19abr 2017
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A música inglesa

Pintura de serviços luteranos no altar da Torslunde Kirke, Dinamarca

Alemanha

A reforma protestante foi o mais importante catalisador da sociedade alemã em toda sua história. Dão testemunho disso as grandes convulsões geradas pela revolta dos camponeses, a intensa atividade literária que se seguiu, tanto no círculo dos cantores de Nuremberg quanto em muitos outros lugares e ambientes da sociedade alemã. De um certo modo foi o grande surto nacionalista germânico, ou o seu nascimento. Apesar de um estado alemão já existir há muito tempo – o Heiliges Römisches Reich –, este era demasiado latino, ligado ao papado, e não representava a Alemanha como a nação que nascia. Como prova disso, um dito espirituoso do imperador alemão Carlos V: “Falo espanhol com Deus, italiano com as mulheres, francês com meus homens e alemão com meu cavalo” – no ambiente do Renascimento, a Alemanha não representava mais do que isso.

Apenas para ver como se sucedeu uma explosão nacionalista, antes de se afastar completamente de Roma, Lutero e seus seguidores alemães exigiam a realização de um concílio em território germânico. Se, por acaso, há interesses práticos nessa exigência – tendo em vista que as comunicações e transportes, especialmente o transporte transalpino, eram muito deficientes no século XVI – trata-se muito mais de uma questão simbólica, de valorizar a Alemanha que então nascia para o mundo.

Na verdade não chegou a nascer, os eventos subseqüentes, em especial a guerra dos trinta anos, viriam a assegurar a divisão da Alemanha em diversos territórios independentes (o método que se encontrou para preservar a reforma) e de certa forma frear esse renascimento cultural até a Aufklärung. Mas tiveram pelo menos uma grande conseqüência: o desenvolvimento da música nacional alemã.

Pois foi dois séculos antes de Bach que as bases da cultura musical alemã foram fundadas. E nela está o coral luterano, cuja importância é inestimável: ele foi fomentando a criação de músicos nas mais diversas igrejas, criando assim uma cultura de conhecedores e alimentadores de música, em especial desenvolvendo famílias ligadas à música por gerações e gerações e forjando uma cultura musical ampla e abrangente (neste período, no centro musical da época, a Itália, a atividade era desenvolvida principalmente por padres e consistia em um monopólio absoluto do Vaticano). É óbvio que a influência da música de outros lugares foi importante e que a música alemã não permaneceu isolada por dois séculos, mas a reforma gerou uma cultura musical muito diferente da cultura transalpina e que seria responsável, nos anos seguintes, pela obra de Bach e Händel – isso em uma cultura que até então fora quase completamente ignorante aos desenvolvimentos musicais transrenanos e transalpinos.

Inglaterra

Thomas Tallis (1505-1585)

Curiosamente, fato oposto aconteceu na civilização insular: a Inglaterra dos séculos XV e XVI é um dos mais importantes centros musicais do mundo ocidental, centro de várias inovações harmônicas (veja a obra de John Dunstable, por exemplo), formais e instrumentais – foi na Inglaterra que um instrumento de teclado ganhou independência e repertório próprio. É na Inglaterra desse período que vemos as obras brilhantes dos madrigalistas ingleses desafiarem a noção de dissonância da forma mais radical vista até então, é lá que vemos obras extremamente ousadas como o famoso moteto Spem in alium de Thomas Tallis exigir 40 (!) vozes. É a Inglaterra o país de compositores como William Byrd, Orlando Gibbons, John Taverner, alguns dos mais importantes de seu tempo.

Fato curioso, como na Itália, todos estes compositores estavam ligados à igreja Católica, e era a Igreja britânica a responsável pela manutenção e ensino de instrumento e canto para grande parte da população britânica e para ela trabalhava toda a elite musical de sua época: Byrd, Taverner, Tallis, etc.

Não era uma música simples, já falei da ousadia harmônica que caracteriza toda a escola, de Dunstable levando à frente o uso de resoluções em terças, de trítonos e sétimas menores nos madrigalistas, no uso de uma polifonia cada vez mais refinada em Thomas Tallis. Era também uma música de muita ornamentação e de uma riquíssima tradição instrumental – basta comparar que tal tradição instrumental só viria a vingar do outro lado do Canal muitos anos depois, quase um século.

A reforma inglesa começou como um incentivo para a criação de novas obras – uma vez que todo o hinário teve de ser traduzido, e muitas vezes recomposto, para a liturgia anglicana e o inglês –, mas iria ter efeitos muito mais profundos. O primeiro é que, como foi dito, a elite musical era católica e, com algumas poucas exceções, permaneceu fiel a seu credo, o que fez com que, ainda que compondo música anglicana por obrigação, seus maiores esforços ou se concentrassem na silenciada liturgia católica ou migrassem para outras formas de música. Num momento seguinte, com o fim da geração que viveu a reforma, a música inglesa migrou quase que completamente para a música profana: é no teclado, no madrigal, nas canções que vemos o gênio de Gibbons, Dowland e Bull florescer, não na música anglicana, que já estava em completa decadência, mal havia surgido.

