Uma das práticas mais incentivadas por Martinho Lutero (1483-1546) na Reforma Protestante foi a criação (ou tradução e adaptação) de melodias corais para os cultos luteranos. Lutero era músico e fã de Josquin Desprez, e ele mesmo criou alguns corais que são cantados até hoje nos cultos mundo afora.
Mas quando a melodia precisa ser acompanhada por um instrumento, como o órgão, ou cantada por um coro a quatro vozes, só a melodia não é suficiente: é necessário adicionar um acompanhamento (acordes) à melodia, num processo conhecido como “harmonização de coral”. Isto ficava a cargo dos músicos executantes ou do kapellmeister do local, e era algo comum e trivial na Alemanha da era barroca. Dentre os compositores que se destacaram nesse ofício está o nosso velho conhecido Johann Sebastian Bach: veja o que ele fez, por exemplo, com a bela melodia An Wasserflüssen Babylon do organista Wolfgang Dachstein (1487-1553) – ouça primeiro a melodia coral, depois a harmonização de Bach, BWV 267 (apenas as frases iniciais de ambas):
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/AmWasserflussen.mp3|titles=Dachstein: An Wasserflüssen Babylon – Bach BWV 267 (Nordic Chamber Choir – Nicol Matt)]No catálogo de obras de Bach (Bach-Werke-Verzeichnis em alemão, também conhecido por BWV), as obras numeradas de 250 a 438 são todas corais harmonizados a 4 vozes. A esse montante acrescente mais os corais presentes em cantatas, oratórios e paixões, e você terá uma imensa coleção de harmonizações diferentes, às vezes até para a mesma melodia coral. Ouça a frase inicial de Ach Gott, vom Himmel sieh’ darein, melodia de Martinho Lutero, e depois repare como são diferentes as harmonizações dos corais que encerram as cantatas Ach Gott, vom Himmel sieh darein BWV 2 e Du sollt Gott, deinen Herren, lieben BWV 77 de Bach:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/AchGottvomHimmel.mp3|titles=Lutero: Ach Gott, vom Himmel sieh darein – Bach BWV 2 (6) e BWV 77 (6) (Holland Boys Choir – Pieter Jan Leusink)]Vale a pena observar que, entre a época de criação das melodias corais (século XVI) e a época de Bach (século XVIII) muita coisa mudou na harmonia e teoria musical, o que gerou alguns conflitos interessantes. Por exemplo, para corais de arrependimento e penitência Lutero preferia o modo frígio, mas durante o barroco a música modal já havia cedido espaço para a música tonal (maior e menor). E aí vemos Bach dando tratos à imaginação para harmonizar o exemplo anterior, Ach Gott, vom Himmel sieh’ darein, que é em modo frígio assim como Aus tiefer Not schrei ich zu dir, harmonizado na cantata de mesmo nome BWV 38:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/AusTieferNot.mp3|titles=Lutero: Aus tiefer Not schrei ich zu dir – Bach BWV 38 (6) (Holland Boys Choir – Pieter Jan Leusink)]Na época de Lutero não havia a “exigência” de que a música começasse e terminasse no mesmo tom (aliás, ainda nem existia o “conceito” de tonalidade). É por isso que Christ lag in Todes Banden de Lutero inicia claramente em Si menor e termina em Mi menor, mas isso é algo com que Bach jamais poderia concordar. Assim, na sua cantata Christ lag in Todes Banden BWV 4, ele dá uma forçadinha e inicia o coral em Mi menor mesmo:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/ChristLag.mp3|titles=Lutero: Christ lag in Todes Banden – Bach BWV 4 (8) (Holland Boys Choir – Pieter Jan Leusink)]Porém o “Prêmio Schoenberg de Modernosidade” vai mesmo para Johann Rudolf Ahle (1625-1673), que ousou iniciar seu coral Es ist genug com uma escala de tons inteiros. Só Bach mesmo para tirar isto de letra, lá no final da cantata O Ewigkeit, du Donnerwort II BWV 60:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/EsIstGenug.mp3|titles=Ahle: Es ist genug – Bach BWV 60 (5) (Holland Boys Choir – Pieter Jan Leusink)]Vencido o problema da harmonização, em muitos casos Bach também escrevia um acompanhamento mais elaborado para emoldurar todo o coral. O exemplo mais famoso desse procedimento é a melodia conhecida por “Jesus Alegria dos Homens”, que enriquece a melodia coral Werde munter, mein Gemüte de Johann Schop (1590-1667) no final da cantata Herz und Mund und