19abr 2017
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Música como autobiografia: II. Liszt e o oratório Christus

Franz Liszt (1811-1886): de virtuosi endiabrado a carola

Enquanto escrevia meu post anterior sobre Berlioz, ocorreram-me outros exemplos de como determinados compositores – sobretudo românticos – usaram suas obras musicais para criar elaborados comentários autobiográficos. Não se tratou, para eles, de simplesmente pôr a vida em música, mas de criar uma imagem ideal de si mesmos, com todas as virtudes e defeitos que acreditavam ter, de modo a inventarem uma espécie de “ponto fixo” para suas identidades. Daí que alguns dos momentos mais inspirados, e até inovadores, da história da música podem ser vistos, em parte, como resultado da egolatria do homem do século XIX.

E aproveitando que este ano foi o bicentenário de Liszt, quero apresentar aqui uma de suas partituras mais pessoais, o oratório Christus. Assim como a maior parte da música religiosa desse período, essa obra não recebeu muita atenção posteriormente, e é um tanto raro vê-la executada na íntegra hoje em dia – e também conheço apenas três gravações. Há razões peculiares para esse esquecimento.

Mendelssohn (1809-1847): judeu, luterano e um tanto quanto brega

Em The Romantic Generation, Charles Rosen comenta que Felix Mendelssohn tem o ambíguo mérito de ter criado o kitsch religioso predominante no século XIX. Imitando Bach na forma e com competência, ele não conseguiu, entretanto, ter o mesmo sucesso na qualidade. Isso aconteceu devido à ausência do que o musicólogo chama de “verdadeiro drama da experiência religiosa em sua música”, de modo que Mendelssohn conseguiu apenas transmitir aquele senso devidamente superficial da emoção do texto religioso. Rosen aponta para o fato das composições sacras desse período serem desprovidas de força, substância; são, no máximo, pastiches que não defendem doutrinas ou dogmas – e bem, sejamos realistas, uma peça sacra digna desse nome precisa defender dogmas –, mas apenas ideais vagos de amor e piedade. Assim, Mendelssohn pautou o teor de um gênero musical do século XIX para o público burguês em franca expansão: sem representar nada de concreto e preciso, ainda assim transmitia a nostalgia e o conforto dos ritos religiosos cada vez mais desacreditados nas salas de concerto. Em suma, quase um caso de secularização musical.

É verdade que as missas de réquiem nesse período possuem valor, basta lembrar as de Berlioz e Verdi. Mas, dirá Rosen – e eu concordo –, é também significativo que isso seja possível por elas estarem ancoradas na representação da morte – o que traz consigo todo apelo à imaginação diante desse evento inconveniente da vida. O fim da existência e o mistério que o envolve não precisa de muita teologia para inspirar os compositores ou ganhar a simpatia de nós ouvintes. No século da dúvida religiosa, a música sacra jamais será afirmativa, porém mesmo quase agnóstica, e não surpreende que compositores com gênio e vitalidade terminem reprimidos, esboçando partituras entediantes. Para Rosen, nesse sentido, é exemplar o caso do oratório A Lenda de Santa Elizabeth, de Liszt. Não conheço essa peça com a mesma profundidade que o Christus, mas permito-me discordar do musicólogo neste ponto: se a música sacra de Liszt nos parece desprovida daquela autenticidade religiosa que lhe dá fôlego e sentido, isso se deve menos pelos recursos anacrônicos que utilizou, e mais ao fato de ser uma de suas partituras mais íntimas.

Christus não é um oratório comum, sobretudo se temos em mente os oratórios barrocos; de fato, pode ser visto como o anti-oratório por excelência. Exigindo recursos orquestrais imensos, a obra em quase nenhum momento pede demais dos executantes, e há trechos em que soa, pasmem, como uma obra para conjunto de câmara, lembrando L’Enfance du Christ, de Berlioz. Os três cantores solistas – uma soprano, um tenor e um baixo – não cantam ária alguma, e em vez de memoráveis números para o coro, números de simplicidade arcaica, como no quase à capella “Stabat mater speciosa”.