Mas o pior estava por vir, no período da guerra civil e da Commonwealth of England a fúria dos puritanos contra aquilo que viam como parte dos excessos do catolicismo foi radical e os coros das igrejas foram dissolvidos, os órgãos silenciados e qualquer tipo de música completamente banido. A música que experienciara um tímido impulso pela liturgia anglicana agora estava proscrita das igrejas.

O resultado foi óbvio e imediato e significou o fim absoluto de qualquer forma de música na Inglaterra, ainda que não houvesse proibição de música profana, todas as formas de ensino e propagação foram interrompidas com o fim da tradição musical religiosa e com isso uma brilhante tradição de dois séculos foi devidamente encerrada. Logo depois da restauração, ainda que houvesse casos raros, podemos apenas interpretá-los mais como espasmos do sistema antigo, como, por exemplo, a brilhante obra de Purcell. Mas daí em diante, a Inglaterra ficou praticamente muda por século inteiro.

Oliver Cromwell (1599-1658), por Samuel Cooper

É inestimável o que se perdeu com a aventura de Cromwell, e isso significou o fim completo da música britânica, o que, de certa forma, perdura até hoje. Houve depois de Purcell alguns bons compositores, veja compositores como Elgar e Britten, mas comparado com qualquer outro país da Europa continental, a tradição musical britânica é quase nula. Aquilo em que a Inglaterra especializou-se, e até hoje é uma de suas especialidades, é no patrocínio e financiamento de compositores e instrumentistas continentais, e só pelo incentivo a Händel, J. C. Bach, Mozart, Haydn, Mendelssohn, Brahms, Dvorák, entre muitos outros, que a Inglaterra exerceu alguma importância histórica.

A música faz parte da história religiosa e esta tem uma profunda influência no surgimento e na criação da música. Não apenas ela deriva de práticas religiosas, como estas influenciaram por quase 1000 anos seu desenvolvimento. Poderia prosseguir, comentar como na Rússia o desenvolvimento de uma música clássica foi retardado pela liturgia ortodoxa – não que a música ortodoxa seja irrelevante (não é, pelo contrário) e muito menos que não tenha grande utilidade litúrgica (talvez até mais do que o madrigal de 40 vozes do Thallis), mas a sua fixação e simplicidade são como um empecilho para o desenvolvimento de outras formas de música. Na Rússia a música se desenvolve com a influência da corte ocidentalizada de Pedro II e, principalmente, de Catarina, a Grande, que criou um teatro fixo de ópera, trouxe compositores como Cimarosa, Hasse e muitos outros; ela surge como uma influência ocidental, e vai continuar sempre uma música profana.

Nesses casos,  vemos como a história pode determinar de maneira decisiva a cultura de todo um país.


Este post tem 12 comentários.

12 respostas para “A música inglesa”

  1. Chega um momento em que é impossível não se perguntar o que aconteceu com a Inglaterra pra ela ter ficado de fora de uma fatia inteira do cânone musical, os séculos XVII até XIX. Esse post responde essa pergunta, mas faz uma abordagem muito mais abrangente, da relação da música – mais do que qualquer outra arte – com a igreja, seja isso bom (formação de coros na reforma protestante alemã) ou ruim (repressão dos puritanos na Inglaterra, rigidez da função litúrgica na música russa). Pensar nas artes plásticas e especialmente na literatura nesses mesmos contextos citados deixa essa relação da música com a religião muito evidente, porque enquanto a música entrava em decadência na Inglaterra, a literatura via surgir Shakespeare, quando os teatros encontraram a margem da cidade de Londres pra se desenvolver, independente da igreja.

  2. Excelente post, Bruno – e valioso adendo, Leo! Vale a pena lembrar o heróico papel do sobrevivente (e britânico nativo!) Thomas Arne (1710-1778), que ficou isolado no cenário operístico inglês do século XVIII após a morte de Händel e ainda teve fôlego para manter alguma vida musical em Londres, mesmo mergulhado na tradição italiana (usando textos em inglês). Deixou uma bela obra, como a ópera Artaxerxes, mas é mais conhecido pela autoria (defendida por muitos) do hino nacional britânico (“God Save the King”) e da tradicional canção “Rule, Britannia!”, tocada sempre no final do festival Proms.

  3. Parabéns pelo blog, Bruno.

    Estou lendo todos os posts, já estou na página 16. São textos didáticos e primorosos, mesmo assuntos que eu já conheço mantém o interesse até o fim da leitura.

    Parabéns Bruno, Leonardo, Amancio, Frederico e Fernando.
    O allegro acabou mas o conhecimento continua a ser difundido por aqui.

    Abraço.

  4. “(…) permaneceu fiel a seu credo, o que fez com que, ainda que compondo música anglicana por obrigação, seus maiores esforços ou se concentrassem na silenciada liturgia católica ou migrassem para outras formas de música.”