Tat und Leben BWV 147. O mesmo coral também foi utilizado no final da cantata Ich armer Mensch, ich Sündenknecht BWV 55 e no meio da Paixão segundo São Mateus BWV 244 (o nº 40, Bin ich gleich von dir gewichen) com diferentes harmonizações:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/WerdeMunter.mp3|titles=Schop: Werde munter, mein Gemüte – Bach BWV 147 (10), BWV 55 (5) e BWV 244 (40) (Holland Boys Choir / Leusink – Monteverdi Choir / Gardiner)]Mas Bach não se restringia apenas às harmonizações: as melodias corais também eram usadas como base para criação de obras musicais mais complexas, como fantasias, variações, partitas, motetos e cantatas. Veja o caso do coral natalino de Lutero, Vom Himmel hoch, da komm’ ich her: Bach o tomou emprestado em três números do Oratório de Natal BWV 248 (ouça aqui o início do nº9), mas a melodia também originou vários prelúdios para órgão, como o Prelúdio em Dó Maior BWV 700, além das Variações Canônicas BWV 769:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/VomHimmelHoch.mp3|titles=Lutero: Vom Himmel hoch, da komm’ ich her – Bach BWV 248 (9), BWV 700 e BWV 769 (King’s College Choir / ASMF / Ledger – Hans Fagius)]Uma melodia coral também podia originar vários movimentos de uma cantata. A cantata Ein feste Burg ist unser Gott BWV 80 tem quatro dos seus oito movimentos baseados no famoso coral de Lutero: além da harmonização tradicional ao final da cantata, ele emoldurou o coral com um acompanhamento também baseado na melodia (nº5) e criou um adorável dueto onde a soprano entoa uma versão floreada do hino. Mas o gênio de Bach aparece mesmo no movimento inicial, uma grande fantasia coral sobre a famosa melodia:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/EinfesteBurg.mp3|titles=Lutero: Ein feste Burg ist unser Gott – Bach BWV 80 (movs 8, 5, 2 e 1) (Holland Boys Choir – Netherlands Bach Collegium – Pieter Jan Leusink)]Para finalizar, a pérola das pérolas: o coro inicial da Paixão segundo São Mateus BWV 244, Kommt, ihr Töchter, escrito para dois coros e duas orquestras. Não, ele não é baseado em nenhuma melodia coral, porém no decorrer do movimento surge um terceiro coro cantando O Lamm Gottes, unschuldig de Nikolaus Decius (1485-1541). Ouça primeiro somente a melodia coral completa, acompanhada da harmonização de Bach BWV 401:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/OLammGottes.mp3|titles=Bach: O Lamm Gottes, unschuldig BWV 401 (Nordic Chamber Choir – Nicol Matt)]As sete frases da melodia coral estão espalhadas no meio do coro; aqui está uma montagem só com elas:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/KommtIhtToechter.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus BWV 244 – Montagem sobre 1. Kommt, ihr Töchter (Monteverdi Choir – The English Baroque Soloists – John Eliot Gardiner)]Agora veja se você consegue localizá-las no meio dessa maravilha…
[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=6As1Pvz-mHs” maxwidth=”600″]PS.: Interessou-se pela Paixão segundo São Mateus? Clique aqui e mergulhe de cabeça nessa obra!
Aos desavisados, esse último player ficou muito legal: dá pra entender direitinho as dimensões dessa estratégia de Bach de dividir o coral com mais música (o que o Amancio chamou de “emoldurar” o coral no primeiro exemplo) de modo que ele acaba servindo como intervenções à música, mas sem perder nada da sua continuidade original. Quando é feita essa montagem do player, juntando todo o coral que estava espalhado, a melodia completa aparece intacta, mas nem por isso ela havia perdido o sentido ou mesmo a coesão quando já estava espalhada na música. Recomendo que se acompanhe esse coral acompanhando também a letra, aí fica bem claro. E a Paixão é mesmo pra matar a pau.
As melodias de Lutero e as harmonizações de Bach são mesmo belíssimas, é o mínimo a se esperar de um gênio como Bach :)
principalmente esta: Ein feste Burg ist unser Gott – acho que é bem famosa hoje em dia, é mesmo muito linda.
Já cantei alguns desses corais luteranos, e sempre gostei muito, não só de os ouvir, como de participar de sua execução: são tão bem escritos que tudo parece natural e necessário, embora nada seja óbvio.