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/12/Liszt-Oratorio-Christus-03.-Part-I-Weihnachts-Oratorium-III.-Stabat-Master-speciosa-A.-Doráti-Hungarian-State-Orch.-Radio-and-TV-Ch.-1985.mp3|titles=Liszt – Oratorio ‘Christus’ – 03. Part I – Weihnachts Oratorium – III. Stabat Master speciosa (A. Doráti – Hungarian State Orch. & Radio and TV Ch. – 1985)]

Aliás, a proeminência da orquestra ao longo do oratório sugere que, não fosse o coro e breves intervenções dos cantores, se trata de uma seqüência de poemas sinfônicos de Liszt. Veja-se, por exemplo, a representação do milagre que ocorre durante uma tempestade no Lago de Genesaré:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/12/Liszt-Oratorio-Christus-09.-Part-II-Nach-Epiphania-IV.-Das-Wunder-A.-Doráti-Hungarian-State-Orch.-Radio-and-TV-Ch.-1985.mp3|titles=Liszt – Oratorio ‘Christus’ – 09. Part II – Nach Epiphania – IV. Das Wunder (A. Doráti – Hungarian State Orch. & Radio and TV Ch. – 1985)]

Ao longo das quase três horas de duração há uma continuidade narrativa episódica entre as três partes – Oratório de Natal, Depois da Epifania e Paixão e Ressurreição –, de modo que o oratório está mais próximo de uma seleção de momentos inspiradores sobre a vida de Jesus. Seguindo o padrão de seu tempo, Christus não seria sobre Cristo, mas sobre suas idéias. Porém, a centralidade dos eventos fantásticos, como a visita dos três reis magos, o milagre e a ressurreição, comparada com o contexto onde veio ao mundo é muito sugestiva quanto às intenções de Liszt.

Pode-se dizer que na música apenas vemos a ponta de um movimento maior. É possível acompanhar ao longo do século XIX uma nítida secularização dos ideais cristãos, onde a figura de Jesus é tomada cada vez mais desprovida do elemento transcendental. Devidamente humano e sem quaisquer qualidades sobrenaturais, Cristo é elaborado pela primeira vez conforme um exemplar revolucionário social, espécie de proto-socialista. Sobre isso, basta lembrar a popular Vida de Cristo de Ernest Renan, biografia do Jesus histórico de imenso sucesso, onde defende que ele era certamente um homem excepcional, mas não autor de milagres, porque isso não existe. Sintomática também a frustrada intenção de Wagner em compor uma ópera em cinco atos sobre a vida de Cristo nesses moldes em 1849.

Considerando sua circunstância, gostaria de sugerir que Christus é parte relevante da obra de Liszt por traduzir um sentimento muito pessoal, compondo quase um relato autobiográfico. Em Christus o retorno proposital às formas primitivas da música religiosa – como o canto gregoriano – não é,  pelo menos não somente, como vêem alguns críticos, uma busca de efeitos teatrais, mas sim uma tentativa do compositor de se aproximar daquilo que ele pensava como o cristianismo mais autêntico; no caso, mais transcendental e menos mundano que o considerado pela maioria dos artistas e intelectuais ao seu redor. Lembremos que é por essa época que Liszt se aproxima da Igreja católica, recusando, definitivamente, o ideal romântico secular ao ser ordenado abade, em 1865, uma investidura sem grandes exigências, pela qual passava a se dedicar à composição e execução de música litúrgica. Consolida-se assim a preferência pela contemplação religiosa que não dá espaço às grandiloqüências – e apenas o triunfante coro final “Resurrexit!” no Christus destoa disto.

O mais evidente exemplo de sua religiosidade está no intervalo em quinta ascendente, o intervalo mais presente no canto gregoriano, que funciona praticamente como o leitmotif da obra. A introdução mesma é uma longa fuga baseada na melodia gregoriana “Rorate coeli desuper”:

Canto gregoriano “Introitus: Rorate coeli desuper” (Liber Isaiae 45, 8):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/12/Introitus-Rorate-cli-desuper-Liber-Isaiae-45-8.mp3|titles=Introitus – Rorate coeli desuper (Liber Isaiae 45, 8)]

Abertura:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/12/Liszt-Oratorio-Christus-01.-Part-I-Weihnachts-Oratorium-I.-Einleitung-01-A.-Doráti-Hungarian-State-Orch.-Radio-and-TV-Ch.-1985.mp3|titles=Liszt – Oratorio ‘Christus’ – 01. Part I – Weihnachts Oratorium – I. Einleitung (01) (A. Doráti – Hungarian State Orch. & Radio and TV Ch. – 1985)]

E ainda lá pelo meio ouvimos das madeiras algo que remete à música folclórica húngara:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/12/Liszt-Oratorio-Christus-01.-Part-I-Weihnachts-Oratorium-I.-Einleitung-02-A.-Doráti-Hungarian-State-Orch.-Radio-and-TV-Ch.-1985.mp3|titles=Liszt – Oratorio ‘Christus’ – 01. Part I – Weihnachts Oratorium – I. Einleitung (02) (A. Doráti – Hungarian State Orch. & Radio and TV Ch. – 1985)]

