19abr 2017
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O Minueto de Don Giovanni

Afresco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro

Don Giovanni é aquele personagem que nós conhecemos por Don Juan, o galanteador, o conquistador de mulheres. Mozart escreveu uma ópera sobre ele – apesar de que, na ópera, ele só se dá mal…

Mas, enfim: no final do primeiro ato da ópera, Don Giovanni convida todos os personagens para uma grande festa em seu palácio, onde ele pretende secretamente seduzir algumas jovens, entre elas a camponesa Zerlina, noiva do também camponês Masetto. Então ele faz um sinal para a orquestra e os músicos começam a tocar um minueto:

Mozart: Don Giovanni K.527 – Minueto:

Em ritmo de 3/4, o minueto era considerado uma dança aristocrática, e aqui serve muito bem como pano de fundo para o núcleo nobre e pomposo da ópera.

A certo momento Don Giovanni troca duas palavras com seu criado Leporello e faz um sinal para outros dois músicos no palco, que começam a afinar seus instrumentos:

Mozart: Don Giovanni K.527 – Afinando:

Enquanto Leporello distrai Masetto, Don Giovanni tira Zerlina para dançar uma Contradança:

Mozart: Don Giovanni K.527 – Contradança:

Em ritmo binário 2/4, a contradança é originária de danças da Grã Bretanha e, na época de Mozart, era popular tanto entre a nobreza quanto entre o povo. Nada mais apropriado para um nobre, como Don Giovanni, dançando com uma camponesa, como Zerlina.

Para convencer Masetto a dançar, Leporello faz um sinal para outros dois músicos no palco, que também afinam seus instrumentos:

Mozart: Don Giovanni K.527 – Afinando:

Terminada a afinação, Leporello agarra Masetto e ambos dançam uma Dança Alemã:

Mozart: Don Giovanni K.527 – Dança Alemã:

De ritmo rápido (3/8), a Dança Alemã era típica das classes sociais mais baixas e exigia maior contato físico entre o casal – ou seja, é um prato cheio para os dois papéis cômicos da ópera.

Infelizmente a dança acaba no meio, pois Zerlina grita de algum cômodo do palácio: está sendo atacada por Don Giovanni. Puxa, acho que esqueci de comentar o mais importante: as três danças acontecem ao mesmo tempo (as afinações também):

Mozart: Don Giovanni K.527 – Minueto completo:

Para melhor compreensão, no extrato acima, coloquei o minueto ao centro, a contradança à direita e a dança alemã à esquerda: ouçam com as duas caixas de som do computador! Ou, quem preferir, pode conferir a cena em vídeo:

Polirritmia em Mozart? Pois é!


Este post tem 11 comentários.

11 respostas para “O Minueto de Don Giovanni”

  1. Três danças em ritmos diferentes acontecendo ao mesmo tempo, com a afinação dos instrumentos incluída… É o tipo de engenho que torna Mozart o operista mais genial que já existiu.

    E uma coisa engraçada é como os diretores resolvem essa cena estapafúrdia do Leporello mantendo o Masetto ocupado convencendo-o a dançar. Nesta montagem do vídeo ficou realmente patético, no pior sentido inclusive!

    A montagem regida pelo Haitink, bem vigorosa, retrata algo mais tenso: http://www.youtube.com/watch?v=dK-HHwVVAB0&t=2m40s.

    A do Muti é um pouco mais verossímil: http://www.youtube.com/watch?v=oeWCAzOyrqA&t=2m54s

    Na brilhante versão fílmica de Joseph Losey com regência do Maazel a ambivalência entre uma dança desajeitada e uma briga também funciona: http://www.youtube.com/watch?v=GMaD_2zEFa4&t=1h24m55s

    E na montagem maluca do Peter Mussbach, com regência do Dudamel, é claro que os dois simplesmente saem na porrada: http://www.youtube.com/watch?v=yHhiGaR6CSQ&t=2m47s

    Naquela montagem regida pelo Karajan o Masetto do Ferruccio Furlanetto é hilário, mas não encontrei essa cena no YouTube pra mostrar.