Algumas partituras podem ser baixadas aqui:
http://www2.cpdl.org/wiki/index.php/185_Bach_Chorales_%28Johann_Sebastian_Bach%29
Legal, Pádua!
Uma das fontes que eu usei no artigo é esta aqui: http://www.jsbchorales.net/grp.shtml . Também tem algumas partituras, não sei se tem todos os corais, mas o mais importante para mim foi a disposição dos corais: eles estão agrupados pela melodia coral (root melody, segundo a autora do site).
Olá, Amancio. Acho que não são todos, pois um dos que cantei não está lá. Também noto que as partituras do sítio que você consultou não trazem a letra.
Gente muito bom esse blog. Tava precisando de informações sobe o Lutero para embasar o meu artigo e consegui aqui. Gostei.
Pra fazer um trocadilho: “Es ist genug” é demais! Mas acho que Ahle usou aqui o modo lídio, antes de uma escala de tons inteiros. Seja como for, até o Alban Berg gostava demais do coral, pois aproveitou tanto a melodia quanto a harmonização bachiana no final do seu Concerto pra Violino de 1935 (“Em Memória de uma Anjo”). Abs.
É isso mesmo F.S.! Esse negócio de “tons inteiros” já é coisa do final do romantismo, com o impressionismo e o modernismo; eu só usei o termo porque a quarta nota soa “inesperadamente” fora de lugar (e te faz lembrar exatamente da música dos Bergs e Bartóks).
O terceiro movimento do Quarteto Op.132 de Beethoven também é em modo lídio, mas vc não tem nenhuma surpresa com quartas aumentadas como na melodia de Ahle: http://www.youtube.com/watch?v=YrZBG2wfg5o
(o vídeo continua aqui: http://www.youtube.com/watch?v=gsHMH7Fmv98 )
Então,
Super bacana o post.O blog na verdade é muito bacana. E o mais bacana ainda são os comentários que acabam por complementar todo o assunto proposto. Tenho acompanhado o blog já tem algum tempo e, mesmo adotando a intenção de só ler e reler e ouvir e ouvir de novo rsrs, confesso que fiquei um tanto tonta com tanta informação a cerca desse assunto rsrs, mas acho que agora deu para entender um pouco do que estava por trás da mágica de quando era pequena no banco da igreja ouvindo o coral, tentando ficar em pé para ver o que afinal eles estavam cantando e como faziam aquilo ficar tão singular. Continuo sem entender o alemão, só o pomerano…triste eu sei. Mas um dia eu chego lá. Sucesso e parabéns ao blog. Tem um nível e uma abordagem muito bacana. Bjin a todos.
LEGAL! MEU! Essas “coisas” de música me deixam com coração “derretido”. Conheço pouco de música, preciso aprender mais. Desculpe-me, se usou os modos do jônio ao lócrio não me interessa, o importante é que a música tocada ou cantada mexe com o sentimento humano. Por isso foi muito bom. Por favor continue com esse projeto, é muito bacana. Trabalho algum tempo com coral de igreja, e gostaria se fosse possível, mandasse em meu email algumas dessas músicas coral mas traduzidas para o português. Que DEUS possa abençoar-lhes muitissimamente.
Acabei de ter o primeiro contato com o Blog e estou muito entusiasmado com o que tenho lido e ouvido até aqui!
Parabéns aos autores!
Fico feliz com iniciativas dessa qualidade e crítica.
Honra a vós outros!
Edu
Muito bom! Cabe acrescentar aqui o choral Nun Danket Alle Gott (no. 3) da cantata Gott der Herr ist Sonn und Schild (BWV 79). Bach faz uma emolduração realmente incrível! Gosto muito dele!
Olá Matheus! Não lembrava dessa cantata; fui na estante e peguei o CD para ouvi-la… mas ainda não consegui sair da primeira cantata do CD, a Wachet auf ruft uns die Stimme BWV.140. Bach, realmente, é insuperável!
PS.: Cheguei na BWV.79. Bach, realmente, é insuperável!
“Nem todos os músicos acreditam em Deus, mas todos acreditam em Bach” (Mauricio Kagel)
Amancio, vc conhece/já leu este livro?
https://en.wikipedia.org/wiki/G%C3%B6del,_Escher,_Bach
Abs do fabio
Fábio, ainda não li, mas está na minha lista de “próximas leituras” há anos. Um dia eu chego nele!
ótimo conteudo e ótimo site. Muito bom !!!