19abr 2017
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A malícia do desejo erótico e sua nova vítima: o mito

Cena do Crepúsculo dos Deuses em São Paulo

Ontem o Theatro Municipal de São Paulo apresentou a última récita da montagem de Götterdämmerung, “O Crepúsculo dos Deuses” de Wagner. A produção com regência da Orquestra Sinfônica Municipal de Luiz Fernando Malheiro e direção de André Heller-Lopes é a realização da primeira montagem do Anel do Nibelungo criada por uma produção totalmente brasileira, o que assume uma ambiciosa prova de fogo para o que podemos fazer de melhor à altura do projeto colossal de Wagner.

Mas não pretendo resenhar a produção da ópera – que já foi um sucesso merecido, deixou a todos otimistas e encerrou suas apresentações ontem. Pretendo comentar uma das escolhas da concepção da montagem, chamada de “Anel Brasileiro” não apenas por ter produtores brasileiros, mas também pelas referências cênicas que transpuseram vários elementos da ópera da sua atemporalidade mítica para a cultura e o folclore brasileiros.

Antes que isso pareça problemático em si, é preciso observar que esse tipo de transposição pode ser feito com coerência e não é incomum hoje em dia, embora não corresponda ao nosso desejo purista que gostaria mesmo é de assistir a uma produção tradicional de Wagner em Bayreuth, e embora represente mais um insight alternativo que, no Brasil, já é uma tendência que supera totalmente a existência de leituras tradicionais.

Concepção

Leonardo Neiva como Gunther

Mas entre bois bumbás, iaôs e fitas do Senhor do Bonfim, uma leitura que a princípio parecia desempenhar uma escolha feita dentro das margens do libreto terminou se mostrando profundamente radical: logo no primeiro ato, depois de se despedir apaixonadamente de Brünnhilde para partir em busca dos feitos heroicos do dia, Siegfried chega ao palácio dos Gibichungen recebido por Gunther e, bem, “rola um clima”. Não apenas Gunther já era retratado como um filho de militares aburguesado e afeminado, mas o seu encontro com Siegfried assumiu uma tensão homoerótica que interferia na própria legenda do libreto projetada acima do palco – após o pacto de amizade estabelecido entre ambos, as referências de Siegfried a Gunther como irmão eram colocadas entre aspas (qual a surpresa em saber que foi o próprio diretor quem traduziu as legendas?).

Insisto em descrever essa tensão para que não dependamos de supostas sutilezas: frases de Gunther a Siegfried como “wohin du schreitest, was du ersiehst, das achte nun dein eigen: dein ist mein Erbe, Land und Leut’ – hilf, mein Leib, meinem Eide! Mich selbst geb ich zum Mann” (“por onde caminhares, o que quer que vejas, considera agora teu: tua é minha herança, terra e gente – penhora, meu corpo, meu juramento! A mim mesmo, como homem, ofereço a ti”), ao invés do penhor das posses e da própria vida em função de uma palavra de lealdade e de aliança,[1] ganharam na encenação dos cantores uma etapa de sedução. No fim do ato não deu outra: após Siegfried assumir a aparência de Gunther com o uso do Tarnhelm e tomar a própria Brünnhilde como sua noiva (estapeando-lhe e tudo!), Gunther aparece em cena (o que não é indicado pelo libreto) e, depois de um sestroso sinal para que Siegfried não diga mais nada, ambos …se beijam! (as luzes se apagam na hora h, mas o recado está dado). Não seria preciso mais nada, mas no segundo ato, quando Brünnhilde está de um lado sofrendo pela traição de Siegfried, Gunther aparece de outro sofrendo do mesmo amor gorado…

E…?

Não é inédita a inclinação a enxergar desejo e paixão nas entrelinhas de narrativas que não dizem nada a respeito disso. Mas, mais do que um Gunther homossexual, e mais do que qualquer outra liberdade da concepção do diretor, esta escolha de um caso entre Siegfried e Gunther traz consequências radicais e ao mesmo tempo muito reveladoras para o significado de todo o ciclo de Wagner, o que, após seis apresentações desde o dia 12, eu não encontrei sendo discutido pela crítica.

Um Siegfried ordinário

John Daszak como Siegfried e Cláudia Riccitelli como Gutrune

A oferta de amizade (“sei mein Freund”) leal entre Gunther e Siegfried, que na produção brasileira se transformou em tensão erótica, acontece antes de Siegfried ser ludibriado pelo efeito da poção que o leva a trair o amor de Brünnhilde. Isto significa que esse caso entre ambos não pode ser influenciado pela poção, e que Siegfried simplesmente decidiu “se oferecer como homem” para Gunther porque estava com vontade. Mas isso nos dá um Siegfried que não é, como dirá Brünnhilde, “der Reinste” (“o mais puro”), nem que “lautrer als er liebte kein andrer” (“mais puro que ele nenhum outro amou”). Não por acaso, na montagem brasileira esse é um Siegfried que aparece agindo de maneira vulgar, que estapeia Brünnhilde – embora se guarde de se deitar com ela, preservando o pacto de sangue jurado com Gunther –, que agarra excitado as ninfas do Reno – embora faça menção à atual fidelidade a Gutrune na sua reflexão sobre o comportamento sedutor das mulheres –, e que, menos do que heroico, é ridiculamente ameaçado por essas mesmas ninfas, que o acuam como tigresas (?) – embora ele tenha matado um dragão sem ter aprendido a “lição do medo”.

A função heroica dada a Siegfried pelo mito wagneriano é desconstruída em muitos aspectos, de onde não há remorso em transformar o seu pacto de sangue com Gunther – uma imagem medieval tradicional – em um concerto de fundo erótico. Mas duas coisas essenciais em Wagner saem prejudicadas: 1) o status do herói para o mito, que o compositor tanto retrabalha em sua concepção dramática; e 2) o derradeiro passo a ser tomado por Brünnhilde na expiação dos pecados desencadeados pelo desejo de poder que vitimou um herói puro (e que, na origem, nada menos do que deu origem a todo o ciclo do Anel do Nibelungo).

Para o status mítico do herói, a teoria a respeito é abundante e se ilude quem pensa que o herói é uma idealização que achata as complexidades da realidade. Realismo puro e simples que justifique o retrato de banalidades não tem nada de complexo, e aniquila a função arquetípica do mito de transcender a própria realidade – pois não há nada melhor no mundo da síntese imaginativa para se compreender as consequências morais de um ato do que o impulso de um herói. Mas se Siegfried é ordinário – ou seja, se ele não sacrifica inclinações levianas em favor de uma dimensão de sentido superior para as suas ações –, que sentido há na atenção que ele ganha dos próprios deuses como um herói livre diante do destino, ou no seu brinde fiel ao amor de Brünnhilde antes de tomar a poção que o ludibriaria, se pouco antes ele simplesmente se oferecia para Gunther e depois seria o seu amante?

