19abr 2017
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Música clássica no cinema: os exemplos de Kubrick, Visconti e Fellini

Trilhas sonoras surgem com propósitos bem definidos, de modo que seria exigir demais que elas sejam grande música quando só precisam ser memoráveis com as imagens que acompanham. Algumas parcerias entre diretores e compositores – Spielberg e John Williams, Kieslowski e Preisner, Leone e Morricone, dentre outros – atestam a centralidade da composição para um bom filme, mas é difícil que essas trilhas sonoras tenham grande valia fora dos filmes. Lembro especialmente dos ótimos trabalhos de Bernard Herrmann para os filmes de Hitchcock e que, contudo, não são nada atrativos quando isolados na sala de concerto. E quando os diretores preferem alguma música clássica surge a dificuldade adicional de conciliar uma composição previamente escrita com a sua intenção no filme – e daí somos apresentados a algumas associações por vezes felizes, mas que tendem a ser óbvias, como no uso da “Cavalgada das Valquírias” na seqüência do bombardeio de napalm em Apocalipse Now (1979).

Por ora, interessa-me aqui o uso de algumas músicas que se conciliaram bem com a imagem cinematográfica. Escolhi aqui três filmes que, creio, foram significativamente favorecidos pela trilha que seus diretores escolheram e, com o passar dos anos, se tornaram impensáveis sem elas. Nesses três vemos que a música não somente acrescentou algo a uma cena em particular, mas foi necessária mesmo para dar sentido a todo o filme.

2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)

Começo pelo exemplo célebre do filme de Stanley Kubrick e o poema sinfônico Assim falou Zaratustra, de 1896, de Richard Strauss. Há quem diga que este foi o primeiro filme com trilha inteiramente formada por composições já escritas, não tendo qualquer música original. Ocorreu que durante a montagem do filme, obras de Ligeti, Johann Strauss e Richard Strauss foram usadas como uma espécie de fundo musical provisório útil tanto para a montagem de Kubrick quanto para inspirar Alex North, compositor da trilha definitiva. Enquanto assistia a uma série da BBC sobre a Primeira Guerra Mundial que usava o poema sinfônico de Strauss, Kubrick se deu conta de que ele era ideal demais para o filme de modo que desistiu dos mais de quarenta minutos já compostos e gravados por North. Este, que havia trabalhado com Kubrick em Spartacus (1960), ficou, evidentemente, frustrado, porém é inegável que sua obra segue os cacoetes típicos do que se escuta em filmes épicos.

E agora todo monólito lembra Richard Strauss

Em 2001 encontramos uma coerência entre narrativa cinematográfica, música e filosofia muito apropriada: Nietzsche sempre manifestou a vontade de ver algum dia seu poema transformado em música – no que chegou perto quando inspirou outras composições, como “A Mass of Life”, de Frederick Delius, e a “Terceira Sinfonia” de Mahler. Porém, somente Richard Strauss se propôs a dar uma representação musical plena das idéias de Zaratustra, profeta criado pelo filósofo alemão, para quem, em sua passagem mais famosa, o homem é um ser que reside entre o primata e o além do homem – Übermensch. Zaratustra anuncia aos homens a possibilidade de saltar sua condição, que posteriormente lhe parecerá tão ignóbil quanto os símios nos parecem atualmente – e claro, isso não tem nada a ver com evolução física.

De trilha temporária a elemento essencial do filme, Assim falou Zaratrustra nos informa de maneira quase didática o que estamos assistindo. Na cena de abertura escutamos o poema sinfônico no momento em que a Terra, a Lua e o Sol aparecem alinhados – esse alinhamento dos astros fazia parte do imaginário do zoroastrismo. Quando ouvirmos as notas do tema da fanfarra de abertura novamente – dó-sol-dó – será o instante em que testemunhamos um “salto” evolucionário: um primata, após o encontro com o monólito cuja origem e propósito desconhecemos, percebe a possibilidade de usar um osso para abater a caça, criando assim o primeiro instrumento da cultura humana. Enfim, uma cena que resume milhares de anos da história:

Desconsiderando aqui todo o resto da narrativa, em que astronautas enfrentam problemas com um supercomputador louco, quando novamente Assim falou Zaratustra tocar será quando o astronauta Bowman encontrar o monólito e ele mesmo sofrer um “salto” para se tornar uma entidade semelhante a um feto, indicando uma vida inteiramente nova que vaga pelo espaço zelando pela Terra. Espécie de escada da humanidade, o monólito foi enviado por algo ou alguém para nossa evolução e a música de Strauss não só ilustra esse passo como o conecta com o pensamento de Nietzsche – seja lá o que viermos a ser depois da transvalorização de todos os valores que Zaratustra do filósofo ansiava, será incompreensível em nosso atual estágio.

Morte em Veneza (1971)

Menos épico e mais intimista, Luchino Visconti procurou em sua adaptação da novela homônima de Thomas Mann, de 1912, associar o protagonista com Gustav Mahler, recorrendo não só ao adagio da Quinta Sinfonia e ao quarto movimento da Terceira Sinfonia, como à própria biografia do compositor.

