19abr 2017
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Alla turca

Uma das peças mais famosas da história da música é o último movimento da Sonata K. 331 em lá maior de Mozart, marcado na partitura como Rondo (alla turca) e popularmente conhecido aqui como “Marcha Turca”. Ela é uma favorita dos iniciantes no piano, e também aparece frequentemente em filmes e propagandas – seja na sua forma original ou em arranjos os mais diversos e anódinos. Mas, o que é essa peça com esse nome tão curioso, marcha turca?

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/04/09-Faixa-9.mp3|titles=Kv. 331 III. Rondo (alla turca)]

A resposta é desconhecida de muitos ouvintes de música. Mas ela está inserida em uma moda cultural que foi bastante dominante em um breve período de tempo em Viena. Pertence a um grupo de peças musicais que apresentam uma característica em comum que é chamada de “estilo turco”. Esse estilo esteve em voga entre os anos 1770 e 1790 e ele aparece em diversas outras obras do período, de Mozart, Haydn, Beethoven, Gluck e outros compositores contemporâneos. Não é um estilo circunscrito a um gênero específico pois encontramos ele desde a sonata para piano até a ópera, passando pelo concerto para violino e a sinfonia, sua influência foi tão grande que até a manufatura de pianos foi influenciada por ele.

Sem dúvida a peça musical onde esse estilo tem maior presença é na ópera “O Rapto do Serralho” de Mozart, onde 3 números inteiros são marcados pelo estilo (a abertura, o finale e o coro do primeiro ato) sem contar outras influências mais difusas espalhadas pela obra (como em um tema cantado repetidamente por Osmin (Erst geköpft/Dann gehangen)). Não é nada surpreendente, dado a temática claramente turca da obra que Mozart utilize o estilo turco para dar o ar local e exótico para a partitura.

O estilo conta com três características principais: a primeira é uma base rítmica binária bem pronunciada:

Encontramos esse procedimento em todos os exemplos de música “turca”, como fica bem claro em uma passagem da abertura d’O Rapto do Serralho:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/04/01-Die-Entführung-aus-dem-Serail-opera-K.-384.mp3|titles=Die Entführung aus dem Serail, opera, K. 384 I- Overture]

Onde a percussão toca de maneira bem clara essa base rítimica. Outra característica desse estilo turco é o uso bastante característico desses elementos percussivos na música. Isso tem especial destaque nas obras orquestrais, onde uma série de instrumentos que não estão muito presentes na percussão do classicismo são chamados para fazer parte da orquestra, como o triângulo e os pratos.

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/04/ritmo-turco-abertura.mp3|titles=ritmo turco abertura]

É bem provável que a popularidade do estilo turco tenha sido um dos fatores para a introdução desses elementos na orquestra clássica. Pois a partir dos anos 1770 eles vão entrando na orquestra até serem totalmente integrados nela.

Mas o piano não ficou atrás e, como conseqüência da moda da música turca, alguns construtores de piano aproveitaram para construir um piano com esse elementos percussivos evidenciados em um pedal totalmente dedicado a ele. Esse pedal acionava um sistema de pequenos pratos para produzir um efeito análogo aos pratos na orquestra:

Címbalos acoplados em um piano

(Infelizmente eu só tenho notícia da existência desse piano e jamais ouvi para saber o resultado. Não obstante, isso dá uma mostra de como a música turca tornou-se popular no seu breve período de voga, obrigando os construtores a adaptarem o instrumento. Talvez tenha sido pensando num instrumento com essas características que Mozart tenha composto a famosa sonata.)

Outra característica era o uso sistemático de apoggiaturas no tempo forte, como a sonata mostra em profusão:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/04/apoggiature.mp3|titles=apoggiature]

E uma linha melódica flutuante, mas circunscrita a poucos graus conjuntos, raramente ultrapassando uma quinta.

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/04/arabescos-abertura.mp3|titles=arabescos abertura] [audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/04/arabescos-sonata.mp3|titles=arabescos sonata]

Mas o mais fascinante de tudo isso é que todos esses procedimentos eram uma tentativa de imitar um estilo de música real, que é a música militar turca (Mehter Marsi, em turco) da qual temos aqui um exemplo:

[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=ntVtN3g6ERM”]

Assim podemos ver que a célula rítmica básica é diretamente copiada da música turca -sem qualquer alteração-, e também é copiada da música turca a escolha dos instrumentos de percussão e o peso dado aos sopros –em especial oboés e flautas. É possível notar, também, como os outros procedimentos são tentativas de imitar esse tipo musical, os arabescos da música turca se traduzem na melodia instável, mas circunscrita a uma quinta, de que falamos antes (as melodias modais raramente ultrapassam essa extensão). Além disso, as apoggiaturas são uma tentativa de imitar os glissandi dos instrumentos turcos. É claro que o resultado é sonoramente diferente, pois os compositores do período clássico não tiveram o mínimo interesse em imitar a música modal turca – certamente tal harmonia soava para eles como bárbara e primitiva.

