Pode-se dizer que, cumprindo uma seqüência quase natural, artistas costumam descobrir e apresentar ao mundo os problemas que atingem o espírito humano muito antes dos médicos – e Freud, ciente disso, admitiu que tudo aquilo que ele disse os poetas já haviam dito antes. É lembrando disso que gostaria de tratar aqui de uma curiosa afinidade entre estética e ciência psiquiátrica no começo do século XIX através da Sinfonia Fantástica de Hector Berlioz.
Não quero cair na falácia da redução da música à sua circunstância, afinal, é óbvio demais que um compositor compartilha dos elementos de seu meio. Porém, isso não é e nem pode ser uma via de mão única, nunca se resume a uma simples determinação. Assim como o compositor encontra uma realidade pronta ao nascer, ele tem ao seu favor o fato da linguagem musical ser bastante ampla e, ao mesmo tempo, reconhecível a cada ser humano, de modo que será inevitável que existam obras impossíveis de serem simplesmente datadas.
Nesse sentido, recentemente li um interessante artigo de Francesca Brittan, intitulado “Berlioz and the Pathological Fantastic: Melancholy, Monomania, and Romantic Autobiography” e pareceu-me um ótimo exemplo de como estética e meio social dialogam. O programa da sinfonia de Berlioz não surge num vácuo, porém faz parte de um tema exaustivamente trabalhado pelos românticos, o da monomania, ou seja, do indivíduo que enlouquece por sua obsessão, como é possível constatar na literatura médica e na ficção da época. Não se trata aqui de tirar a originalidade de Berlioz, mas apontar para o fato de que ele faz parte de uma tradição que recebeu bastante atenção pela sociedade de seu tempo e garantiu mesmo seu sucesso. De fato, a imaginação romântica recebeu com muito apreço o inovador diagnóstico médico sobre indivíduos que perdiam a razão devido à mania em algo e encontrando seus sinais em todo lugar.
Primeiramente, detalhemos esse pano de fundo onde surge a Sinfonia Fantástica. Não menosprezemos o apelo que a noção de monomania teve quando surgiu: em 1826 a maioria dos residentes de Chareton – aquele hospício onde o Marquês de Sade terminou seus dias – foi diagnosticada com monomania. Ao longo dos anos o termo se torna corrente nos salões franceses, passando a fazer parte da linguagem cotidiana daqueles primeiros românticos – mais ou menos como a síndrome do pânico ou anorexia dos dias de hoje. Já em 1814, E. T. A. Hoffmann publica um conto chamado “Automata” com um personagem monomaníaco, idem o caso de Madame de Duras que em 1825 publica o romance “Edouard”, em que o personagem homônimo sofre de erotomania. Há ainda citações a monomania em obras de Balzac e Victor Hugo, para citar os mais famosos, e até mesmo Benjamin Constant em seu “Cours de Politique Constitutionnelle”, de 1816, cita a idée fixe, descrita como um “sentiment habituel”.
Sim, pois então a monomania vai se tornando indissociável de seu eufemismo, agora devidamente desprovido do peso da opinião médica: a idéia fixa, mas o sentido segue o mesmo. A estética francesa desse período está imersa sob as torturas de amores idealizados, convertidos em objeto de obsessão, e é comum a referência a essa mania que impossibilita uma vida normal, que faz com que o acometido alterne picos de euforia e frenesi com ciúmes e melancolia de conotações suicidas. A monomania é essencialmente romântica, é a aflição digna do herói – e não faltaram heróis no romantismo, pelo contrário. Do mesmo modo, os homens de gênio criador, fossem poetas, escritores ou compositores, acreditavam que padeciam da monomania, ou mesmo ansiavam a isso como marca de distinção para seu gênio, pintando em tons hiperbólicos suas trajetórias como monomaníacos. Enfim, por volta de 1830 a idéia fixa era cult.
E como isso chega até Berlioz e sua sinfonia? Existe um curioso paralelo entre um estudo médico de Esquirol e a vida de nosso compositor, conforme contada por ele mesmo em suas cartas e memórias. No estudo de caso, o alienista descreve um homem que vai ao teatro, se apaixona por uma das atrizes da peça e, mesmo sem nunca ter trocado uma palavra com ela, acredita firmemente que é correspondido, passando a persegui-la obsessivamente. Com a inevitável desilusão, o sujeito passa a ser acometido por alucinações com seu objeto de desejo até perder completamente a realidade. Bem, quem conhece a biografia de Berlioz percebe a similaridade quase completa aqui: também o compositor se apaixonou por uma atriz, a anglo-irlandesa Harriet Smithson, durante uma peça em Paris, em 1827, e também ele foi a todas as apresentações a partir de então acreditando que sua paixão era correspondida – chegava mesmo a pensar nela mais como a Ofélia que fazia em Hamlet e em si como o malfadado príncipe da Dinamarca. Era natural, uma vez que no romantismo Hamlet será o herói shakespereano por excelência.
