakov musicou e adaptou o texto de Pushkin para sua ópera Mozart e Salieri. Isso mostra que a versão da morte de Mozart apresentada pelo filme vinha tendo muita força ao longo do tempo. A revelação da encomenda do Requiem pelo conde Franz von Walsegg-Stuppach só ganhou peso substancial com as pesquisas de Robbins-Landon.

  18. Frederico,

    Agradeço pelo post. A obra de Mozart é reflexo e o melhor produto da sua personalidade.

    Marcelo José

  19. Puxa! Que sensacional destrinchamento de Mozart… Pena que o espaço é pífio para de discutir cuidadosamente todos os aspectos psicológicos, sociais e históricos acerca deste homem.
    Sempre me foi um mistério.
    Acho engraçado pensar em detalhes como os sentimentos negativos acerca da sociedade (e um pouco até da figura do pai) que Mozart cultivava, e tentar relacionar isso com as interpretações que temos hoje em dia de sua obra, baseadas no tratado de seu pai. E se Mozart tivesse um complexo “do-contra”? Hahaha
    Estou só pondo uma situação que seria extremamente interessante, engraçada e um tanto trágica ao mesmo tempo… Hehe

    De qualquer forma, muito obrigado pela postagem, continuem fazendo esse trabalho maravilhoso.

    Abraços,
    João P. F.

  20. Saudações.

    Show de post.
    Concordo com o colega F.S. quanto ao fato de que, sendo mais “humano”, minha admiração pelo boca-suja Mozart aumenta ainda mais. :-)

    Abs!

  21. Uma biografia interessante de Mozart foi escrita pelo escritor alemão Wolfgang Hildesheimer. Logo no começo ele afirma que o único traço comum às tentativas de criar uma imagem de Mozart é o fracasso. Um discussão (em alemão) deste livro está em
    http://www.literaturkritik.de/public/rezension.php?rez_id=9109
    É argumentado que para tentar descrever uma pessoa, ainda mais um gênio como Mozart, o autor precisa, primeiro, se entender a si mesmo, de um ponto de vista psicanalítico.
    Hildesheimer comenta que as esquisitices de Mozart não devem, como fizeram a maioria dos biógrafos, ser colocadas de lado como algo secundário.
    As cartas de Mozart escondem uma pessoa isolada sem muitas alegrias.
    No final de sua vida as pessoas, inclusive os amigos mais próximos, se afastaram de Mozart. Talvez devido a suas esquisitices.
    Segundo Hildesheimer, nem Viena nem Salzburg foram aquelas maravilhas inspiradoras para Mozart. Ele não se sentia bem nem foi tão bem aceito nestas cidades.
    Mozart tinha a capacidade de escrever uma composição e, na cabeça, já ir compondo as próxima!

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