Esse elemento se repete em outros momentos, como na marcha dos Três Reis Magos. Aparentemente, compositores românticos não viam problema em colocar traços nacionais até mesmo na música litúrgica, com a pátria material e a espiritual dividindo o mesmo espaço, como no Te Deum de Dvorák, para usar outro compositor. Com uma simplicidade surpreendente para quem já havia se dedicado às experimentações harmônicas, tudo em Christus existe para a orquestra e a representação que esta faz, resultando numa obra eclética desde seu princípio: é praticamente música religiosa wagneriana – e Alex Ross já reparou numa certa semelhança entre um trecho do oratório e Parsifal. A despeito de parecer resultado de um apressado demorou treze anos para ficar completa, de 1855 a 1868, e com as revisões e necessidades da partitura, somente em 1872 ocorreu a estréia completa da obra, em Weimar, sob a batuta de Hans Richter. Isso porque diversos pedaços já haviam sido representados – em especial, o “Oratório de Natal”, que um ano antes fora executada com, vejam vocês, a participação de Bruckner no órgão.

Não que não haja teatralidade no oratório, afinal, há “O Milagre”, já citado, é peça quase operística – Liszt não fazia muita distinção entre o propósito de sinfonia, ópera e oratório; tudo isso servia para contar uma história. Mas não convém exagerar, já que o clima da obra é essencialmente contemplativo, recusando a artificialidade da música sacra de seu tempo. Liszt tinha motivos de sobra para seu interesse em religião: foi na década de 1860 que ele passou pela traumática perda de dois filhos, retirando-se para um monastério próximo a Roma para levar a vida ascética, dividida entre Budapeste, Roma e Weimar.

Hugues-Félicité Robert de Lamennais (1782-1854)

Não que Liszt não tivesse sido interessado em religião antes, mais especialmente em catolicismo. Na juventude conheceu e foi influenciado pelo padre francês Felicité de Lamennais, a quem chegou a dedicar o primeiro livro do Album d’un voyager. Para esse personagem típico do século XIX, mistura de revolucionário conservador com católico romântico, a tradição ortodoxa deveria ser preservada da secularização – representada por tudo que se assemelhasse à filosofia do Iluminismo -, ao mesmo que a separação entre Igreja e Estado deveria ser plena. Foi sob a inspiração de Lamennais que Liszt chegou a escrever, em 1834, um ensaio intitulado “Sobre a música sacra do futuro” – e não há necessidade de ressaltar mais ainda a que esse título remete. Ali está esboçada a tese da “música religiosa humanista”, cujo propósito é reavivar a força da religião no mundo desencantado através da nova música.

Porém serão anos até chegar ao estilo de Christus, e é sugestivo que isso se dê pelo seu progressivo afastamento de Lamennais. Em 1832 o padre já sofrera a censura da Igreja na encíclica “Mirari vos” pelo seu envolvimento com grupos políticos perigosos e pelo seu ecletismo teológico. Com o passar dos anos Liszt também irá mudar de opinião quanto à relação entre arte e religião. Desconsiderando a opinião de Lamennais sobre o alcance da música sobre as massas, o compositor parte para um certo elitismo quando percebe que nem todo mundo estava preparado, e talvez nem pudesse estar, para a inovação estética que ele, homem de gênio, trazia. Liszt escolheu a arte em detrimento do humanitarismo, e assim Christus foi possível.

Não quero dizer aqui que isso explique definitivamente uma obra de Liszt, muito menos sua última fase. Este é apenas um aspecto de sua vida que ajudou a definir sua escolha estética. Não diria que seu oratório voltará às sala de concerto, mas nunca se sabe, afinal as oscilações do gosto são imprevisíveis. De todo modo, Christus não merece o rótulo de datado por ter participado do movimento kitsch da música sacra, ou pelo menos não somente isso, porém merece, certamente, nossa audição ao dizer tanto sobre um dos compositores que criou a música moderna.

Este post pertence à série:
1. Música como autobiografia: I. Berlioz e a idée fixe
2. Música como autobiografia: II. Liszt e o oratório Christus

Este post tem 6 comentários.

