19abr 2017
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Rainhas no ring

Como disse Alan Riding no seu guia, a ópera é inseparável do culto às divas. Ao longo dos séculos, alguns cantores de voz excepcional e temperamento forte passaram a personificar a paixão e o drama da ópera. Os fãs sempre perceberam isso com entusiasmo, veneração e, até mesmo, histeria. As grandes estrelas do momento ganhavam apelidos e era natural haver rivalidade pública entre elas. Talvez a mais famosa – e mais recente – é a de Maria Callas (1923-1977) e Renata Tebaldi (1922-2004). Faíscas eram trocadas frequentemente e estimuladas pelos seus vassalos. Na revista Time, em 1956, por exemplo, Callas comparou sua voz ao champanhe e a de Tebaldi à Coca-Cola.

Indo ao início do século XX, encontramos outra rivalidade em Londres: a soprano australiana Dame Nellie Melba (1861-1931) batia de frente com a italiana Luisa Tetrazzini (1871-1941) por coisas como, por exemplo, ela ter sido chamada mais vezes ao palco da Royal Opera para receber aplausos.

Caricatura de época ilustrando a rivalidade entre as sopranos Luisa Tetrazzini e Dame Nellie Melba

Voltando mais na linha do tempo, temos a Paris da metade do século XIX como palco de combate entre a mezzo-soprano francesa Rosine Stoltz (1815-1903), amante do diretor da Opéra, e a belga Julie Dorus-Gras (1805-1893), banida dos palcos por influência da inimiga.

Rosine Stoltz e Julie Dorus-Gras: enquanto uma cantava a outra vaiava no camarote do teatro

Mas é no século XVIII que vamos encontrar uma eletrizante história, que é o foco deste post. O ring musical mais famoso do período 1726-28 estava na Londres dominada pela paixão sobre a ópera italiana e onde Georg Friedrich Händel (1685-1759) se consolidava, em minha opinião, como o maior compositor de óperas do Barroco.

Com prestígio e talento, Händel conseguiu reunir no seu palco duas lendas do canto da época: a soprano parmesã Francesca Cuzzoni (1696-1778) e a mezzo-soprano veneziana Faustina Bordoni (1697-1781), contratadas pela Royal Academy of Music, que cinicamente explorava essa rivalidade ao envolver as rivais em papéis que provocariam conflitos, no palco e fora dele.

Esse clima, mesmo gerando muita dor de cabeça para o compositor, na tentativa de se dedicar aos dois lados, permitiu a produção de obras-primas eternas para a história da música. A capacidade extraordinária dessas intérpretes no domínio de certos recursos vocais foi fundamental para o compositor liberar sua criatividade e aplicar toda sua carga artística nos papéis que moldava especialmente para suas divas.

Händel tentou contornar a guerra entre suas divas para viabilizar o sucesso de suas óperas

Seria o embate entre Cuzzoni e Bordoni a primeira grande rivalidade na ópera? Possivelmente. O terreno dessa arena foi semeado durante outra guerra entre o próprio Händel e seu concorrente direto: o compositor italiano Giovanni Battista Bononcini (1670-1747), que estava em conflito com a direção do teatro no qual apresentava suas óperas.

Bononcini, rival de Händel

Em meados de 1722, Händel tinha acabado de compor Ottone, re di Germania, mas tentava atrair uma soprano de renome internacional para garantir o sucesso retumbante de sua nova ópera. Finalmente, soube que logo a famosa Francesca Cuzzoni chegaria a Londres. Isso foi suficiente para ele reescrever parte da obra e dar à grande estrela as melhores chances de brilhar – o que aconteceu na sua estréia em janeiro de 1723, no King’s Theater.

O antigo King’s Theatre, por William Capon (séc. XVIII), palco de lendários momentos da história da ópera

Cuzzoni, considerada por vários pesquisadores como a primeira prima-dona da ópera, era uma “veneziana baixinha e feia como o diabo” – frisa Lauro Machado Coelho – e de temperamento típico de sua categoria (vaidosa e arrogante), mas que “tinha um ninho inteiro de rouxinóis dentro da barriga”, como dizia Händel. Relatos de sua aparência física destacam seus olhos redondos, seu nariz grande e um gordo pescoço. Rodolfo Celletti, especialista em Belcanto, destacou “a ressonância, a homogeneidade, o timbre doce e tocante” da cantora, além do seu belo “fraseado no estilo languido-elegíaco e no patético” e da “extensão notável”, sendo, segundo ele, “provavelmente, a primeira cantora italiana com características de soprano agudo”.

