19abr 2017
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Mozart, nas mãos da ciência desde criança

Mozart aos oito anos de idade segurando um ninho de pássaro (ele sempre gostou muito de aves), por Johannes Josephus Zaufallij (1733-1810), 1764/65.

Não chega a ser mais novidade a publicação relativamente constante de trabalhos científicos que relacionam a música de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) ao desenvolvimento da cognição e inteligência, entre outras aplicações – foi nessa onda, por sinal, que surgiu o famigerado Efeito Mozart.

Os centros de pesquisa também têm se dedicado a estudar outros aspectos da vida e obra do mestre austríaco, que vão desde a análise estritamente musicológica das suas centenas de obras, passando por questões sociológicas e históricas, até a investigação de sua saúde e morte, à luz das ciências médicas.

Pesquisando, como exemplo, a base de dados da American Musicological Society (fundada em 1934), que congrega mais de mil instituições acadêmicas, podemos identificar nada menos do que 213 teses de doutorado em musicologia cadastradas diretamente relacionadas a Mozart (seu nome está no título desses trabalhos). O interessante, porém, é constatar que o interesse dos cientistas pelo compositor teve início ainda em vida – na infância do compositor – decorrente do seu talento precoce. Desde então, esse fenômeno sempre foi alvo de investigação pela ciência.

Mozart era conhecido por seus contemporâneos tanto como intérprete quanto como compositor virtuose. Durante as viagens da infância, assombrou platéias em toda a Europa com a destreza de sua execução pianística, enquanto a profundidade de seu conhecimento musical era admirada por especialistas. Seu biótipo franzino alimentava ainda mais o espanto do público, pois aparentava ser mais jovem do que sua idade. Durante esse período inicial, também tocava violino e cantava. O violino sempre ocupou segundo lugar em relação ao teclado e, posteriormente, ele limitou sua execução de cordas a concertos de câmara privados.

Interior do Teatro Scientifico, em Mântua/Itália, onde Mozart se apresentou aos 14 anos de idade para comprovar seu talento precoce.

Os programas de seus primeiros concertos indicam a maneira como se esperava que ele exibisse seu talento e comprovasse seu gênio precoce. Como exemplo, o plano do programa do concerto no Teatro Scientifico dell’Accademia degli Invaghiti, em Mântua, Itália, em 1770, quando contava 14 anos de idade, compreendia não só suas próprias composições, como um concerto para cravo “apresentado e executado por ele à primeira vista”, “uma sonata para cravo executada à primeira vista pelo jovem, e variações improvisadas de sua inventiva, subseqüentemente repetidas em uma tonalidade diferente daquela em que foi composta”, uma sonata e uma fuga a serem compostas e executadas sobre um tema fornecido de improviso, e outros feitos prodigiosos. Mozart também planejava cantar uma peça e improvisar a parte do violino de um trio. O jovem músico já era acostumado a situações como essa…

O casal real inglês, que prestou especial apoio aos Mozart em Londres e incentivou o pequeno Wolfgang, principalmente a rainha, a quem Mozart dedicou uma série de sonatas (KV 10-15).

Quando Mozart visitou Londres em 1764, aos oito anos de idade, ele já era uma sensação musical. Multidões queriam assistir aos concertos do menino. A cidade tinha uma atmosfera ativamente musical, graças ao incentivo do soberano britânico George III (1738-1820) e da rainha Sophie Charlotte von Mecklenburg-Strelitz (1744-1818).

Rapidamente, os Mozart foram recebidos pelo casal real, diante do qual tocaram durante a noite, com remuneração pela apresentação. Numa segunda apresentação, George III deu a Mozart peças de vários compositores para que ele as tocasse de primeira vista. Além disso, o menino tocou órgão e acompanhou ao cravo a rainha em uma ária, também tocada à primeira vista.

Leopold, o “empresário artístico” do filho internacionalmente conhecido

Estando nas boas graças da família real, o concerto público dos Mozart no dia 5 de junho foi um estrondoso sucesso. Segundo seu pai orgulhoso, Johann Georg Leopold Mozart (1719-1787), mais de duas centenas de pessoas estavam presentes, incluindo as principais famílias de Londres. Mas nem tudo correu bem por lá…

Leopold contraiu um resfriado no verão londrino e o seu médico havia proibido expressamente que o menino tocasse cravo para não incomodar o paciente. Tentando se distrair nesse período de espera pela recuperação do pai, Wolferl (apelido do garoto) escreveu sua primeira sinfonia (KV 16) – Andante no áudio abaixo. Para piorar a situação, começaram a correr rumores de que Mozart era, na verdade, mais velho do que se dizia – devido ao talento que parecia ser impossível a uma criança de apenas oito anos.