Wagner – Die Walküre – Act III – Siegfried (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Brünnhilde predizendo o nascimento de Siegfried n’A Valquíria

Para o passo expiatório tomado por Brünnhilde, o ciclo de violência e de vingança desencadeado pela maldição do anel só é interrompido pela oposição por excelência à renúncia-do-amor que a originou. E como se opor a essa renúncia? Aceitando o amor e renunciando ao poder, como o faz Brünnhilde na sua autoimolação. Este gesto só alcança o status verdadeiro de uma expiação porque envolveu a queda de um justo sacrificado: Siegfried, o herói puro e livre, que não é ajudado pelos deuses, é enganado e corrompido em sua dignidade por conta de sua inocência, presa fácil dos aproveitadores. E Brünnhilde, tomando posse do conhecimento desse ciclo insustentável de violência, vem ritualizar o seu desfecho na redenção pelo amor que nasceu com Siegfried (o que na música é mostrado literalmente pela aparição do leitmotif chamado “Redenção pelo amor”). Se Siegfried não for puro, qual pureza foi sacrificada na redenção pelo amor desse último gesto que enfim fecha o ciclo inteiro das quinze horas do Anel do Nibelungo?

Por que fazer isso?

Gregory Reinhart como Hagen

A malícia que troca o mito de Wagner por um suposto realismo em que tudo é sujeito a deixar de ser o que seria para se transformar em pura hipocrisia não é uma leitura isolada. É na verdade fruto de uma mentalidade tão arraigada que nós mesmos a essa altura não temos a menor dificuldade em assumirmos uma desconfiança tão absoluta quanto possível em nome de um conhecimento mais verdadeiro. O problema é quando isso nos leva a um relativismo estéril, em que, sem saber responder ao sentido daquilo de que aprendemos a desconfiar indiscriminadamente – sem saber justificar o sentido da existência de um herói, por exemplo –, nós ficamos sem nada.

Sem a capacidade de justificar o sentido de qualquer coisa, tudo o que resta no mundo se torna disfarce: a única realidade verdadeira, desvelado todo o fingimento, torna-se facilmente reduzida a desejo e a egoísmo, o que não dá espaço para a sinceridade senão na “maldade” desse desajuste de pessoas convivendo, em última instância, apenas por interesse. É claro que, como todo relativismo, este cai na contradição de apenas se firmar como visão de mundo caso receba um privilégio incompatível com tudo o mais que é relativizado – isto é, assume-se convictamente o princípio de se relativizar a tudo, menos a posição de onde essa crença é fundada! (a consequência não seria também esta perder o valor que reivindica?).

Tal postura se torna mais reveladora quando arriscamos vê-la como um fruto de diferentes raízes do nosso tempo: niilismo, pós-modernidade, materialismo, existencialismo sartreano, não faltam apostas e todas devolvem alguma identificação com o ponto caricatural que esse extremo alcança. Pensando em nossa cultura, lembro de Paulo Prado rastreando na luxúria, na cobiça e na melancolia da colonização brasileira os seus traços psicológicos formadores. Seja como for, as palavras do próprio diretor André Heller-Lopes e suas contradições com a prática parecem assumir as consequências: “Nada do original foi mudado, nós respeitamos a tradição. No entanto, tudo é visto a partir dos olhos da cultura brasileira”.

[1] Comparar com o mesmo tipo de diálogo entre Wotan e Mime no primeiro ato de Siegfried.


Este post tem 27 comentários.

27 respostas para “A malícia do desejo erótico e sua nova vítima: o mito”

  1. Leo !

    Não entendo muito de ópera [ainda!] , nem do Wagner enquanto compositor . Embora tenha sido o eco de seu nome na literatura de Nietzsche que me aproximou da música erudita . Então , sob essa premissa , seria correto dizer que também não estou apto a entender qual a implicação/relevância , ou ‘risco’ , de uma insinuação homoafetiva no desfecho do ciclo do anel . Ainda assim , ouso trazer duas questões .

    1.: há , embora não fortemente embasada , aquela crença de uma possível relação erótica entre Ludwig II e Wagner . A liberdade tomada na interpretação do voto de amizade entre Siegfried e Gunther não poderia aludir a isso ?

    2.: é sempre bom lembrar que novas sociedades aspiram , anelam e fomentam sua própria consolidação . Daí que , aqui ou acolá , algo é reinterpretado – e até deturpado mesmo – para servir a uma causa imediata ou específica de outros tempos . O já citado Nietzsche e o Wagner em questão são , curiosamente , bons exemplos disso . Ambos tiveram o nome associado ao movimento nazista . uma liberdade tomada com a herança ideológica que deixaram ; Nietzsche , coitado!, o comparo ao próprio judeu Yeshua no quesito ‘total incompreensão posterior da filosofia pessoal’ . É quase triste saber que uma fatia considerável das discussões que seu nome encabeça tem como subtítulo o ‘ateísmo’ . Em outras palavras , falar de Nietzsche tem sido – na maioria dos casos – mera ‘deixa’ para se debater religião , Deus e coisas do jaez , ou justificar o ceticismo de alguém . Toda a riqueza de suas assertivas sobre progressão do humano enquanto fator/contrafator social – o ser temporal que aspira a ‘atemporalidade’ – se perdem no meio d’isso . Com as coisas assim ilustradas , uma associação ao nosso causo não é tarefa difícil .

    Pois bem!, seguindo essa ‘microteoria de rodapé de blog’ que ideologia ou seguimento social seria favorecido com essa sugestão homoafetiva ? As minorias , quando querem ser ‘maiorias’ , promovem verdadeiras ‘missões’ sem qualquer parcimônia . Firmar-se e afirmar-se é uma necessidade . É como a questão racista , feminista , terrorista … esta última – mais perto de nós – é mais fácil de ilustrar . Pergunta : há alguma produção cinematográfica americana , nas ‘imediações’ do tal ’11 de setembro’ , que não trate o árabe como um monstro desalmado e sub-humano* ? … e recuando um pouco : os vietnamitas ? os coreanos ? os russos ? os alemães ? espere um pouco!, e o próprio Hitler ? Por que motivo é tão caricaturado como ‘monstro’ ? Por que Alexandre , César , Louis ou Napoleão** não doem tanto quanto ele aos ouvidos ocidentais hoje em dia ? E a resposta é mesmo essa … porque é ‘hoje em dia’ .

    E no ‘hoje em dia’ insinuam uma relação ‘a mais’ entre personagens de ópera … porque no ‘hoje em dia’ uns caras querem correr atrás de um passado/presente de humilhação , prisões e torturas por curtirem o que eles mesmos têm entre as pernas . essa nova tendência ‘orgulho gay’ o demanda … fazer o quê ? haha // tais coisas são verdadeiro banquete para o olhar do historiador-sociólogo .