Contemporâneo da anarquia do terrorismo da Europa pós-68, Visconti acreditava testemunhar uma repetição do mundo que precedeu a ascensão do fascismo dos anos 20 e 30, de modo que terminou por se identificar cada vez mais com Thomas Mann, a quem ele via como uma espécie de última fortaleza do humanismo frente àquela Alemanha que declinava rumo à barbárie. Em dado momento, o diretor chegou a afirmar que todos os seus filmes estavam imersos pela obra de Mann – e, de fato, Rocco e seus irmãos contém um pouco de José e seus Irmãos, e mesmo um filme exaltado como Os Deuses Vencidos ecoa Os Buddenbrooks na descrição da decadência de uma família.

Dirk Bogarde como Aschenbach. Ou Mahler. Ou Mann.

Já tendo adaptado Mário e o Mágico para para um balé, era natural que o diretor italiano adaptasse alguma obra de seu ídolo para o cinema. Como resultado, Morte em Veneza é uma reunião peculiar de artistas do século XX unidos pelo mesmo pathos. Diga-se que a música de Mahler não surgiu como opção por obra de Visconti, mas pela sugestão indireta presente na própria obra de Mann, para quem Mahler era uma representação do herói cultural de fins do século XIX – como, aliás, provavelmente Mann via a si mesmo.

É verdade que o protagonista da novela, Gustav von Aschenbach, é um escritor, mas ele tem todas as características que Mann enxergava num artista de seu tempo, como Mahler: um indivíduo excepcional, alto representante de sua cultura, e que, por isso mesmo, tem de pagar um alto preço por isso. Daí que as alterações de Visconti nem ameaçam a narrativa que assistimos: ao invés de um escritor viúvo, um compositor que perdeu uma filha ainda pequena – o grande trauma do compositor das Kindertotenlieder.

Desse modo, Morte em Veneza é um filme sobre Mahler porque é sobre um determinado tipo de artista que tanto Mann quanto Visconti acreditavam perceber no compositor: alguém que passou a vida sob uma disciplina cuidadosa, apolínea, para conseguir lidar com a arte sem comprometer sua posição social. Porém, numa viagem a Veneza, ele encontra algo sublime que ainda não foi subjugado pelos constrangimentos de uma sociedade burguesa na figura do jovem Tadzio, uma força dionisíaca que ele teme ao mesmo em que se sente atraído. Incapaz de conciliar essas forças contrárias em seu espírito, Aschenbach/Mahler se entrega à morte para seguir vivendo.

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Sem querer entrar na validade dessa interpretação da vida de Mahler, é notável o quanto o adágio da quinta sinfonia atravessa todo o filme para ilustrar o encontro de Gustav com Tadzio. Inevitavelmente o movimento ficou intimamente associado às sequências do filme.

E La Nave Va (1983)

Para finalizar, não posso deixar de fazer uma breve menção ao uso mais lúdico da música clássica que há em E La Nave Va, de Federico Fellini. Homenagem à Belle Époque, o diretor italiano ficou impressionado com o elaborado funeral de Callas e daí lhe surgiu a idéia de fazer um filme sobre diversos personagens que se reúnem a bordo de um navio para as últimas despedidas a uma célebre diva de ópera, Edmea Tetua. Contando com seqüências que se apropriam de trechos das óperas de Verdi, Fellini ao mesmo que satiriza a cultura dos fãs de ópera e a vaidade de seus cantores, termina indicando uma profunda reverência à grande arte de seu país, com a qual evitou constrangido por anos em sua carreira. E La Nave Va é, talvez, o melhor exemplo de um filme nostálgico e o uso da ópera ressalta que aquilo que estamos assistindo a um passado .

http://www.youtube.com/watch?v=moP7koefBdA

Infelizmente não encontrei vídeo disponível com aquela que é, na minha opinião, uma das cenas mais deliciosas do cinema: a execução do Momento Musical Nº 3 de Schubert em taças e copos na cozinha do navio. Imagino que ainda existam outros exemplos que vocês possam recordar, mesmo se reduzidos a uma única cena, porém quando a combinação é bem elaborada como nesses três filmes isso já será o suficiente para que música e filme se tornem indissociáveis.


Este post tem 8 comentários.

8 respostas para “Música clássica no cinema: os exemplos de Kubrick, Visconti e Fellini”

  1. Eu me lembro agora do sucesso da Suíte Sinfônica ”On the Waterfront”, tema do filme ”Sindicato dos Ladrões”, estrelado por Marlon Brando, composta por Leonhard Bernstein. Peça essa que é frequentemente tocada em salas de concertos. Muito boa!

  2. De fato, Felipe, essa música marcou bastante Barry Lyndon! Não apenas nesta cena, mas aquela clássica do filme, em que todos estão em uma sala de jantar, embaixo de uma luminária de cristal. Eu nem sabia que essa música era do Schubert, agradeço por ter tirado uma dúvida que tinha há muitos anos! Excelente filme, por sinal!

  3. “Lembro especialmente dos ótimos trabalhos de Bernard Herrmann para os filmes de Hitchcock e que, contudo, não são nada atrativos quando isolados na sala de concerto.”

    Está brincando com o perigo falando uma coisa dessas. Mais cuidado.

  4. As trilhas musicais abrilhantaram filmes por décadas no cinema. É a combinação perfeita para o público se emocionar, porque agrega além do sentido da audição e visão, o coração é tocado pela música.

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