Por fim, quando recebeu uma negativa constrangida de Harriet, cai em profunda depressão e será pensando nela que compõe seu opus mais conhecido. Alguns anos depois, já célebre pela Sinfonia Fantástica, Berlioz conseguirá finalmente conquistar Harriet, casando-se com ela em 1833. Foi um casamento desajeitado, haja vista que nem ela sabia francês, nem ele sabia inglês. Chegaram a ter um filho, mas terminam se separando, para alívio de ambos, em 1840.
Por toda a vida Berlioz dirá que a Sinfonia Fantástica é seu romance autobiográfico, trabalho de auto-descrição musical. Porém é importante ter em mente que os românticos, ansiando tornar a vida uma obra de arte, tinham uma noção distinta na expressão de suas vidas. A escrita autobiográfica não era exclusivamente baseada no relato factual, mas tendia a ser um meio termo entre o relato verídico e o novelesco, o que não se confunde com a mentira pura e simples. Para o romântico, um indivíduo ansioso em relatar a experiência da interioridade, bastava um pé na realidade para ressaltar alguns aspectos e diminuir o papel de outros. O resultado por vezes era quase irreconhecível, mas frise-se: isso jamais era tido como algo deliberadamente falso pelos seus autores, que estavam mais ocupados em dotar a vida de sentido do que relatar com crueza a pequenez do dia a dia.
No programa da Sinfonia Fantástica – disponível numa tradução em inglês aqui – podemos ler exatamente os sintomas da monomania no protagonista de Berlioz: também seu herói padece de uma “enfermidade moral” – a melancolia – e encontra uma mulher que reúne todas suas aspirações e sonhos por quem se apaixona desesperadamente. A partir de então não pode cogitar sua existência sem a imagem dela. Numa carta de fevereiro de 1830 para o amigo Stephen de La Madelaine o próprio Berlioz afirma que está sofrendo de uma idéia fixa, se desculpando por não ir ao encontro dele por estar num estado lastimável, com os nervos exaltados e incapaz de manter uma conversação com nexo – enfim, “uma idée fixe está me matando”, escreve. Nosso compositor ainda reclama da demora para compor sua sinfonia devido ao estado melancólico que chegava mesmo a lhe causar alucinações e convulsões e em outra carta comenta o quanto as idéias musicais passam incessantes pela sua mente. Para seu desespero, Berlioz era um melancólico no sentido mais clássico do termo: não um homem abatido e apático, mas, pelo contrário, alguém incapaz de conseguir se fixar num ponto e fadado a passar pelas diversas experiências sem realmente senti-las como autênticas.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/12/Berlioz-Symphonie-Fantastique-Op.-14-Idée-fixe-R.-Norrington-London-Classical-Players-1989.mp3|titles=Berlioz – Symphonie ‘Fantastique’ Op. 14 – Idée fixe (R. Norrington – London Classical Players – 1989)]Creio que o egocentrismo de Berlioz numa composição só encontre par em alguns poemas sinfônicos de Richard Strauss. Mas se o compositor alemão preenche suas composições até com detalhes familiares corriqueiros, o tom do francês será permanentemente épico, como só os românticos souberam ser ao expor seus dramas pessoais. Com a composição da Sinfonia Fantástica, Berlioz exorcizou sua enfermidade, o que não significou uma cura, uma vez que fez dela um componente central de sua própria identidade. Contudo, a partir de então ele pôde lidar com ela de modo criador. Em verdade, ele teve a sorte de viver numa atmosfera que favoreceu seu talento – no caso, o talento para a música de programa.
Talvez hoje ele recebesse o rótulo de bipolar, entretanto, não vale a pena pensar negativamente de seus exageros românticos, pois com a tentativa de pôr sua idéia fixa em música surgiu a Idée fixe musical, elemento que abre um novo horizonte musical. Assim, surgia a primeira peça musical de peso onde o motivo principal percorre todos os movimentos de modo a contar uma história de maneira quase didática. Procurando traduzir sua experiência íntima nosso compositor deu um passo significativo na história da música e não serão poucas as conseqüências disso. Em 05 de dezembro de 1830, a estréia da Sinfonia Fantástica no Conservatório de Paris se deu num horário incomum, duas da tarde, pois de noite o autor iria à Opéra-Comique assistir Harriet. De qualquer forma, na platéia desse concerto estava Franz Liszt – então com 19 anos e engatinhando na composição orquestral – que, conforme Berlioz escreve em suas Mémoires, ficou muito impressionado.
