19abr 2017
A+ A-

A instituição do virtuosismo

Locatelli, pioneiro na ênfase ao virtuosismo do violinista

Geralmente associamos o virtuosismo em música a grandes instrumentistas que se destacaram com excepcional domínio técnico a partir do início do século XIX – quando passaram a ser mais conhecidos como virtuosi. Evidentemente, grandes músicos se destacaram nos séculos anteriores pela execução dos seus instrumentos, mas foi no Romantismo que eles brilharam. Pouco se sabe, porém, que o virtuosismo foi instituído oficialmente no ano de 1733, em Amsterdam, com a publicação da obra L’Arte del Violino (“A Arte do Violino”) por Pietro Antonio Locatelli (1695-1764).

O professor Albert Dunning, da Università degli Studi di Pavia, na Itália, merece todos os nossos aplausos ao contribuir fortemente para ressuscitar o interesse pela obra de Locatelli, publicando, entre outros trabalhos, o catálogo temático do compositor em parceria com outros pesquisadores na coleção Opera Omnia. Trago para este post algumas informações de Dunning publicadas pelo selo Hyperion no álbum ao lado, que sintetizam a importância estratégica desse compositor para a história da música.

L’Arte del Violino foi publicada como Opus 3 de Locatelli, tornando-se uma das mais importantes referências musicais do início do século XVIII. Trata-se uma coleção de 12 concertos para violino, cordas e baixo contínuo, tendo um capriccio para violino solo no primeiro e no último movimento de cada concerto, como uma espécie de cadenza (exemplo no vídeo abaixo).

Em música, o termo capriccio (“capricho”) se consolidou como um tipo de composição caracterizado pela forma livre, geralmente de caráter rápido, intenso e virtuosístico. Cadenza (“cadência”), no mesmo sentido, refere-se a uma passagem virtuosística, quase sempre baseada em temas expressos anteriormente na obra (exemplo abaixo), na qual o solista tem oportunidade de mostrar sua técnica.

L’Arte del Violino: Concerto nº 9, em Sol maior

I. Allegro –

Wallfisch / The Raglan Baroque Players / Kraemer / Hyperion:

II. Capriccio

Wallfisch / The Raglan Baroque Players / Kraemer / Hyperion:

Corelli, renomado violinista e professor disputado em sua época

É importante trazer aqui algumas informações sobre a trajetória e formação do compositor. Locatelli nasceu em 1695 em Bergamo, no norte da Itália, onde estudou. Após breve atuação profissional na Basílica de Santa Maria Maggiore em sua cidade natal, viajou no outono de 1711 para Roma, provavelmente para continuar seus estudos com o consagrado Arcangelo Corelli (1653-1713). Há dúvidas se Locatelli realmente teve aulas com o mestre, que já se encontrava muito doente em 1712 e morreu em janeiro de 1713. É mais provável que o jovem Locatelli tenha estudado, de fato, com o violinista e compositor Giuseppe Valentini (1681-1753), cuja inclinação ao virtuosismo é amplamente documentada, segundo Dunning. Esse aspecto influenciou decisivamente a música de Locatelli.

Valentini deixou fortes traços de virtuosismo em sua obra

O jovem compositor trabalhou com Valentini algumas vezes como músico de câmara para uma família aristocrática romana. Locatelli deixou Roma em 1723 e no outono de 1729 estava morando em Amsterdam, onde viveu confortavelmente (sem emprego fixo!) até a sua morte, em 30 de março de 1764. Todas as suas obras foram publicadas na Holanda. Os anos entre sua partida de Roma e sua instalação em Amsterdam foram anos de viagens de cidade em cidade, como Mântua, Munique, Dresden, Berlim e Kassel, onde ele foi calorosamente admirado por seu extraordinário talento ao violino. Sua arte impressionante lhe permitiu, inclusive, ter certas liberdades com cabeças coroadas que beiraram a imprudência. Aparentemente, Locatelli esteve em Veneza algumas vezes entre 1723 e 1729, como ele mesmo registrou ao dedicar a edição de sua L’Arte del Violino a um colega veneziano.