Quantz: um flautista amante da arte do canto

Testemunhos de época não faltam. O renomado flautista e compositor Johann Joachim Quantz (1697-1773) descreveu seu estilo de cantar como “inocente e tocante, e seus ornamentos dominavam a alma de cada ouvinte, por sua expressão comovente e suave”. O castrato Giovanni Battista Mancini (1714-1800) registrou que “seu poder de conduzir, manter, aumentar e diminuir suas notas a completava em sua arte”.

A interação de Händel com Cuzzoni não era nada fácil, por serem ambos geniosos e autoritários. Isso é bem ilustrado no famoso episódio do ensaio de Ottone em que Francesca recusou-se a cantar a ária “Falsa immagine” por julgá-la inadequada para a sua voz – alguns dizem que ela não teria aceitado porque o número já havia sido composto para outra cantora, que seria Maria Maddalena Salvai (1690-1731), e porque a achou demasiado simples para seu nível. A questão é que Händel havia gostado particularmente dessa ária e estava ansioso para constatar seu impacto. Segundo o primeiro biógrafo do compositor, John Mainwaring (1735–1807), com seu pesado sotaque germânico o compositor teria advertido em francês:

Oh, madame! Eu sei muito bem que você é uma verdadeira diaba, mas eu tenho a honra de lhe anunciar que eu sou o próprio Belzebu, o chefe dos demônios!

Agarrando-a no colo, levou-a até a janela aberta e ameaçou atirá-la na rua. Diante do risco, Cuzzoni cedeu – e Händel tinha razão, pois “Falsa imaginne” (magnificamente cantada no clipe abaixo, embora em produção moderna), com seus ritmos pontuados e seus recursos que situam a voz no registro agudo, privilegiava o que havia de mais leve e de mais gracioso no timbre da soprano.

[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=HvhyIFhIKGE” maxwidth=”600″]

O apogeu da arte de Händel aconteceu em Giulio Cesare in Egitto. Aqui ele inseriu sua inspiração mais refinada em toda a extensa partitura. Além do papel-título dedicado ao seu castrato favorito, o também temperamental Francesco Bernardi (1686-1758), conhecido como Senesino, Händel lapidou o papel de Cleópatra especialmente para Cuzzoni. Nessa ópera, os intérpretes tinham o dobro de árias em relação à anterior, ou seja: tinham duas vezes mais oportunidades de brilhar aos olhos do público – que não poupou aplausos às gargantas de ouro em sua estréia, em fevereiro de 1724. Cuzzoni teve uma das melhores chances de expor seu canto hipnótico em “Piangerò la sorte mia” (vídeo abaixo, com um registro impecável).

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A jovem Cuzzoni com sua garganta privilegiada e famosa

A popularidade de Cuzzoni junto ao público só aumentava a sua vaidade insolente de ser vista como uma rival insuportável e indesejável. Mesmo desprovida de qualquer beleza física e tida como teimosa, ingrata e caprichosa, a parmigiana agia certa de que possuía todos os requisitos de beleza, arte e genialidade, tendo a fidelidade do público como seu direito natural.

Londres tinha sua parcela de culpa ao alimentar a arrogância de Cuzzoni, pois sempre a tratou como celebridade internacional desde a sua chegada, de modo que as londrinas até adotaram o estilo de seus vestidos e duelos eram travados pelo direito de acompanhá-la. Sua voz anestesiava as plateias com árias sublimes, como as de Rodelinda, regina de’ Langobardi (áudio abaixo).