    Enfim , sugeri com esse ‘balaio’ todo apenas um ângulo fora do âmbito imediatamente musical para se aproximar e observar este assunto/fenômeno ! É um padrão que se repete historicamente … o ideal que se busca é associado ao belo . O desaconselhável fica com a vez de ‘feio’ .

    Então nasce o herói … gay !
    Até que é engraçado .

    ________
    *abomino o novo acordo ortográfico .
    ** em verdade , figuram até como ‘heróis’ .

  2. Lástima não ter assistido: moro em POA; mas pelo que li, a análise é muito apropriada. Parece-me que o mesmo esta ocorrendo na Alemanha. Pena.

  3. Ótimo texto Leonardo…. Só algumas considerações importantes.

    Eu tive a oportunidade de assistir essa montagem 3 vezes (ensaio geral, estréia e no último dia), e teve algumas diferenças ESSENCIAIS entre o primeiro e ultimo dia…

    Na estréia, eu percebi a ópera menos “homossexual”, por exemplo, no final do primeiro ato (quando estão na montanha Gunther, Siegfried e Brunhilde), o beijo é entre Gunther e Brunhilde, não entre os dois homens… E na ópera inteira, o Gunther não está tão afeminado…
    Outro detalhe, no final da ópera, quando todos se beijam só tinha um casal homossexual (o casal bem na frente do palco, sem camisa) e não tantos casais (homens e mulheres) como na última récita.

  4. Wagner é sem dúvida o compositor mais injustiçado de todos os tempos. Quando não o acusam de ser um proto-nazista, deturpam sua obra, que é um dos maiores patrimônios da Humanidade, IMHO.
    Quando eu penso em deturpações do Anel, a primeira coisa que me vem à mente é esta cena:

    http://www.youtube.com/watch?v=28gikZh3fK8

    Alguém poderia me dizer que BOSTA é essa? Toda a cena foi construída com o objetivo deixar a sexualidade e a violência explícitas. Uma obra de arte não é algo que deve ser assimilado de uma única maneira por todas as pessoas. Ela deve dar margem a várias interpretações.

    Por isso que montagens tais como o “Anel de Copenhagen” ou esse “Anel gay” brasileiro não deveriam ter saído do papel. Elas são meras interpretações da obra de arte original, apresentadas ao público de forma já digerida e sem nenhuma sutileza.

  5. Cybelle,

    Obrigado pelo comentário!

    Lucio,

    Sim, acho que você tem razão na sua interpretação de um engajamento atual que se usa das personagens do passado de maneira, no fim, anacrônica, mas sem o menor remorso por isso, como se a causa atual justificasse mais do que tudo o uso do passado. Os seus exemplos são pertinentes também, e me parece que Nietzsche – que tantas vezes é mais “literário” do que se dão conta – é ainda mais mal compreendido do que Wagner. Mas é curioso como atualmente a ópera venha sendo o playground dessas experiências, com um trabalho de direção já independente do trabalho musical, com grandes diretores contratados que mostram serviço com concepções pensadas especialmente para inovar e darem o que falar. Que se chegue nesses casos, de franca incoerência e fuga do material original, é o risco natural.

    Sobre Wagner e Ludwig II, não me surpreenderia que a ideia de um caso entre Siegfried e Gunther se justificasse como um espelhamento desse caso biográfico de Wagner, e achei essa uma percepção bem interessante. Mas pelo que vi no palco, não seria um paralelo que iria muito longe, pois nem Siegfried pareceu muito inspirado em Wagner em outros sentidos nem Gunther em Ludwig II.

    Irumar,

    Não consegui espaço para deixar muito claro que, tirando isso, eu gostei muito da produção! Vale se programar para as próximas, se o projeto render.

    Ricardo,

    Essa informação é importantíssima! A récita que eu vi tinha Homero Velho como Gunther, e não o Leonardo Neiva. Muito interessante saber que, pelo jeito, eles foram acumulando a ousadia para a récita final (pois como você bem disse, na cena do “beijaço” final já havia uns quatro/cinco casais homossexuais no palco).

  6. Essa tendência de levar a status público um assunto privado começa a afetar de forma nociva as encenações do Anel. Bom, não é de hoje que os diretores querem modificar as encenações de obras que tenham uma narrativa mítica, no entanto, as obras de Wagner sempre são as escolhidas para serem objetos desses tipos de devaneios, não há uma preocupação, por exemplo, em encenar uma Ópera como Carmen, sem modificações extremadas dos personagens, mas quando falamos em mitos a questão sempre muda e logo vem à tona o argumento que, por serem mitos, não serão compreendidos e ninguém quer ficar alheio ao que é real em prol de um símbolo imaginário.

    Pois bem, primeiro creio que há uma incompreensão do que seja um mito, sua função, sua representatividade. Ora, Wagner, nos seus textos, argumenta porque escolheu a narrativa mítica e não a voltada para o cotidiano, escolheu porque o mito é universal, o mito é representativo, simbólico, ele transpõe para o palco instintos, impulsos e tem como característica primordial a atemporalidade.

    Segundo, além da problemática com relação à narrativa plástica do mito estar afetada a outro componente importantíssimo nos Dramas Wagnerianos é afetado, os “Leitmotivs”. Veja só o “leitmotiv” de Siegfried, ele na sua aparição ao final do terceiro ato de “A Valquíria” é dotado de um caráter heróico, um herói medieval que tem por impulso também o amor (vale lembrar que o amor-medieval encarado de forma cortesã, forma esta que não condiz com a atitude demonstrada na encanação aqui discutida).

    O tal do ‘hoje em dia’ como o colega Lucio mencionou, serve de base para tais atitudes. Enfim, penso que essas atitudes “realistas” deturpam de forma considerável e nocivas (vejam só! as obras de Wagner servindo novamente como molas propulsoras de ideologias) as obras de Wagner, uma pena mesmo que esse tipo de encenação ainda perdure ganhando crédito.

  7. Leonardo,
    Você escreveu um texto profundo,corajoso e verdadeiro.
    Tocou em um ponto que me incomoda há muito tempo:
    Por quê modificar a criação do autor de uma ópera, para ser vista “a partir dos olhos da cultura brasileira” ou seja lá o que for,” reinterpretando e até mesmo deturpando” , como diz o Lúcio? A peça conta histórias passadas em uma época, com todos os seus elementos- cenário,figurino,música,libreto, etc.É isso que queremos ver.Não fui ver a peça como não fui a outras modificadas, principalmente nos figurinos e cenários. Os cenários – ou seria melhor dizer a falta de cenários- mostrando apenas uma cadeira ou uma mesa em um palco vazio e de pé direito muito alto que deixa o pobre do cantor pequeno, diminuido, em sua apresentação. Tenho certeza que isso está afastando muita gente da platéia.
    Onde vamos parar com isso? Por quê não escrever óperas novas que contem histórias modernas com tudo que o teatro quer contar, sem modificar o que já está aí há muito tempo,encantando aqueles que gostam e entendem dessas peças? Deixo aquí o assunto para ser pensado e repensado.