    As belíssimas missas a capela de William Byrd, a 3, 4 e 5 vozes, compostas para ocasiões particulares (em que a Missa era celebrada às escondidas, por medo das represálias das autoridades reais), corroboram essa afirmação.

  5. Bruno, eu fiquei pensando nessa sua tese de muita coragem. Achei tão forte “o fim completo da música britânica, o que, de certa forma, perdura até hoje.” que até fiquei abalado. Chamar Purcell de espasmo do sistema antigo, ou ponto fora da reta, deixou meu cérebro em parafuso. Principalmente quando vc menospreza a Restauração de Carlos II. Realmente tô precisando rever minhas aulas de história. Sempre achei a Inglaterra a Meca da música, desde do século XVIII até hoje, e não encontro nenhum país próximo culturalmente. Nem mesmo Alemanha, e muiiiiito menos a Áustria. Mas em termos de gênios, eu concordo com você, Inglaterra não foi muito feliz, ou talvez por ser uma país feliz nesse quesito, os gênios sumiram (como disse Dostoievski, “é preciso sofrer”). Mas o “espasmo” Purcell tá em primeiro não só minha lista. E além de Britten e Elgar, não podemos esquecer de alguns compositores talentosos: Ralph Vaughan Williams, Tippet, William Walton, Boyce, Frank Bridge, Mark-Anthony Turnage,Thomas Adès entre outros.

    E sobre músicos nem preciso citar, você sabe que eles estão entre os melhores.

    Falouuuu,

    Carlos
    p.s.: Outra coisa difícil de aceitar é colocar Handel com produto da Reforma protestante.

  6. Bem interessante vermos como as Revoluções Puritanas(vamos aqui usar esse termo para se referir aos embates políticos da Inglaterra nos 1600s) fizeram de uma música tão rica um tabu.

    Vale à pena notar que esse tempo também é o tempo da colonização inglesa da América do Norte e como isso se fez refletir nessas colônias. Como resultado, se, por um lado a tradição protestante de se ler a Biblia individualmente tenha criado uma nação de leitores e escritores, por outro a criatividade musical silenciou-se. Só mais recentemente a música erudita americana se fez aparecer, e mesmo assim timidamente.

    Excelente seu texto.

  7. Nossa esses textos me ajudaram muito! Vou tentar divulgar esse site no face e eu tenho certeza que vai boombaaaaaar….

  8. Bruno,
    Concordo in totum com seu artigo. A Inglaterra da Renascença (Spem in Alium etc) oscilava entre Vaticano e Anglicanismo,a “religião fundada por um divórcio”, como diz a “Titia” da Relíquia de Eça.
    Era grande a música de Gibbons,Tallis, Byrd , virginalistas, e… de Purcell também. Imagino que o “espasmo” Purcell fosse no bom sentido. Suas odes tem cem vezes mais caráter do que teria, 230 anos depois, o esforço do católico Elgar; A imortal grandiosidade dos 24 oratórios “britânicos”de Handel nao teria sido possível sem a influência de Purcell, Podemos aqui esquecer as três religiões envolvidas.
    Falando nisso, uma quarta religião, a ortodoxia russa , pode ter travado certo disparo das formas clássicas em Petersburgo. Mas, em espiritualidade, guardadas as diferenças, os cânticos ortodoxos,atrasados na cronologia, nada devem aos do romano renascimento.
    Sim, no sec. 20, nao é tão pobre a música da Álbion. Temos Toch, H.Brian, V-Williams,Elgar, Holst, R.Simpson, Stainer, Howells, Bax, E. Wellesz(ótimo), e,last but not least , Britten.
    A grande lacuna britãnica é o séc XIX, quando a superpotência vitoriana produziu menos compositores de primeira do que a Hungria ou a Tchecoslováquia. Em compensação, criou grandes orquestras e corais, que acolheram e difundiram Haydn, Mendelssohn e outros.
    A França e Itália dispõem, até hoje, de um time MUITO superior em autores, mas bem inferior em intérpretes.
    A questão “Handel” é obviamente um exagero. Por certo ,nao houve na Britânia outro como o alemão Handel. Mas nao houve no planeta, nunca mais, a fecundidade de Handel e Bach….
    2. Carlos: Em orquestras, corais, intérpretes, posso ver a Inglaterra como rival de Alemanha e Áustria. Em termos de compositores, se a questão fosse ranking, Alemanha Áustria e Itália vencem de goleada, seguidas de França e Rússia. Mas isso é menos importante….

  9. gostaria de saber qual a influencia da musica inglesa plantou na musica ocidental as sementes do tonalismo.

  10. Creio que o propósito do texto era abordar a música como parte da história religiosa no caso particular da Inglaterra (e em comparação a outros países). De todo modo, a canção “Sumer Is Icumen In”, de autoria anônima (talvez W. de Wycombe), composta no século XIII, é apontada como a canção inglesa mais antiga de que se tem notícia.

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