Bach seguiu a tradição dos “livros de arte” na música

Dunning lembra que L’Arte del Violino é um dos chamados “livros de arte” que se difundiram nos séculos XVII e XVIII – como aconteceu, por exemplo, com Die Kunst der Fuge (“A Arte da Fuga”), de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Não se trata de um volume de peças musicais sistematicamente organizadas de acordo com “problemas” na forma de estudos, mas uma coleção de 12 obras musicais autônomas que, juntas, apresentam a panóplia das possibilidades técnicas do violino. Obviamente, isso se aplica ao que era tecnicamente possível para Locatelli – e naquela época, provavelmente, para mais ninguém…

Numa análise mais próxima, Dunning constata que L’Arte do Violino ainda representa uma tentativa de estender os limites dos extremos da técnica. O mais impressionante são as altas posições das notas exigidas (até a 16ª posição) o que causou uma revolução no uso do violino (no seu Op. 4, Locatelli atinge a 22ª posição!). Dificilmente perceptível ao ouvinte (se for bem feito), mas ainda mais difícil para o solista, são as muitas ocasiões em que a mão esquerda está sobrecarregada: as dificuldades na entonação são notórias. Menção também deve ser feita às freqüentes cordas duplas (por exemplo, no segundo capriccio do segundo concerto, no áudio abaixo), a escrita polifônia (segundo capriccio do nono concerto), os trinados (segundo capriccio do terceiro concerto) e o difícil uso do arco (segundo capriccio do primeiro concerto, no áudio abaixo). Um fator complicador para todas essas dificuldades é o tempo geralmente rápido.

L’Arte del Violino: Concerto nº 1, em Ré maior

V. Capriccio

Wallfisch / The Raglan Baroque Players / Kraemer / Hyperion:

L’Arte del Violino: Concerto nº 2, em Dó menor

V. Capriccio

Wallfisch / The Raglan Baroque Players / Kraemer / Hyperion:

Paganini, o maior virtuose do violino

Em L’Arte del Violino encontra-se, essencialmente, o virtuose por excelência – tipo de músico que se concentra em produzir a máxima impressão, que quer ser visto e admirado: o artista e seu excepcional talento técnico como centro das atenções. Em Berlim, Locatelli tocou para o rei da Prússia com um casaco de veludo azul bordado com fios de prata, usando anéis de diamantes e uma espada. De acordo com alguns aristocratas ingleses que encontraram Locatelli em Amsterdam, em 1741, ele era um “terremoto”. O precursor de Niccolò Paganini (1782-1840) – maior virtuose do violino de todos os tempos – tocava as peças mais difíceis com serenidade excepcional, nunca retirando seu casaco – apesar de sempre se apresentar de pé, às vezes por três horas num único evento.

O metódo e o estilo de Vivaldi também influenciaram Locatelli

Com a publicação e disseminação de L’Arte del Violino em 1733, a obra tornou-se um desafio para os violinistas, ao instigá-los a superar a lacuna entre a técnica do músico mediano e os padrões estabelecidos pela Locatelli. Além disso, o conjunto de concertos também é marcado pela beleza musical, com destaque para os inovadores capricci. Os concertos normalmente têm três movimentos no formato rápido-lento-rápido. Os movimentos rápidos sempre adotam o estilo de outra grande influência de Locatelli: Antonio Lucio Vivaldi (1678-1741), alternando soli e tutti. A luz do padre veneziano pode ser bem percebida no Concerto nº 11 do Op. 3 (áudios abaixo).

L’Arte del Violino: Concerto nº 11, em Lá maior

I. Allegro –

Wallfisch / The Raglan Baroque Players / Kraemer / Hyperion:

II. Capriccio

Wallfisch / The Raglan Baroque Players / Kraemer / Hyperion:

Locatelli teve, por sua vez, grande influência sobre a música francesa, na qual os primeiros grandes desenvolvimentos na técnica violinística ocorreram, segundo Dunning. Não pode ser provado que Paganini conheceu os capricci de Locatelli, mas certas semelhanças entre os dois conjuntos – como o número de capricci compostos por cada um, 24 – tornam isso muito provável (vídeo abaixo, com o Capriccio nº 24 de Paganini).

Sem a contribuição de Locatelli muitos aperfeiçoamentos na técnica de violino dificilmente seriam possíveis. L’Arte del Violino foi um catalisador significativo nos processos músico-históricos que fizeram a primeira metade do século XIX ser chamada de Era do Virtuose.


Este post tem 8 comentários.

8 respostas para “A instituição do virtuosismo”

  1. Ainda há Rode, F. Vale, Ysaÿe e et cetere. Uma séria de postes acerca do virtuosíssimo serial excepcional.
    Ótimo poste!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.