Barrington publicou seus manuscritos num volume chamado “Miscellanies on various subjects” (1781). Contribuiu também com a revista “Philosophical Transactions”, em circulação na Royal Society desde 1665, no Vol. 60 (Dec/1770, p. 54), com o relato sobre o Mozart precoce. Nas suas “Miscellanies”, Barrington incluiu, ainda, a análise de quatro outros garotos prodígios.

Visando solucionar essa dúvida, o rei convocou o pesquisador Daines Barrington (1727-1780), para quem a visita do prodígio a Londres era menos um espetáculo musical do que uma oportunidade científica. Advogado, filósofo, músico e naturalista, ele era cético quanto à capacidade de alguém tão jovem, e estava determinado a investigar o talento do menino.

Barrington pesquisou a data de nascimento de Mozart, confirmou sua idade e submeteu-o a testes musicais complexos. Ficou tão perplexo que, seis anos depois, ao ser aceito na respeitada academia inglesa Royal Society, publicou um artigo no jornal descrevendo o fenômeno.

O documento, intitulado Account of a Very Remarkable Young Musician (disponível aqui, em inglês), é um dos destaques do Trailblazing, fonte de consulta online lançada pela Royal Society para comemorar os seus 350 anos de fundação, no ano passado.

A Royal Society (ou The Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge) foi fundada em 28 de novembro de 1660 por um grupo de estudiosos que incluía o arquiteto Sir Christopher Wren (1632-1723), o cientista Robert Boyle (1627-1621) e o filósofo John Wilkins (1614-1672), inventor do sistema métrico. É a mais antiga academia científica do mundo, com mais de 60 ganhadores de Prêmio Nobel, entre seus 1.400 integrantes. Anualmente, 44 cientistas recebem o título de Fellow of the Royal Society (FRS) em reconhecimento ao seu trabalho e passam a integrar a academia – considerada a distinção mais alta que um cientista pode obter, após o Nobel. Entre os membros atuais da sociedade está o físico Stephen William Hawking (n. 1942).

Sede da respeitada Royal Society, em Londres. O lema “Nullius in verba” afirma a missão de estabelecer a verdade no domínio dos fatos, baseando-se somente na experiência científica.

Barrington, em seus escritos sobre Mozart, destacou que o menino era tão travesso e distraído quanto qualquer outro de sua idade, mas mostrava um talento excepcional. O cientista trouxe um manuscrito, nunca antes visto por Mozart, o qual era formado por cinco peças com uma delas escrita em estilo italiano para clave de contralto, e o colocou diante do jovem Mozart sentado ao teclado. Barrington, então, registrou o seguinte:

“Mal foi posta a partitura à sua frente, começou a tocar a sinfonia de forma magistral, bem como no tempo e no estilo que correspondiam à intenção do compositor…”.

O castrato Manzuoli, celebridade na Europa, deu aulas de canto a Wolfgang em Londres e, mais tarde, reencontrou o compositor em Milão (1771), onde encerrou sua carreira cantando na ópera “Ascanio in Alba”, papel que aceitou com carinho pela consideração ao jovem amigo.

Impressionado com a performance de Mozart, o investigador pediu que ele improvisasse e executasse uma “canção de amor” em estilo operístico que o famoso castrato Giovanni Manzuoli (1720-1782) iria escolher para executar. Barrington fez, assim, a seguinte anotação:

“[Mozart] iniciou cinco ou seis linhas de um recitativo em jargão adequado para introduzir uma canção de amor de acordo com a palavra ‘affetto’. Ele então tocou uma sinfonia… Havia uma primeira e uma segunda parte que, juntamente com as sinfonias, tinham a duração média das árias de ópera: se esse trabalho improvisado não foi surpreendentemente magnífico, ainda assim foi algo realmente acima do normal, e exibiu a mais extraordinária disposição inventiva”.