Essa era a música tocada pelas bandas janízaras. Os Janízaros eram a “unidade de elite” do exército turco formada basicamente por soldados retirados quando bebês de suas casas em populações de regiões não muçulmanas do império Otomano (ou seja, principalmente gregos e eslavos) e criados para serem muçulmanos totalmente dedicados à guerra.

Essa unidade militar sempre ia à batalha com uma guarnição musical composta por grandes tímpanos, chamados tugs, pratos – instrumento trazido pelos turcos da Ásia central – e uma diversidade de instrumentos de sopro (com e sem palheta, mas sem análogos precisos na música européia). As descrições ocidentais de batalhas sempre enfatizam essa presença musical, ao mesmo fascinante e amedrontadora.

Essa marca militar levou muitos comentadores a dizerem que a origem do estilo turco teria origem no cerco a Viena em 1683, quando o exército turco sitiou a capital austríaca e quando a população teria tido contato com a música militar turca (mehter marsi). Embora a teoria seja válida, parece improvável que o fascínio dos vienenses pela música turca duraria 100 anos de forma escondida para de repente explodir no cenário musical.

A maneira mais plausível para que essa música tenha chegado ao imaginário vienense é que os turcos tenham levado essa banda em alguma missão diplomática a Vienna na metade do século XVIII (referências ao tratado de Carlowitz falham em explicar porque a febre explodiu somente 100 anos depois do evento), um procedimento típico dos turcos na época.

É interessante que o estio em si teve pouca duração, temos vários exemplos em Haydn, Mozart e seus contemporâneos e alguns em Beethoven. Temos também alguns exemplos famosos em Gluck, na Iphigénie en Tauride (coro final do primeiro ato Il nous fallait du sang). Foi uma moda que pouco durou mais de 20 anos, entre 1775 (data do Concerto para Violino no. 5 de Mozart) e 1795, data da Sinfonia no.100 “Militar” de Haydn. Pensando nisso, torna-se extremamente curioso o trecho  “turco” da Nona Sinfonia de Beethoven:

http://www.youtube.com/watch?v=F2lVQlBlDtU

Beethoven está usando aqui uma moda velha de quase trinta anos! Seria como sair hoje na rua com calça boca-de-sino e medalhão no pescoço. Rossini, pouco tempo antes, escrevera uma ópera sobre um tema legitimamente militar e turco (Maometto Secondo, aliás, uma de minhas óperas preferidas do compositor) e o resultado é bastante diferente do estilo do classicismo: os pratos estão lá, mas o ritmo é ternário – a moda já estava totalmente ultrapassada e até esquecida. Beethoven, nessa passagem como em várias outras, está se apegando, no final da vida, a modas e características de seu período de aprendizado em Bonn e de seus primeiros anos de Viena.

A música turca enquadra-se como um exemplo típico do gosto pelo exótico que todas culturas possuem. Não é a única vez em que a Turquia excitou a imaginação dos europeus, um exemplo paralelo, mas totalmente independente, dá-se na comédia Le Bourgeois Gentilhomme de Molière, cujo ponto central é o intermezzo “Grande Cérimonie des Turcs”, que é basicamente uma paródia de uma visita cerimonial turca. A música de Lully  ignorou totalmente qualquer influência da música militar turca (se é que os turcos levaram uma banda para a França) e escreveu a música que acompanha essa cerimônia em estilo puro barroco. Telemann também dedica uma passagem para a música turca na sua suíte Les Nations, mas sem deixar evidente nenhuma dessas características aqui mencionadas.

Esse estilo turco, como podemos ver, é um evento circunscrito a poucas décadas da segunda metade do século XVIII e também geograficamente circunscrito à região de Viena. É natural que ele tenha acontecido em Viena e não, por exemplo, em Paris, pois Viena que teve contato maior com o Império Otomano e, como capital de um estado em freqüente negociação com os turcos – pois o século XVIII vê um relaxamento das tensões turco-austríacas depois de séculos de guerras na fronteira – os contatos culturais, especialmente com um símbolo da turquia como as bandas janízaras, são mais freqüentes. E essa imitação do estilo turco é uma das várias influências estrangeiras na música clássica (há várias outras, como a influência espanhola em Scarlatti a que eu ainda vou dedicar um post) que só deixou de ser uma mera curiosidade histórica porque foi apropriada por três dos maiores compositores de todos os tempos.


Este post tem 10 comentários.

10 respostas para “Alla turca”

  1. Momento “usos na cultura popular”: Beethoven também tem a sua “marcha turca”, sobre a qual escreveu um conjunto de variações (Op. 76), e depois a incorporou na música incidental pra peça “As Ruínas de Atenas” (Op. 113). É uma peça famosa, publicada já na primeira década do séc. XIX (uns 15 anos antes da Nona) e com todas essas características do estilo turco. Aí onde foi que essa música acabou sendo usada, de tão famosa? Na abertura do CHAVES.

    Aqui a versão orquestral nas Ruínas de Atenas: http://www.youtube.com/watch?v=jwxZoq8xuHA

    E aqui a abertura do Chaves: http://www.youtube.com/watch?v=7QGniC_NE-g

    (Y)

  2. Que nobreza de espírito e sensibilidade de quem passa por aqui !amo Mozart,adorei chegar aqui sem querer querendo 🤩🤩😍😍

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