  8. Gabriel,

    Vi o vídeo agora e dei risada! Me lembro também de um Siegfried que era um nerd de apartamento em uma montagem meio ficção científica, aquilo também ficou péssimo. Mas veja que, transposições a contextos improváveis à parte, forjar um caso entre Siegfried e Gunther me parece ainda mais incoerente do que todos esses casos, que podem mudar as referências de maneira injustificável e de mau gosto, mas pelo menos ainda manter alguma coerência a partir disso. No exemplo do vídeo que você postou juro que no final eu pensei que o Alberich traria outra coisa nas mãos…, heheh. E o pior é que musicalmente está bom!

    Diego,

    O reflexo que essa escolha tem no significado musical do Anel também é muito interessante, e por isso eu quis citar pelo menos a primeira aparição do motivo do Siegfried, antes mesmo dele nascer. A aparição do motivo da redenção pelo amor logo em seguida cantado por sua mãe, a Sieglinde, e depois no final da ópera, com a Brünnhilde e a orquestra, também vincula imprescindivelmente o tema da redenção a Siegfried.

    Sobre o mito ser a vítima preferida desse tipo de transposição, acho que a sua descrição explica bem o motivo: aproveita-se da universalidade do mito para o transpor para todos os contextos possíveis de se imaginar, procurando renovar o seu significado acreditando na sua mobilidade de realidades. Que essas propostas alternativas já superem em muito as propostas tradicionais, e que possam chegar a francas incoerências como a escolha discutida no texto, é sinal de certo fetiche com essas transposições que já está perdendo a graça.

    Um exemplo contrário, de reconstituição de época que passou inclusive pela montagem, foi feita com a música de Lully para uma comédia de Molière aqui: http://www.youtube.com/watch?v=h1HgO5pza24. Com base nessas coisas tem quem goste de falar em uma “HIP” para montagens de ópera também, o que é uma ideia muito divertida!

  9. Odeni,

    Obrigado pelo comentário. Você oferece a oportunidade de falarmos um pouco mais especificamente sobre a ideia de transpor o contexto de uma ópera para novas referências. Existem transposições muito radicais e de gosto duvidoso, como a exemplificada pelo Gabriel acima (essa coisa Eurotrash), e existem transposições mais coerentes, como o Fidelio regido por Levine e dirigido por Jürgen Flimm lançado pela DG, que leva a ópera (cujo libreto originalmente a situa na Espanha do séc. XVIII) a um país da América Central, onde impera uma ditadura militar numa época muito próxima à nossa, mas sem estapafurdices. Estive pensando recentemente que, se todas as nossas montagens de ópera hoje fossem tradicionais, logo alguém se referiria a alguma outra época passada em que nenhuma ópera era reapresentada sem uma profunda recriação da sua montagem, o que tornaria a nossa prática tradicional por comparação muito mais pobre e embotada. Não sei se montagens tradicionais têm que ser acusadas necessariamente de não serem criativas, mas, seja como for, a existência de releituras e montagens alternativas não me incomoda tanto senão até eu me dar conta de que eu é que preferiria já ter visto muitas montagens tradicionais antes de enfrentar as alternativas. Ou seja, não me cansei das tradicionais ainda, pra fazer questão das alternativas. :) Mas o que se vê atualmente é que as montagens alternativas, talvez por algum fetiche da sua liberdade de recriação, já superam em muito as propostas tradicionais, que procuram corresponder ao contexto previsto pelo libreto original da ópera. Mesmo que essas transposições mantenham a coerência e o bom gosto, é estranho que as leituras tradicionais não atraiam mais o gosto dos diretores.

    Sobre o Anel, note que ele não tem uma época precisa: se ele reflete referências medievais, é mais pelas fontes utilizadas por Wagner entre as sagas nórdicas do que por qualquer elemento da própria ópera que a situe necessariamente dessa maneira. Mas acho a sua pergunta coerente: por que um Anel brasileiro? Em que a particularidade brasileira se justifica diante da universalidade prevista pelo libreto? Não duvido que seja possível responder a essa pergunta, mas ela situa essas propostas claramente em uma intenção “alternativa”, o que, pela escassez de referências tradicionais hoje em dia, se torna um pouco frustrante sim. A sua pergunta sobre por que não fazer uma nova ópera de uma vez também me parece muito pertinente, lembro que a própria tradição das traduções na literatura encontra por um bom tempo “traduções” que eram verdadeiras recriações dos originais, independentes mesmo, o que reflete uma disposição mais sincera do que dizer que o original foi mantido mas apenas transposto, quando na prática o processo foi muito mais radical e sequer deveria responder por tamanha responsabilidade.

    No meio dessa tendência toda, resta tentarmos sublimar essa falta de uma noção de identidade do contexto original de uma ópera, e, se tudo for coerente e de bom gosto, aproveitarmos a música mesmo, lembrando que a experiência da prática musical, diferente das gravações que escolhemos ter em casa, tende a esse tipo de recriação mais plural mesmo. Mas, de novo, acrescento que transposições do contexto da ópera em si não me parecem mais graves do que a escolha de um caso entre Gunther e Siegfried, essa sim particularmente uma escolha inevitavelmente incoerente em todos os sentidos (o que já fica bem além de “transposição”).

  10. Prezado Leonardo,
    de fato, na primeira récita, que foi a única que vi, Gunther e Siegfried não se beijaram. Essa inspiração audaciosa de André Heller-Lopes deve ter surgido depois.
    Abraços,

    Pádua

  11. Boa discussão. Não sou purista, gosto de versões modernas e reinterpretações das óperas de Wagner. Tenho o provocador Anel de Copenhagen, algo como um percurso dos mitos wagnerianos no período central do século XX, felizmente, os fatos “inusitados” funcionam com certa naturalidade. Por exemplo: tão certo de ter sido o escolhido para arrancar a espada mágica, Siegmund deixa para Sieglinde esta tarefa, irmãos gêmeos, portanto, merecedores da mesma dádiva. No entanto, na maioria das encenações provocadoras, é perceptível um contraste cansativo entre a obra e o diretor, deixando o público, conhecedor ou não do enredo, com a sensação do vazio (1-1 é zero).
    Sobre o desejo erótico, tema da discussão, tenho que admitir, não percebo na obra de Wagner em nenhum momento. Até mesmo em Tristão e Isolda, tudo parece ser platônico, irreal, sobrenatural. Cada vez mais acredito na castidade de Wagner, estou quase certo que não houve nada carnal com Mathilde Wesendonck. Por outro lado, a música de Monteverdi e Mozart transpira sexo.

  12. Leonardo, tive o mesmo estranhamento que tiveste quando não vi nenhuma crítica à montagem de André Heller-Lopes. Assisti à última apresentação, e fiquei estarrecido!