Mais uma vez, o incansável Barrington fez um pedido semelhante a Mozart – só que, dessa vez, para executar uma canção de raiva, de acordo com a palavra “pérfido”. Mozart novamente apresentou um notável desempenho, sendo que o menino “batia no cravo como uma pessoa possuída, levantando-se, por vezes, de sua cadeira” – registrou o pesquisador. Em seguida, Barrington fez Mozart completar uma série difícil de lições de teclado e, então, escreveu:

“Sua disposição surpreendente, no entanto, não surge apenas de um intenso treinamento; ele tinha um conhecimento profundo dos princípios fundamentais da composição – por exemplo, para uma parte de soprano ele imediatamente escreveu um acompanhamento, que, quando executado, teve um ótimo efeito. Ele também se mostrou um grande mestre da modulação, e suas transições de uma clave para outra foram extremamente naturais e sensatas…”.

O Hon. Barrington também observou que Mozart passou boa parte do tempo tocando cravo com as teclas cobertas por um lenço.

Foi nessa mesma viagem a Londres, por sinal, que a primeira ária de concerto (conhecida) de Mozart – “Va dal furor portata”, KV 21/19c (áudio com partitura no vídeo abaixo) – foi escrita para um texto extraído de Ezio, obra de Pietro Metastasio (1698-1782) em italiano. Os textos dos libretos de Metastasio forneciam uma constante fonte das chamadas árias de amor ou raiva com que o prodígio, em desenvolvimento, podia apurar seu talento. A música do KV 21/19c é uma boa demonstração de uma ária de raiva no estilo da metade do século XVIII.

Os Mozart também visitaram o então novo British Museum, para o qual Wolfgang dedicou sua primeira música sacra e única obra cantada em inglês: o moteto God is our refuge (KV 20) – áudio com partitura no vídeo abaixo. Nessa época eles estavam instalados na Frith Street, no bairro Soho em Londres, onde ficaram até a partida em julho de 1765. A casa, como é tradição na cidade, recebeu uma placa azul registrando a passagem do ilustre visitante.

No famoso retrato feito em Paris pelo arquiteto, dramaturgo e pintor Louis Carrogis Carmontelle (1717-1806) pouco antes da família Mozart partir para Londres, em abril de 1764 (imagem ao lado), vemos Wolfgang com seu pai e sua irmã. Mozart, aos oito anos de idade, é mostrado no cravo, em pose de apresentação. Sua talentosa irmã e companheira aos doze anos, Maria Anna Walburga Ignatia Mozart (1751-1829), canta enquanto seu pai toca violino. Por falar em Nannerl (apelido da irmã de Wolfgang), aproveito para divulgar aqui o recente lançamento do filme Nannerl, la soeur de Mozart, dirigido pelo francês René Féret (n. 1945), cujo trailer se encontra no vídeo abaixo.


Este post tem 6 comentários.

6 respostas para “Mozart, nas mãos da ciência desde criança”

  1. Muito bom, Fred. Crianças-prodígio é um assunto que muito me interessa e hoje eu tenho a opinião de que ser um grande prodígio na infância é um fator preditor de fracasso na idade adulta e não de sucesso (pelo menos no que se refere às expectativas geradas sobre a criança). Isso engrandece ainda mais o Mozart adulto na minha humilde opinião.

  2. Outros dois meninos-prodígio com biografias curiosas são Josef Hofmann e William James Sidis.

    Hofmann foi possivelmente o mais impressionante prodígio precoce do piano, mas o seu status enquanto pianista adulto permanece controverso:
    http://en.wikipedia.org/wiki/Josef_Hofmann

    Já William James Sidis foi um prodígio na matemática e no aprendizado de línguas (supostamente aos 8 anos já havia aprendido de forma autodidata 8 idiomas e inventado um novo) Aos 11 anos foi admitido na universidade de Harvard, onde se formou aos 16. Alguns estimam que seu QI tenha sido o mais alto da história, algo entre 250 e 300. No entanto, na vida adulta levou uma vida discreta e excêntrica, sem contribuições para a humanidade. Seu caso é estudado até hoje no que se refere ao procedimento ideal para se lidar com essas crianças para que tanta inteligência não seja desperdiçada e, ao mesmo tempo, preservar o bem-estar da criança.
    http://en.wikipedia.org/wiki/William_James_Sidis

  3. Gostei muito do post. Interessantíssimo. às vezes me pergunto por que não vemos mais hoje prodígios, não digo como mozart, seria demais, mas prodígios apenas. Tenho lá minhas respostas, but…
    Outra coisa que acho curiosa são as biografias romanceadas do mestre prodigio. são inúmeras.

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