Para finalizar, um trecho da Sinfonia Fantástica sob a batuta de Bernstein:
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Parabéns por mais um ótimo artigo! Se me permite só uma pequena correção, que provavelmente foi erro de digitação, em 1830 Liszt contava com 19 anos, e não 29. Abraço! T.
Sim, Ticiano, obrigado pelo aviso, já foi corrigido, abraço!
Ótimo artigo. Preciso admitir que essas mudanças de ânimo na Sinfonia Fantástica me irritam às vezes, parecem ser excessivas, repetitivas. É como se houvesse uma grande expectativa seguida de um silêncio desanimador. Mas isto é só uma pequena observação minha: a sinfonia, que é praticamente a única obra que conheço de Berlioz, faz jus ao nome em todos os sentidos. Até agora, a minha versão favorita é a de Abbado.
Não cheguei a ler o programa completo, mas é incrível, nos primeiros minutos já dá pra ter uma ideia do que é o narrador musical alucinado por causa do ópio, por exemplo.
Abraços
PS: o player não fucionou aqui, deu “File not found”.
André, tente de novo, às vezes o servidor engasga e aparecem esses “File not found”.
Esses problemas técnicos estão constrangendo com uma certa frequência. Mas, em breve, teremos novidades nessa área.
Randau, fantástico artigo para uma fabulosa sinfonia (ou seria o contrário?). Aguardo ansiosamente a parte II.
O que existe em comum entre a música de programa, romantismo,”Symphonie Fantastique”, idée fixe ou monomania, Berlioz e Richard Strauss? Tudo… Não obstante, certamente, a contemporaneidade não cabe no âmago desse Tudo…
André,
Um dos poderes do enredo de músicas programáticas, para o bem ou para o mal, parece ser o de conferir à música uma qualidade bem peculiar, que é a: pertinência. Um tema na música pode surgir e parecer injustificavelmente nostálgico e brega para o ouvinte, mas se de repente ele descobre que esse tema é o retrato convincente de uma cena ou personagem idílica e inocente, prestes a sofrer o embate com outros cenários que musicalmente são justamente aquilo com que ele já conseguia se identificar mais adiante, então tudo se torna como que automaticamente justificável. No caso da Sinfonia Fantástica, lembro que o seu programa retrata uma estória realmente atribulada, cheia de digressões emocionais e alucinações mesmo. Então talvez conhecer o programa e aceitar esse, como dizemos sempre, “‘pacto ficcional” te ajude a gostar mais da obra.
Randauzito,
O post trata de algo fascinante que acontece especialmente a partir da música romântica, que é a pretensão da música falar de coisas elevadas e se impor seriamente como um tipo de discurso especial para isso. No caso da Fantástica o que me chama a atenção é a música como método de libertar o espírito do autor de uma amarra psicológica/patológica: capturando o seu estado interior, Berlioz usou o seu poder criativo pra redimir a sua obsessão pessoal por meio da arte! Isso se insere como um ótimo exemplo daquele tema que vez ou outra tenta ser abordado até mesmo no cinema, como tentei identificar em um último post, que é o da redenção por meio da arte, especificamente por meio da música. Tema muito quente e que aqui ainda se valeu pra abrir uma longa reflexão sobre a música e o artista romântico.
Que venha mais!
Fernando, ao ler seu post – que é fantástico – lembrei deste célebre capítulo das memórias póstumas de brás cubas:
“A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa. Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira.
Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório, – ou “uma abóbora” como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi o “abóbora” de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tomando à idéia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos; a idéia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, – fórmula Suetônio.
Era fixa a minha idéia, fixa como… Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela idéia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo-feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã… Não, a comparação não presta.”
Hector Berlioz (1803-1869) – Le Carnaval Romain Overture, Op. 9 e Symphonie Fantastique for Orchestra, H.48, Op. 14. É o Album que tenho em mão, Executado pela Orquestra Sinfônica de Chicago e conduzido por Cláudio Abbado. Posso garantir que depois dessa aula (refiro-me ao texto/post do blog) tão Fantástica quanto a própria Sinfonia, um verdadeiro filme (trágico e romântico ao mesmo tempo) formou-se em minha mente, ao re-escutar a Obra após a atenta degustação literária generosamente oferecida pelos organizadores do Euterpe.
J.Farias-PE