Händel: Rodelinda, regina de’ Langobardi

Aria (Rodelinda): “Ombre, piante, urne funeste” [seleção]

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/06/Ombre-piante-urne-funeste-seleção.mp3|titles=Simone Kermes – Alan Curtis & Il Complesso Barrocco (Archiv/DG)]

Eis que, para complicar a situação, a direção do teatro trouxe da Itália, com o salário impressionante de 2 mil libras, a respeitada Faustina Bordoni, chamada de La Nuova Sirena (“A Nova Sereia”), com quem Cuzzoni (“A Velha Sereia”, para seus rivais) definitivamente entraria em rota de colisão. O primeiro contato profissional, e pouco amistoso, de ambas aconteceu na ópera Ariodante de Carlo Francesco Pollarolo (1653-1723), em 1716, ainda em Veneza.

A encantadora Bordoni chegou para acabar com a festa de Cuzzoni em Londres

Em março de 1726, um jornal de Londres já espetava: “a célebre cantora Faustina está pronta para partir de Veneza e demolir La Cuzzoni”. De fato, não tardou até que as duas prima-donas se odiassem. Sobre Bordoni, Quantz comentou que, em sua maturidade, ela estendeu seus limites vocais para os graves e possuía o que os italianos chamam de “canto granito” – firme e delineado. Sua execução era articulada e brilhante, com capacidade de pronunciar as palavras rápida e distintamente. Com sua natureza pacífica e cordial, Faustina poderia, naturalmente, ter mantido boas relações com uma eventual concorrente, mas a malícia e a inveja genuínas de Cuzzoni a faziam ignorar o fato de que suas qualidades poderiam ser exploradas para complementar o que as diferenciavam entre si.

Porpora: excelente professor de canto e rival de Händel

Lauro M. Coelho ressalta em sua pesquisa que as qualidades de Cuzzoni desenvolveram, na obra de Händel, um tipo de ária para soprano de fôlego e fantasia muito mais amplos do que qualquer coisa que, na época, tivesse sido criada por Bononcini ou Nicola Antonio Porpora (1686-1768), outro compositor rival. Heroínas como Cleópatra ou Rodelinda não eram apenas perfeitas partituras musicais, mas, unindo a “volúpia da sedutora à profundidade real do sentimento”, eram personagens de carne e osso, mulheres “multidimensionais”, como disse o pesquisador. Contando com outro ídolo dos palcos como Bordoni, as possibilidades psicológicas se abriram ainda mais para Händel. Celletti, em sua bíblia do Belcanto, informa que Faustina “já tinha, ao chegar a Londres, dez anos de carreira, durante os quais (…) afirmara-se como o principal expoente, no campo feminino, do stile brillante”. Ressaltou, ainda, sua “elegância e extraordinária agilidade”, notabilizando-se especialmente pela rapidez de execução dos vocalises e trinados.

Com grandes olhos negros, cabelos esplêndidos, uma doçura fascinante de expressão e de maneiras refinadas, Faustina eclipsava a rival na aparência, na beleza do corpo e na nobreza de postura. Händel ousava envolver ambas nas mesmas óperas e, praticamente, contava as notas para evitar mostrar qualquer preferência por uma das divas.

Händel já tinha começado a musicar seu Alessandro, quando soube que Bordoni estava para chegar. Com isso, interrompeu tudo e encomendou uma revisão do libreto. Considerado o melhor momento da ópera, a cena em que Rossane e Lisaura ouvem Alessandro conversando com cada uma delas, separadamente, exibe bem a ironia do compositor, pois, logo em seguida, cada uma surpreende o protagonista citando as melodias que ele estava cantando para a sua rival. Bordoni estava no seu auge em “Brilla nell’alma”, que deu liberdade ao seu tom brilhante e ágil (áudio abaixo).

Händel: Alessandro

Aria (Rossane): “Brilla nell’alma un non inteso ancor” [seleção]

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/06/Brilla-nell-alma-un-non-inteso-ancor-seleção.mp3|titles=Sophie Boulin – Sigiswald Kuijken & Le Petite Bande (DHM/Sony)]

Ainda em Alessandro, as duas rivais se unem, ao menos na ópera, para cantar o dueto “Placa l’alma, quieta il petto”. Nada de rivalidade aqui. Händel conseguiu uma trégua com árdua negociação (áudio abaixo).