6 respostas para “Música como autobiografia: II. Liszt e o oratório Christus

  1. Ótimo tema. O espírito religioso no século do romantismo. Nietzsche detestou a inclinação de Wagner para o cristianismo em Parsifal, mas seguindo o caminho de Fernando Randau, a música religiosa de Wagner é música autobiográfica. Apesar do carácter do compositor ser discutível, há algo de muito sincero no arrependimento da personagem Kundry. Devo concordar também sobre a música caricata de Mendelssohn, apesar da qualidade ser muito superior àquela que Rosen acredita. Não podemos esquecer também do grande Réquiem de Berlioz, e não estou certo da religiosidade de Berlioz. O Requiem Alemão de Brahms não cita Cristo, e acho que Brahms era agnóstico. Já Mahler nunca escreveu uma peça religiosa, mas era um grande místico e crente em Deus (não da forma convencional, claro), tanto que suas sinfonias são impregnadas de espírito religioso. No século XX, a música religiosa não é significativa. Mas temos ótimos de grande fé. Praticamente toda música de Messiaen. Sendo a ópera “Saint Francois d’Assise” um daqueles “converte-ateu”. Lembro também de Penderecki, claro, que é católico fervoroso. E por isso, talvez, sua música religiosa seja tão marcante. “Moses und Aron” de Schoenberg pode ser vista como a guerra da religião contra o primitivismo e a baderna. A Glória de Poulenc é outra recordação muito cara a mim.

    Valeu!

  2. Bem lembrados esses outros compositores de música religiosa depois de Berlioz pelo Bosco.

    Lembro também que o Charles Rosen parece especialmente sensível ao declínio da prática real da música religiosa a partir do século XVIII. A opinião dele sobre as lindíssimas missas de Haydn, por exemplo, é parecida: seriam composições comprometidas por um gênero musical datado no seu sentido litúrgico.

  3. Para mim, este oratório se constitui em um dos pontos culminantes de toda a música ocidental.
    Uma absoluta, estupenda e negligenciada obra-prima de todos os tempos.

  4. Parabenizo o Fernando pelo admirável trabalho. Infelizmente, não compartilho com ele e com Beto o enorme entusiasmo por Santa Elisabete e o Christus, por mais que o último tenha vários méritos. Toda a música de Liszt eu considero desigual, com pontos altos e inevitáveis vulgaridades. No século XIX ,a música religiosa mudou muito. Sente-se falta da sinceridade fervorosa das missas de Haydn, Schubert e Mozart, sem falar na Missa Solemnis de Beethoven ,já dos “Oitocentos”,claro, que é um portento elevadíssimo, injustamente ofuscada pela Nona, esta sim uma grande rapsódia.
    O século XVIII já era anticlerical e iluminista , mas a grande laicização da música vem no período napoleônico. Antes do Réquiem de Faure´onde se ouvem os anjos a bater as asas, a música religiosa da França após o Réquiem de Berlioz soa toda falsa, profana. Também a ópera francesa romântica é mais superficial que a italiana e não guarda a personalidade e o encantamento do barroco Rameau.
    Liszt e Wagner faziam parte de uma nova “seita” que considerava Mendelssohn brega por este representar a “esgotada forma sonata”. Entretanto, em termos de oratórios, sinto no Elias ainda ecos da esplêndida Criação de Haydn, além de uma autenticidade religiosa que pouco importa ser luterana ou judaica.
    Também não penso que signifique muito a “piedade” social do autor. O agnóstico Brahms podia ter uma religiosidade deísta que o fez produzir um excelso e bachiano Requiem Alemão, enquanto o católico Cesar Franck ,cuja sonata para violino é celestial, apresenta-nos “Les Beatitudes”,trabalho muito profano, como a missa de Gounod e o Requiem de S-Saens.
    Além dos já citados, poderíamos lembrar, em termos de séc XIX e XX, os Requiems de Cherubini, Schumann, Dvorák ,Reicha, Bruckner, Verdi, Durufle, Wetz, Hindemith, Silvéstrov, Schnittke…As missas de Bruckner, Liszt, Rossini,Martinu, Janacek, o Stabat de Dvorák, salmos de Mendelssohn, o majestoso Te Deum de Bruckner, a Passion de C.Loewe, os afetados 3 oratórios de Elgar e mais alguns que ora não lembro.
    Recomendo “Das Buch mit Sieben Siegeln”, ou Livro com sete selos, de Franz Schmidt(1874-1939, não confundir com o francês Florent), um oratório com sinceridade espiritual e com um “Aleluia” originalíssimo, de arrepiar e tirar o fôlego.
    Finalmente ,dois oratórios de Taneyev :A Cantata São João Damasceno e “Após a Leitura de um Salmo”.