  2. Parabéns pelo texto e por selecionar algo tão valioso dentro de Don Giovanni para análise. Cada dança é realmente dirigida a um par de participantes e a uma classe social. Essa sintonia entre a música e a posição social dos personagens foi idealizada pelo próprio Mozart, que reorganizou o libreto de modo a permitir que Donna Anna dançasse com Don Ottavio, Don Giovanni com Zerlina e Masetto com Leporello, conforme o Prof. Michel Noiray (Sorbonne/CNRS). Já o notável Prof. Daniel Heartz (U. C. Berkeley) vai mais longe e estuda profundamente toda uma “iconografia das danças” na cena do salão de baile de Don Giovanni na sua obra “Mozart’s Operas” (U. C. Press, 1990), referência primordial no assunto. Mozart sempre teve uma ligação especial com as danças, que vem de família. Era uma paixão sua. Vestia-se de arlequim e ia para os bailes de Viena. Ainda criança, enviava cartas à irmã criticando as danças dos lugares para onde viajava. Seus pais não perdiam os bailes de carnaval e bailes de máscaras em geral de Salzburg. Mozart, aos 14 anos, notou que as danças “ao sul dos Alpes” eram “menos organizadas” do que em Viena, onde havia mais “ordem”, segundo o compositor. Essa idéia deve ter influenciado a estrutura mista de danças na passagem analisada por Amancio. Um século de história da dança se desdobra numa só cena de ópera: da mais antiga (minueto) à mais recente daquela época (dança alemã). Vale a pena observar que o abraço apertado típico da (considerada rude) dança alemã que Mozart aplica a Leporello e Masetto tem uma estratégica função dramática, pois este fica impossibilitado de ver o assédio de Don Giovanni sobre sua Zerlina – ou seja, tinha que ser exatamente essa dança em tal momento. É interessante extrairmos estes e tantos outros detalhes numa cena aparentemente tão simples como essa…

  3. Boa tarde :) Sou Mario Kraus, um fan de Mozart. Qué lindo! Hà muito tempo que queria escutar todas as danças de Don Giovanni ao mesmo tempo… Gostaria de linkar esta página no meu blog, é possível por favor?

    Obrigado e até logo

    Mario Kraus

  4. Além da incomparável cena com as três orquestras em polirritmia, a ópera Don Giovanni tem outros detalhes fantásticos. Um deles se encontra no famoso Finale do segundo ato: quando a festa começa, os músicos da corte de Don Giovanni tocam um verdadeiro medley, ou pot-pourri. Começa com um trecho da ópera “Una Cosa Rara”, de Martin y Soler, cujo sucesso em Viena teria ofuscado o próprio Mozart. Depois segue uma citação da ópera “Fra i Due Litiganti”, de Giuseppe Sarti. E finalmente vem a ária “Non più andrai”, das Bodas de Fígaro, ou seja,de Mozart mesmo. Ao escutá-la, Leporello comenta lacônico: “Questa poi la conosco pur troppo…” E o interessante de tudo isso é que provavelmente essa cena foi meio improvisada para a estreia em Praga, segundo acredita o musicólogo Thomas Forrest Kelly! Detalhes (em inglês) aqui:
    http://www.artsjournal.com/sandow/2006/06/don_giovanni_partly_improvised.html

    Ainda na mesma cena, Don Giovanni elogia seu vinho: “Eccelente marzimino!”. Com isso, quem sabe Mozart contribuiu para salvar um vinho do desaparecimento. Pois o tinto Marzemino del Trentino sobrevive até hoje na sua região autóctona, amparado pela canjinha que o compositor lhe proporcionou. E pra quem perguntar o que faz um vinho do norte da Itália numa ópera que se passa na Espanha, a resposta é fácil: o libretista Lorenzo da Ponte nasceu no Vêneto, nem tão longe assim do Trentino.

    E tem mais: Ainda hoje a palavra Leporello é usada em alemão pra designar um folheto desdobrável em zigue-zague. Ou seja, imortalizando o servo que faturava as beldades (na vertical) que seu patrão também faturava (na horizontal).

    “No Juízo Final, quando formos confrontados com todas as misérias, guerras, destruições e devastação ambiental que a humanidade causou, poderemos ainda argumentar em nossa defesa: mas tivemos Mozart!” (Stanley Kubrick)

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