    Não tenho, nem de longe, a envergadura em assuntos wagnerianos, como tendes – tu e os demais que comentaram teu post. Porém, também quis, por puro diletantismo (e uma pitada de honestidade intelectual) escrever meus modestos comentários.

    Me alegrarias muito com uma visita em meu modesto blog:

    http://esperandoasmusas.wordpress.com/2012/09/09/o-anel-dos-oprimidos/

    Se desejar, faça teus comentários.

    Abraço,
    Paulo Cruz

  13. Leonardo,

    Gostaria de falar aqui não da ópera e da remontagem feita em si, mas sim de alguns pressupostos do seu comentário. Primeiro, o purismo (colocado por você como uma vontade de construção de alguma tradição de montagens musicais aqui no Brasil). Segundo, a sua referência negativa um tanto quanto velada a uma máxima machadiana: “a única realidade verdadeira, desvelado todo o fingimento, torna-se facilmente reduzida a desejo e a egoísmo, o que não dá espaço para a sinceridade senão na ‘maldade’ desse desajuste de pessoas convivendo, em última instância, apenas por interesse”.

    Em relação ao purismo, fico sempre numa questão de dois gumes: o primeiro gume é que realmente o Brasil é um país em que tradições são quase sempre ignoradas, quase sempre por inexistirem – que é péssimo. Esse foi um problema que primeiro identificaram nossos escritores românticos já no primeiro século do Brasil independente. A isso eles responderam com longas obras tentando encontrar para o país um passado, uma história, no caso: o índio, de onde teria vindo o povo brasileiro. Depois disso, veio Machado de Assis e identificou o erro máximo dos românticos: eles tentavam encontrar um passado para o país – uma tradição – mas ignoravam o passado colonial e toda a história e tradição européia a qual podemos recorrer como passado cultural (principalmente em termos de cultura letrada, como o caso da literatura e da música erudita). Esse ponto central do Machado culmina depois em Oswald de Andrade, seu manifesto antropofágico (acho que a grande resposta para essa questão da tradição está exatamente nesse texto) e Mário de Andrade, com seu herói sem nenhum caráter. O que me tem parecido mais sensato em termos de purismos e tradicionalismos seja considerar exatamente essas interpretações nacionais como o símbolo da nossa tradição mais brasileira de cultura. Acho que depois de tantos anos de Machado, tendo passado por movimentos como o modernismo de 22, o teatro de Nelson Rodrigues, de Zé Celso e o tropicalismo de Caetano esse tipo de coisa é exatamente nossa marca: trazer cultura estrangeira, desterrá-la (eis a palavra mais importante de todas: desterrar a cultura estrangeira) e transformá-la em nossa. O segundo gume é exatamente esse que acabo de falar aqui: nossa tradição é comer e vomitar algo novo, culturalmente falando. Eu acabo sempre ficando com o segundo, embora titubeie às vezes e concorde com você.

    Outra coisa que também me chamou muita atenção nisso tudo que você falou foi a frase que citei no primeiro parágrafo. Eu disse que essa foi uma forma velada de negar a forma machadiana de entender o mundo (o terceiro capítulo do Brás Cubas que o diga!) e é exatamente disso que gostaria de falar. O seu comentário naquele final deixa de ser meramente artístico e passa a ser também filosófico. Eu discordo de você quando você diz que essa atitude possa empobrecer o herói wagneriano – ela muda o herói, mas não o empobrece de forma alguma. Brás Cubas, embora seja um nítido anti-herói, não é um herói pobre (aqui equiparando o personagem machadiano com esse novo herói wagneriano criado pela interpretação brasileira da ópera). Não acho que a malícia do desejo erótico empobreça absolutamente nada, muito pelo contrário. Não nos esqueçamos que essa na verdade é a grande descoberta de Hamlet quando percebe que o pai foi morto pelo tio: quando o mundo é desvelado não resta muito senão egoísmo e desejo erótico em sua forma mais carnal e brutal. Acho que isso também está por trás de muitas das idéias de Freud: o homem, muito antes de se mover por sentidos e racionalidades, move-se por desejos desconhecidos quase sempre. Não creio que Freud vitimize coisa alguma.

    Só pra finalizar, quero lembrar que meu comentário não está falando sobre a montagem em si (mesmo porque eu não a vi, apenas assisti a reportagens sobre e o seu artigo), mas sim sobre aquelas duas premissas que eu acho que estão no fundo de suas ponderações.

    Filipe de Freitas

  14. Caro Filipe,

    Com relação ao primeiro ponto – o purismo -, creio que pensando-se na produção operística há aquele exercício teatral de se presentificar no palco uma estória (no caso de Wagner, um mito) concebida por outra mente, outro tempo e outra cultura, o que muitos diretores – dispondo da espada com exatamente esses dois gumes que você descreveu tão bem – escolhem por realizar à la “tótem e tabu”, com escolhas verdadeiramente antropofágicas que, contra qualquer resultado duvidoso em vista do que os planos do original previam, é justificado como a realização de uma montagem autóctone, com todas as consequências que isso tenha vindo a acarretar. Como esse tipo de exercício varia muito entre a) reabilitar o que a peça de que os produtores dispõem tem de humano e universalmente comunicativo e b) recriar os meios materiais pelos quais essa peça verá a luz do dia novamente, eu pretendi ser um pouco imparcial em relação a esse tipo de escolha a priori, porque há tanto reconstituições fiéis e tradicionais que são vívidas, inteligentes, de escolhas que revelam sentidos cuja importância se prova fundamental na coerência do que se vê no palco, como reconstituições simplesmente pobres e irrelevantes; e há tanto releituras de bom gosto e coerentes, como releituras cujas recriações transcendem aquela inevitável camada de interpretação pela qual tudo é reabilitado para acabarem mudando elementos que, no fim, julgam-se não terem valido a pena. Mas quando falei em purismo, falei de algo até mais prosaico, que é o fato de no Brasil não dispormos de tantas oportunidades para assistirmos a tantas montagens tradicionais quanto modernas, e essa falta não ser capaz de satisfazer em muitos de nós aquela ânsia primordial por uma vez na vida irmos assistir a uma montagem “plena”, com tudo de tradicional que se tem direito do original, antes de nos darmos ao luxo de avaliarmos releituras modernas com propostas mais laterais ao nosso imaginário canônico. As suas observações, contudo, são muitíssimos pertinentes inclusive para algo que eu estou reservando para a discussão sobre o tal “futuro da música clássica” com os textos de Greg Sandow, publicados em parte aqui no blog, pois esse problema da tradição no Brasil me parece central para se discutir a música clássica na nossa cultura.