Händel: Alessandro

Duetto (Rossane & Lisaura): “Placa l’alma, quieta il petto”

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/06/Placa-lalma-quieta-il-petto.mp3|titles=Sophie Boulin – Isabelle Poulenard – Sigiswald Kuijken & Le Petite Bande (DHM/Sony)]
O rei inglês George I, admirador e protetor de Händel, britanizou oficialmente o compositor

A necessidade de escrever árias que valorizassem as vozes das duas cantoras é a melhor qualidade e o maior problema do Alessandro: por um lado, há páginas de incrível beleza; por outro, a necessidade de dar a ambas um número igual de oportunidades para cantar faz com que a ópera se alongue demasiadamente.

O mesmo aconteceu na composição de Admeto, re di Tessaglia, de 1727. Händel escreveu a música com todo cuidado, pois lhe interessava ser bem acolhido pelo público. Ele queria se tornar britânico e aguardava a aprovação de seu pedido de naturalização. Todos vibraram com Faustina em “Gelosia spietata Aletto” (áudio abaixo). Pouco depois da estréia, o decreto foi assinado por George I (1660-1727), transformando George Frideric Handel (sua nova assinatura) em cidadão inglês.

Händel: Admeto, re di Tessaglia

Aria (Alceste): “Gelosia, spietata Aletto” [seleção]

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/06/Gelosia-spietata-Aletto-seleção.mp3|titles=Les Talens Lyriques & Christophe Rousset (Virgin)]

A vida nos bastidores com as estrelas de Händel nunca foi maçante: era freqüentemente irritante para o compositor. As rivais italianas andavam irritadíssimas também com as críticas das quais eram alvos por parte dos jornalistas moralizadores, que viam nelas instrumentos de perversão e indecência. A tensão foi ao extremo, em abril de 1727, na estréia da ópera Astianatte do ainda ativo Bononcini com as duas sereias no elenco.

A Princesa de Gales, Caroline von Ansbach, foi testemunha da inusitada baixaria em pleno teatro real

A certa altura da ópera, as rivais partiram para as vias de fato em pleno palco, diante da Princesa de Gales. A platéia, turbulenta e agitadora, divertiu-se com o espetáculo circense das grandes divas trocando insultos em italiano e estraçalhando a peruca uma da outra, com direito a arranhões, até serem escoltadas para fora. Fãs invadiram o palco, arremessaram cadeiras e quase colocaram o teatro abaixo. Toda temporada de ópera foi suspensa devido ao incidente.

Theophilus Cibber

Semana depois da frustrada estréia de Astianatte, Theophilus Cibber (1703-1758) estreava a peça Contretemps, or The Rival Queens (Contratempo, ou As Rainhas Rivais), explorando o episódio recente, que se tornara um prato cheio para os falatórios da cidade: Faustina como Queen of Bologna e Cuzzoni era a Princess of Modena. Apesar do vexame, talvez convencido de que toda publicidade é bem-vinda, Händel manteve as duas cantoras na sua companhia, mas as brigas entre as facções de fanáticos não eram mais tão intensas.

Em 1728, o surgimento da ballad opera na Inglaterra provocou a derrocada da Royal Academy of Music, na qual Händel havia ingressado como seu Master of the Orchestra, em 1719 (a atual instituição de mesmo nome foi fundada em 1822). Com a crise sobre o King’s Theatre, as duas rivais preferiram voltar para a Itália. Mais tarde, Cuzzoni perdeu a voz, mas não a extravagância, que acabaria por levá-la a fugir diversas vezes dos credores e cair por duas ocasiões na prisão. Acabaria na miséria, fazendo botões para sobreviver. Bordoni, por outro lado, casou-se com o célebre Johann Adolph Hasse (1699-1783) e atuou até 1751 em diversas óperas do marido – e muito bem remunerada: ele ganhava 50 ducados por ópera e a esposa, 3.300 para cantá-la!