  5. Fernando,
    Interessante também analisar a nossa expectativa por um “Oratório”. O gênero é arcaico e os textos religiosos tornam-se também cada vez mais arcaicos. Os oratórios de Handel já eram concebidos para concerto e não para liturgia, como seriam também as missas do classicismo em diante. Em Handel, temos quase óperas sem palco e com argumento religioso. Musicalmente, porém, quem conhece os 23 oratórios de Handel não os esquece, como seriam inesquecíveis as 225 Cantatas de Bach, de ciclópica riqueza musical apesar da pobreza dos textos. Um século após Handel, imagino os compositores no dilema entre fugir do modelo handeliano, cujo estupor seria difícil repetir, ou tentar seguir aquele paradigma, como fizeram Haydn ,Mendelssohn e até Elgar em pleno séc XX.
    Já Liszt, que revolucionava a pianística e o sinfonismo, não haveria de ser conservador no gênero oratório. O seu Cristo recusa a unidade clássica e talvez seja a multifacetada descontinuidade que agrada mais aos românticos e menos tradicionais. Acho que devemos enfocar o Cristo de modo diferente de como sorvemos os oratórios”ortodoxos”. Em relação às missas também poderíamos perguntar o que esperamos delas. Alguém deve dizer que a Glagolítica de Janacek é uma obra poderosa mas não tem jeito de missa. Estamos muito aderentes ao (alto) padrão da escola austríaca com as magníficas missas de Haydn e Schubert.
    A secularização do século XIX é outra questão, é o Zeitgeist, porém também contribui para deixar os oratórios na contramão. A sinceridade religiosa do século XVIII era outra. As missas não tem problema de texto, pois este é sempre o mesmo. Entretanto, as missas posteriores a Beethoven, de Liszt, Gounod, Rossini trazem uma música mais secularizada,talvez por conta de séculos que cultivaram a música religiosa fora das igrejas. Então temos novamente um fenômeno psicossocial da expectativa do público, ou seja ,o que procuramos em música “religiosa”ou em missas de concerto e quais os estereótipos que estão em nossa memória crítica.
    Uma das missas mais “sacras” do séc. XIX talvez seja a segunda de Bruckner, em mi menor, com orquestra de metais. E aqui ,sim, o catolicismo ingênuo do mestre de Linz deve ter influído em seu austero fervor. Não podemos ´jamais negar ao agnóstico Verdi boa dose de profunda religiosidade em seu Requiem. Ainda que alguém o chamasse de “Missa de sétimo dia da Traviata”, é uma obra-prima do Verdi maduro, longe da operística superficialidade do Stabat de Rossini.

  6. ARCAISMO e AMPLITUDE: Caro Fernando: desculpa a insistência: estou a ouvir “Gilgamesh” de Martinu, classificado como oratório.
    Eu sou fissurado em oratórios, pq gosto de música vocal dramática, mais de coros do que de árias. Não preciso dizer que ,dentre as 40 óperas de Handel e os 23 oratórios, adoro todos, com primazia para os últimos.
    Mas, sobre Christus de Liszt, pensávamos em oratórios e religiosidade, a qual me parece tênue no lúbrico húngaro, “programático” cosmopolita, que tomou batina depois de velho. Respeito seu affair com a Princesa Sayn-Wittgenstein, latifundiária e charuteira…. Respeito o altruísmo de Liszt com outros autores… Deixa para lá…
    Porém, só um pouquinho, o que é “oratório”? Paixões de H.Schuetz e Carissimi?
    Com Handel, ou até antes, começaram os oratórios profanos. L Allegro ,il Penseroso ,il Moderato , Acis e Galatea, Herakles, Alexander Feast.. são handelianos “oratórios”. A meio caminho da ópera ,figura a nobre Sêmele. Por vezes as divindades são gregas. E daí?
    A coisa fugiu da religião para significar drama sem palco.
    “As Estações” de Haydn não tem libreto religioso. E o que diríamos dos 3 “oratórios” de Schumann: Peregrinação da Rosa, Paraíso e a Peri, Cenas de Fausto?
    Depois,tivemos “Music Makers” de Elgar, Ivan o Terrível de Prokófiev, vários outros “seculares”. Não há para isso tudo outra qualificação senão “oratório”, nem mesmo diriam “Cantata Profana”….
    Há outros exemplos que não lembro. Em geral, é música boa. Por vezes ,o rótulo oratório nos demanda sacralidade por causa de um condicionamento histórico, oriundo das Paixões ,do Messias, Saul, Jephta, Athalia, Teodora, Esther.,etc….. A Criação,Sete Palavras, Tobias, Lazarus, Elias, Paulus, Christus e outros.
    Entretanto, ouso dizer que o gênero oratório ultrapassou a riqueza da ópera, porquanto esta é sempre o teatro musicado, ao passo que o oratório , livre da cenografia, seguiu voos ambíguos e fabulosos. Aqui entraríamos mais fundo na questão de música semi-programática versus semi-absoluta, ou seja, no abismo dionisíaco entre o profano e o divino.

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