    Quanto ao segundo ponto, é curioso que, em arte, sempre que expressamos algo que nos parece incoerente é possível que estejamos justamente atando os nós e legitimando aquilo que nos parecia incoerente, conferindo-lhe um entendimento acabado com a nossa descrição, e isso bem pode acabar sendo usado para se mostrar que se trata de algo coerente afinal! No caso do meu comentário à escolha dessa produção por um Siegfried ordinário, o que eu pretendi descrever não foi a capacidade de se denunciar o desejo e o egoísmo subjacentes às ações humanas, mas o vício de se procurar fazer isso em absoluto, perdendo-se de vista qualquer coisa que esteja além desse desconstrucionismo. Creio que se não reconhecermos que isso pode ser um vício, absolutamente qualquer coisa – desde trocar o sexo das personagens, fazê-los cantarem nus até eu mesmo me apresentar me esganiçando e fazendo o papel de todas as personagens da ópera com um argumento conceitual – terá o seu valor justificado como a expressão desse argumento e de todos os problemas que de alguma forma essa interpretação encerre, mas isso é simplesmente inútil em arte. E no caso dessa montagem, creio que se trate desse tipo de caso: ainda que houvesse a proposta de se revelar o desejo e o egoísmo subjacentes a todo fenômeno humano, circunscrevendo qualquer valor positivo a mero fingimento, a mera convenção cuja não arbitrariedade mesquinha seja ilusória, o fato é que isso foi feito de maneira francamente contraditória com o que se tinha em mãos, sacrificou-se aquilo que literalmente falava outra coisa, e na média final isso se tornou empobrecedor, mal compreendido. Se uma nova obra fosse escrita buscando-se o retrato dessa problemática, maior seria a chance de que o resultado fosse coerente, e não vicioso. Mas não foi o caso. Por isso não foi por condenar a priori a descrição desse niilismo que eu julguei negativamente a escolha de um Siegfried ordinário por essa montagem, mas pelo vício que passou com um trator por cima do que a ópera afirmava, em favor dessa interpretação que forçou a coerência da ópera e os valores que possivelmente emergem dela em uma leitura menos desconstrucionista.

  15. Leonardo,

    Já que você está escrevendo sobre tradição no Brasil, deixa eu só colocar aqui uma informação mais bibliográfica sobre uma questão que eu falei no meu comentário. O Sérgio Buarque de Holanda, lá no início de Raízes do Brasil, ele diz assim: “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossos instituições, nossas idéias e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.” Esse trecho é muito interessante se o pensarmos no contexto da cultura: nossa maior característica é sermos desterrados, é o desterro e, portanto, nós colocamos sempre em nossa cultura esses outros elementos – no caso a ópera, que não é e nunca foi uma gênero brasileiro. Mas ao fazer isso, nós costumamos, nas últimas décadas, pega a ópera e colocá-la segundo nossas interpretações. É que nossa cultura é uma mixórdia de paráfrases e paródias desde sua gênese. Isso que o Sérgio diz aqui é dito quase o tempo inteiro em outros escritores, que inclusive já citei: Oswald de Andrade, Mário de Andrade e alguma coisa (mas pouco) no Bandeira. Mas eu devo admitir que também sinto essa carência que você disse no seu texto: fata-nos montagens mais clássicas (embora isso não deva substituir nunca montagens interpretativas, afinal, é exatamente nessa interpretação – paródia ou paráfrase – que está o trabalho do ator, do diretor e possivelmente do tradutor). Até mesmo no teatro, eu sinto uma falta tremenda de montagens de Shakespeare, de Calderón de la Barca, de Lope de Vega – e até mesmo do Nelson que é nosso maior clássico.

    Filipe de Freitas

  16. Filipe,

    Dessa questão fundamental que você expõe com muita pertinência, eu apenas chamo a atenção para um risco comum: às vezes o ímpeto em lançar consciência sobre a presença de convenções da cultura europeia na nossa cultura assume um modelo muito radical, que é o de considerar como “próprio” nada mais do que o folclore, e como “estrangeira” toda a ideia de diálogo com uma tradição letrada e erudita. Sim, na teoria nós já tendemos a concordar com a lição do embate entre os nacionalistas e os romances de análise do universalismo do Machado de Assis, ou mesmo com o esboço de teoria do modernismo em flagrar um substrato autêntico na nossa mentalidade sobre o qual o modo de pensar europeu já teria se instalado de modo enviesado. Mas na prática essa lição às vezes parece menos clara, porque coisas como a ópera e compositores eruditos são vistas como estrangeiras à nossa história, enquanto ritmos trazidos da África ou mesmo de Portugal são considerados frutos autênticos da cultura brasileira porque foram cultivados pela cultura popular.

    Na verdade, danças como a modinha, o maxixe, o chachado, o samba e o chorinho nasceram justamente de uma sincretização direta com danças e gêneros europeus, que estiveram presentes aqui desde a colonização (o que é mais tempo do que muitas formas que se arrogam representantes da alma brasileira). Então enquanto ritmos populares de óbvia influência estrangeira (inclusive gêneros recentes da música popular) são defendidos como a verdadeira cultura brasileira, coisas como a ópera ainda são tratadas como um estrangeirismo porque remetem a uma tradição “artificial” e não popular. Mas até quando? Me parece que a interação da cultura brasileira com essas tradições clássicas presentes há tanto tempo rendeu muitos frutos espontâneos, e o diálogo dos nossos artistas com essas formas não é menos tradicional nem mais recente do que os próprios fenômenos populares urbanos que se tornaram icônicos da nossa cultura no séc. XX. Que os clássicos tenham, além de tudo, um lado universal apenas reforça a necessidade de se reconhecer a legitimidade da sua presença em nossa cultura.

    Então não me parece que a presença dos clássicos entre nós devesse ser tratada tão simplesmente com uma condescendência com algo que nós “não somos”, pois isso não passa de uma ingenuidade e de desinformação histórica. Que essa esfera da tradição clássica precise de auto-afirmações folclóricas para ser incorporada de maneira natural para alguns entre nós, em vista dessa lição que comentei, não tem justificativa senão como certa teimosia ou certa cultura de “homem massa” que insiste na visão radical desse modelo para o qual eu chamo a atenção.

  17. Leonardo,

    O texto que lá no primeiro comentário que fiz eu indicava como, na minha opinião, a grande resposta para essa questão da interação entre a cultura européia e a “brasileira” é a antropofagia o Oswald de Andrade. E esse texto na verdade compartilha muito com o universalismo do Machado – que sempre se preocupou com questões nacionais e sempre foi um homem de seu tempo e seu país- , embora se preocupe notoriamente com questões de nacionalidade. A grande concepção antropofágica é que nós realmente teríamos que lidar com elementos da cultura européia sim – diferentemente da opinião de alguns. Falar que elementos do folclore são os únicos “naturais” do país e que por isso deveríamos nos preocupar somente com ele é uma tolice imensa nessa concepção oswaldiana. Em relação a isso que você fala, portanto, eu concordo plenamente. (Há um fato até mesmo interessante para o qual Antonio Candido sempre chama atenção: é que nossa literatura, agora falando especificamente dessa manifestação da cultura – vertente letrada da cultura -, tem origem completamente européia. E mais, européia humanista, entenda-se: de origem cortesã. Ou seja, dizer que apenas manifestações indígenas e africanas são originalmente brasileiras é uma tolice maior que o pão de açúcar.)