Hasse, marido e parceiro profissional de Bordoni, viveu em paz com a esposa após a fase bélica dela em Londres

Embora o comportamento das divas tenha sido estressante para Händel, essas mulheres também contribuíram fortemente para o desenvolvimento do seu estilo musical e o nível de qualidade de suas obras-primas para o teatro. Relaciono, no espaço para comentários, uma lista complementar com a participação de Cuzzoni e Bordoni em óperas de Händel, todas apresentadas no King’s Theatre (Haymarket), em Londres.


Este post tem 7 comentários.

7 respostas para “Rainhas no ring

  1. Participações de Cuzzoni e Bordoni em óperas de Händel

    I. Papéis de Francesca Cuzzoni (12)
    HWV 12b: Radamisto (Polissena)
    HWV 15: Ottone, re di Germania (Teofane)
    HWV 16: Flavio, re de’ Langobardi (Emilia)
    HWV 17: Giulio Cesare in Egitto (Cleopatra)
    HWV 18: Tamerlano (Asteria)
    HWV 19: Rodelinda, regina de’ Langobardi (Rodelinda)
    HWV 20: Publio Cornelio Scipione (Berenice)
    HWV 21: Alessandro (Lisaura)
    HWV 22: Admeto, re di Tessaglia (Antigona)
    HWV 23: Riccardo Primo, re d’Inghilterra (Costanza)
    HWV 24: Siroe, re di Persia (Laodice)
    HWV 25: Tolomeo, re d’Egitto (Seleuce)

    II. Papéis de Faustina Bordoni (7)
    HWV 12b: Radamisto (Zenobia)
    HWV 14: Floridante (Rossane)
    HWV 21: Alessandro (Rossane)
    HWV 22: Admeto, re di Tessaglia (Alceste)
    HWV 23: Riccardo Primo, re d’Inghilterra (Pulcheria)
    HWV 24: Siroe, re di Persia (Emira)
    HWV 25: Tolomeo, re d’Egitto (Elisa)

    III. Participações conjuntas (6)
    HWV 12b: Radamisto
    HWV 21: Alessandro
    HWV 22: Admeto, re di Tessaglia
    HWV 23: Riccardo Primo, re d’Inghilterra
    HWV 24: Siroe, re di Persia
    HWV 25: Tolomeo, re d’Egitto

  2. Nellie Melba era uma diva tão carismática que virou até sobremesa: em sua homenagem, o não menos lendário cozinheiro Auguste Escoffier criou a “Pêche Melba” em 1893. Com direito a verbete na Wikipédia em francês:
    http://fr.wikipedia.org/wiki/P%C3%AAche_Melba

    Sobre Nellie Melba existe uma historinha deliciosa que muitos não conhecem. Numa apresentação do “Otello” de Verdi na Austrália, sua última ária da Desdêmona (antes de morrer) provocou aplausos tão estrepitosos e longos da plateia, que a Nellie não vacilou: interropeu a ópera pra mandar trazer um piano de armário ao palco. Quando este chegou, ela cantou “Home, Sweet Home”, acompanhado por ela mesma. A casa veio abaixo, enquanto o pobre Otello aguardava a vez de matar sua mulher.

  3. Caro Monteiro, legal essa história da Melba. Não conhecia. Sua “querida” Tetrazzini deve ter se mordido de inveja! :)

    Fiquei pensando na situação mais recente (e atual) dessas divertidas rivalidades… Qual seria a mais forte depois de Callas x Tebaldi? Dame Joan Sutherland (1926-2010) não tinha temperamento de prima-dona. Nunca vi menção a rivais suas. Montserrat Caballé, idem. Uma das sopranos célebres mais temperamentais dos últimos tempos foi a americana Kathleen Deanna Battle. Gosto muito de suas atuações, especialmente em Mozart, mas não conheço rivais suas no palco. Fora dele a coisa muda! rs. Edita Gruberova (a mais recente das grandes prima-donas?) também não tem rival, no sentido clássico. Mariella Devia? Não acho. Anna Netrebko passa longe de uma verdadeira prima-dona, embora tenha, pelo que ouvi dizer, um temperamento nada agradável e carismático.