    Em relação ao final de seu comentário, eu só faço uma ressalva. Na verdade, eu não acho que nós fazemos essas aculturações da cultura européia à toa (acho inclusive que fazemos de todas as matrizes culturais do Brasil, desde o cristianismo que entre nós é bem diferente do que na Europa até as manifestações de candomblé, que entre nós é uma manifestação religiosa e cultural distinta daquela que se vê entre os africanos) acho sinceramente que isso se dá de forma natural. Essa na verdade, e estou falando isso desde o início, seria para mim a verdadeira vocação da cultura brasileira: assimilar tudo que pode na sua própria cultura- e todo esse amálgama cultural assimilado não pode ser negado como elemento brasileiro, porque entre nós não há manifestações puras, mas apenas misturadas(aqui não temos cristianismo, temos cristianismo+uma série de coisas, por exemplo). A mistura é nossa grande vocação. Vou usar dois exemplos: primeiro a própria montagem que é o assunto do seu artigo e depois o livro que cairá no vestibular esse ano da UFMG: Vermelho Amargo, do Bartolomeu Campos de Queiroz (para não usar um exemplo muito batido e cair na mesmice de falar sempre as mesmas coisas). Você mesmo pontuou em um momento do seu texto que a montagem lida muitas vezes com referências ao paganismo brasileiro, e esse tipo de coisa é exatamente o que eu acho que o Oswald de Andrade estava chamando de antropofagia: pegar uma ópera de Wagner e na hora representá-la colocar no meio temas da cultura brasileira, ou da realidade brasileira. Se a montagem fosse completamente clássica e só contasse com os atores e a apresentação mais tradicional, ela também teria seu valor, nunca neguei isso – mas também a “abrasileiração” não lhe tira valor algum. O segundo é mais incrível ainda porque durante o texto, o Bartolomeu usa vários neologismos feitos pelo Mia Couto, um escritor da nova prosa africana. E isso é muito interessante, porque coloca em questão a nossa capacidade de lidar com mais diversas manifestações culturais: uma literatura que surgiu há menos de 50 anos já é alvo de nossos escritores para pesquisa e absorção. Isso é muito incrível e acaba mostrando essa nossa capacidade vocacional para a mistura (embora o livro no geral não seja tão bom assim).

  18. Olá, Filipe.

    Quero apenas sumarizar um ponto específico da nossa conversa pra identificarmos algo que ainda me parece pendente, mas que acho que será o nosso consenso mais conclusivo.

    Mais uma vez, concordando com os seus exemplos e com a sua ressalva, eu não quis dizer que a composição à brasileira de temas e elementos estrangeiros deva automaticamente ser considerada um afastamento e uma descontextualização desnecessárias da cultura europeia, de modo nenhum. Mas quis chamar a atenção para uma possível tendência em tornar elementos europeus estranhos em leituras à brasileira forçadas, apenas por aqueles elementos não terem sido acolhidos pelo folclore brasileiro, mas pertencerem à esfera de um diálogo letrado e erudito. O exemplo, claro, seria essa própria montagem comentada neste post, e mesmo uma frase em um comentário seu ao afirmar que a ópera simplesmente não é algo brasileiro, quando na verdade, além dela ter influenciado diretamente ritmos propriamente brasileiros, ela está presente no Brasil há muito mais tempo do que gêneros musicais recentes considerados bem brasileiros.

    E o que esse esclarecimento entre teoria e prática, entre a validade de propostas artísticas e a coerência das suas realizações nos dá de lição? Creio que o seguinte: não é porque uma obra ou interpretação relê temas e elementos estrangeiros tentando “domesticá-los” com uma recriação com elementos brasileiros que essa obra será automaticamente inferior ou errada ou incoerente, assim como não é porque uma obra ou interpretação lê temas e elementos estrangeiros de modo tradicional, direto e reconstitutivo que essa obra será automaticamente datada. MAS eu não acho que isso deva nos deixar com um relativismo politicamente correto, porque se uma produção operística resolve fazer um “Anel brasileiro”, eu creio que deva haver um bom motivo pra isso. Por que fazer um Anel brasileiro? Seria porque a ópera é estranha à cultura do país e uma adaptação do seu enredo com o folclore brasileiro produziria um resultado de interesse e de potencial pelos nossos produtores? Creio que esse juízo do estranhamento da ópera à cultura brasileira é, como eu disse, um erro, um engano desinformado historicamente, descrente mesmo da nossa relação potencial com uma tradição erudita. Seria então apenas para exercer o direito de interpretação das montagens usando-se do que nós devemos saber fazer de melhor, que é produzir uma ópera usando o nosso próprio folclore? Pode ser, mas se isso não merece ser condenado de pronto, também não garante um valor para essa produção: ela vai ter que se provar tanto coerente e bem realizada como de fato justificada. E como muitos observaram durante as apresentações dessa montagem, a relação entre Wagner e o folclore brasileiro pareceu realmente duvidosa, a ponto – na minha opinião – de render esse franco mal entendido com um aspecto central do enredo, quando se tomam os desdobramentos do heroísmo de Siegfried.

    Portanto, propostas artísticas e seus reais potenciais estéticos à parte, ainda fazemos bem em reconhecer que tanto as propostas como as suas realizações são passíveis de crítica, para não ficarmos com um relativismo que defende uma obra ou interpretação por concessão à sua proposta intencionada.

  19. Sou melômano fanático. Nao vi essa montagem do Anel, mas já conheci muitos “Aneis”, tanto tradicionais quanto “adaptados a releituras atualizadoras”. Acompanhei aqui os comentários de Leonardo e de Filipe. Considero que ambos ,diplomaticamente, extrapolaram o “mito” de Wagner. Seria pelo simples fato de todos os mitos se prestarem a tudo?
    Em qualquer obra modernizada, há arranjos simbólicos ou semânticos. A pintura renascentista expunha o mito grego em vestuário”atual”. A diferença é se os “arranjos” ou “traduções” continuam fazendo sentido ou nao.
    Nao consigo alcançar qual o sortilégio que justificasse a gente abrasileirar Wagner, Shakespeare, ou Virgílio, sem com isso cair num risco tremendo de total desfiguração daquilo que, sendo universal, traz em seu bojo inferências que serviriam ao Brasil ou a Sumatra…
    Outra coisa nao consegui compreender: a homossexualização de Gunter e Siegfried seria uma característica”brasileira” do nosso Wagner? Alguém também comentou sobre a- probabilíssima- relação entre o compositor e Ludwig II, porém, convenhamos, isso nao legitima a distorção de Siegfried. Mesmo que a possível bissexualidade deste último nao o tornasse tão “ordinário”, a sua promessa a Brunhilde antes do elixir, como frisa leonardo, desmentiria,e aqui nao há puritanismo, num contexto medieval, o caráter heroico-extraordinário daquele homem, que trouxera Brunhilde do rochedo, ora seduzido e narcotizado por Gunter. Só faria sentido se Gunter aplicasse o filtro da homossexualidade…..
    Wagner pode ter tido,e teve, muitas entrelinhas em seus libretos, no que se refere a hipocrisias, racismos e erotismos. Alguns apontam a possível ambivalência do Rei Marke ao acusar Tristão de dupla traição…..
    Mas, só um pouquinho, não temos elementos para ver entrelinhas homoeróticas pelo simples fato de o recato do séc.XIX ter abafado muita coisa. …Nem a pretexto de abrasileirar seja o que for… A menos que queiramos viajar na maionese demagoga como agora pretendem editar Machado com linguagem nerd…..Devagar com esses andores!

  20. Caro Flavio,

    Em primeiro lugar, agradeço muito pelo seu interesse neste tema, mesmo não tendo assistido à produção discutida: isto faz valer a reflexão deste post para muito além de uma mera “resenha”!

    Quanto aos pontos que você expõe, peço apenas um esclarecimento: em que sentido você considera que os meus comentários e os do Filipe “extrapolaram” o mito de Wagner?

    Sobre a desfiguração daquela universalidade do mito e da grande arte ao serem sujeitas a “atualizações” e a “traduções”, me parece que a ideia dos diretores de ópera é que apenas os elementos “locais” do enredo sejam atualizados e interpretados, provando justamente que o enredo dessas óperas consegue ser deslocado para qualquer lugar e época da história sem com isso perder a sua atualidade e universalidade. Termina sendo algo como um exercício de interpretação, que toma a frente nessa mobilidade dos clássicos. Mas, como eu expus no texto e depois nos comentários, eu concordo plenamente com você que nem sempre parece haver uma boa justificativa para essas atualizações, e que não é sempre inócuo considerar que essas mudanças conseguem preservar a universalidade desses enredos (afinal, as personagens e contexturas da história também têm seus arquétipos, o que às vezes pode não ser compatível com todo e qualquer mito ou enredo de ópera nas suas especificidades arquetípicas). A transposição do mito wagneriano para o múltiplo folclore brasileiro parece ter sido um exemplo flagrante dessa incompatibilidade, pelo menos da maneira como essa produção foi feita.

    E quanto ao traço “brasileiro” dessa montagem da ópera, de fato, nem é tanto por Gunther ser apresentado como homossexual, mas sim o traço ordinário que foi dado a elementos originalmente de heroísmo e de honra em momentos-chave na ópera (de onde a “malícia erótica” foi um tratamento revelador dessa produção à cena entre Siegfried e Gunther). Talvez essa desconstrução do heroísmo, do amor, da honra (no pacto de lealdade entre os homens), sendo em cada cena apresentado como falso ou como disfarce para desejos imediatos, seja algo de revelador para uma produção que se disse “brasileira” – talvez nossa cultura tenha absorvido muito profundamente esse tipo de relativismo. Mas é apenas algo para refletirmos.

    Um grande abraço!

  21. Caro Leonardo,
    Há uma semana vejo analiticamente o que vocês ,sinteticamente, lembram de 3 anos.
    Você hoje pronunciou “montagem que se disse brasileira”.
    O conjunto de comentários pretéritos ligavam atualização e regionalização …com uma possível orientação sexual de Siegfried, no que achei perfeitas tuas réplicas.
    A “extrapolação” que você e Filipe teriam feito do mito reside apenas ,a meu entender, na demasiada ênfase a uma nebulosa (talvez mítica?) alternatividade erótica de Siegfried ou de Wagner. Ou seja, não desenvolvamos tanta conjectura em vapores tão cinzentos . A arte está acima disto, penso eu.
    Mas Wagner era prolixo demais, isto sim. Para nobres desocupados do sec 19. Tivessem suas óperas uma hora a menos de recitativos , ele seria o rei da ópera, não fosse tão indigesta a língua alemã….

  22. Caro Flavio,

    Lembrando dos comentários ao post, acho que quem especulava se a escolha do diretor em retratar um Gunther homossexual e um Siegfried bissexual não teria base na própria experiência de Wagner era o Lucio, e não eu ou o Filipe.

    Da minha parte, como conversamos à parte, eu refleti sobre a transposição do enredo da ópera ao múltiplo folclore brasileiro ter resultado em uma desconstrução de sentidos caros ao mito wagneriano, como o heroísmo, o amor puro, a redenção transcendente, a amizade solene, todas transformadas nessa montagem em malícia erótica e egoísmo, a ponto dela ter gerado algumas contradições entre a fala das personagens e suas ações (como exemplifiquei sobre Siegfried em outras cenas também).

    E na minha conversa com o Filipe, discutimos apenas se isso poderia ser julgado prontamente como ruim ou não.

  23. Caro Leonardo,
    Eu li todos aqueles comentários encadeados de um só fôlego, desde Lúcio até você, passando por muitos de Filipe. Houve uma visitante que sugeriu que a “alegoria” pudesse ter a ver com Ludwig II e Wagner….
    Sabemos que Wagner homem nao tinha a nobreza do Wagner artista. Jamais estou aqui a dizer que homossexualidade nao seja nobre.
    Mas antipreconceito também é preconceito. Muitas causas homófilas só servem à homofobia, como são contraproducentes certos revanches da consciência gay, ou afro ou feminista.
    Não importa quem disse o que. Você está falando tudo:”desconstrução de sentidos , heroísmo,redenção, amizade solene”.
    Discutir com Filipe se isso é ruim? Eu,prontamente, nao teria dúvidas. Por isso falei que acho q você e Filipe debateram mais do que a “coisa” merecia.

  24. Leonardo está certo especialmente na análise dos últimos parágrafos. Abaixo pós-modernidade/relativismo/egoísmo/edonismo/freudismo!

  25. Leonardo,
    Aproveitando este artigo, peço licença para colocar o meu ponto de vista: não sou fã dessas produções modernas, que fogem do espírito da época em que se passa o enredo e do intuito do compositor.
    Não posso concordar com algumas coisas absurdas, na minha opinião, que fazem em algumas óperas, colocando os personagens em situações às vezes grotescas e bem diferentes da história ali contada, como ocorre com as produções da lavra de Calixto Bieito.
    No caso de Wagner, gostaria de acrescentar que o próprio compositor era um perfeccionista quanto a encenação de seus dramas musicais. Não foi à toa que ele quis um teatro específico para a encenação das suas obras.
    Por fim, podem achar que eu sou um nostálgico ou até um retrógrado, mas prefiro sempre as apresentações de óperas que respeitem a intenção do respectivo autor.
    Abraços.

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