    Será que não há mais ambiente para essas rivalidades? São outros tempos… Não percebo guerra explícita entre sopranos por espaço nos palcos dos teatros de ópera. Tudo indica que Cuzzoni e Bordoni foram as primeiras grandes rivais. Seriam Callas e Tebaldi as últimas dessa “tradição” secular?

  4. Mestre: não posso provar, mas tenho certeza de que a rivalidade entre “prime donne” é tão antiga quanto a ópera. Anna Renzi (1620?-1670?), a primeira diva que se tem notícia, certamente causou inveja às outras sopranos, ao ser eleita a favorita de Claudio Monteverdi, pra cantar a parte de Ottavia na “Incoronazione di Poppea” já por 1642.

    Hoje em dia, a rivalidade entre divas certamente ainda existe. Só não é mais tão explorada pelas casas de ópera e a mídia, para atrair mais público. Ainda bem. Abs.

  5. Caro Monteiro,
    Muito oportuna a sua lembrança da lendária Anna Renzi (também citada como Anna Rentia ou Anna Renzini). Fui pesquisar sobre essa cantora e acabei descobrindo que havia outra diva ainda mais antiga e igualmente célebre: Vittoria Concarini Archilei, ativa entre 1582 e 1620 – conhecida como La Romanina. Ela estudou com o grande Emilio de’ Cavalieri e trabalhou para os Medici, em Florença. Cantou ainda em obras de mestres como Luca Marenzio, Giulio Caccini, Jacopo Peri e Sigismondo d’India. No prefácio de L’Euridice, Peri se refere a Vittoria como “a Euterpe da nossa época”, entre tantos e tantos elogios ao talento da cantora. Sobre o tema, consultei um livro excelente: Five Centuries of Women Singers (Isabelle Emerson, Ed. Praeger, 2005). Aqui está:
    http://www.amazon.com/Centuries-Women-Singers-Reference-Collection/dp/0313308101/ref=la_B001KDGCXA_1_1?ie=UTF8&qid=1341184253&sr=1-1
    A propósito, estou ouvindo uma pérola injustamente desconhecida de Händel: Tolomeo, rè d’Egitto (HWV 25), que, aliás, contou com nossas queridas Cuzzoni e Bordoni na sua estréia. A gravação, com um elenco impecável e regência brilhante, é esta:
    http://www.amazon.com/Tolomeo-Hallenberg-Bonitatibus-Spagnoli-Complesso/dp/B0011FDTC4
    Ouçam a ária escrita para Senesino (citado no post) no link abaixo. Há um recitativo inicial e depois vem “Stille amare”. Quando o protagonista tomba no final, lembra a morte de Gilda em Rigoletto (Verdi), ou melhor: a morte de Gennaro em Lucrezia Borgia (Donizetti). É Händel na vanguarda!
    http://www.youtube.com/watch?v=LkU0al0_ezQ
    Abraços barrocos!

  6. Mestre: tem toda a razão, “L’Archilei” é diva anterior à Renzi. Consultando meu amansa-burros, li que ela tocava “chitarrina spagnuola” e era casada com o compositor e alaudista Antonio Archilei, e ambos trabalhavam pros Medici em Florença, além de terem contatos com os Sforza e os Gonzaga. Com tantos sobrenomes ilustres a apoiá-la, aposto que nenhuma cantora queria ser sua rival, na época.

    Ou será que tinha Vittoria uma rival mesmo assim? Acabei de ler que uma Ippolita Napoletana, cantora do cardeal Montalto, foi comparada à Vittoria Archilei por um tal M. da Gagliano em 1607. Mas o crítico preferia a “bontà di voce” de Vittoria e, com isso, quem sabe salvou a Ippolita de parar na forca, fogueira, ou nas águas do Arno… Abs diafragmáticos.

  7. Este post me lembrou muito o capítulo 2 de A Mão e a Luva do Machado de Assis, em que ele descreve a São Paulo da segunda metade do século XIX e as legiões de fãs e defensores de suas respectivas divas. “Quem se não lembra, — ou quem não ouviu falar das batalhas feridas naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião casalônica e a falange chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento lagruísta?”. É muitingraçado, dá pra ler aqui: http://pt.wikisource.org/wiki/A_mão_e_a_luva/II.

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