19abr 2017
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Os véus da música

Antonio Corradini

Como falei no post anterior, ao contrário da carreira de outros compositores tais como Wagner e Schoenberg, que buscaram sedimentar escolas e sistemas, Debussy passou toda sua vida na busca e na experimentação de novas possibilidades musicais. Por isso é tão difícil caracterizar a música de Debussy, ela aponta para todos os lados: para a música negra americana, para a música oriental, para a música de Couperin e Rameau e, por que não?, para o futuro também.

O post anterior foi dedicado a dois pontos importantes na carreira de Debussy e, de modo maior, na música do século XX como um todo: à influência americana e ao fantasma wagneriano que rondava a música de seu tempo. Agora vamos nos dedicar a um outro aspecto, de igual ou maior importância em sua obra: sua busca por sonoridades novas e diferentes. A chave para entender esse aspecto de Debussy vai ser a análise detalhada de um dos seus prelúdios para piano, publicado no primeiro de seus dois livros: Voiles, “véus”.

A Escala

Gesto incial de Voiles

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debuçavoilesex1:

Esse é um som a que o ouvinte de Debussy está muito acostumado. Podemos até, de certo modo, dizer que esse é o seu som mais típico. Não é por menos, esse gesto inicial do prelúdio apresenta um dos procedimentos mais amados pelo compositor: a escala de tons inteiros. Seria difícil exagerar a importância dessa escala para a obra de Debussy — o número de obras em que ela aproxima pode ser contado em dúzias.

A escala de tons inteiros é uma criação musical que surge ao longo do século XIX. Ela se baseia na construção de uma escala que ignore os intervalos tradicionais que o ciclo de quintas gerava – intervalos esses que tanto a tonalidade comum quanto a modalidade, que estava em ascensão, sobretudo na música dos compositores eslavos, sempre utilizaram. As escalas normais, formadas pelo ciclo de quintas, se caracterizam por uma série irregular de intervalos, utilizando a mais famosa escala de dó:

escala1

Essa irregularidade tem um motivo acústico que não vem ao caso explicar aqui mais em detalhe. De qualquer forma, ela é encontrada em todos os modos tanto ocidentais quanto orientais.

Ao contrário de se valer de uma escala, por assim dizer, acústica, o compositor ao utilizar a escala de tons inteiros forja uma escala em que todos os intervalos são iguais, não obedecendo aos intervalos obtidos pelo ciclo de quintas. Em um exemplo:

escala2

Essa escala acaba apresentando diversas propriedades musicais completamente novas, todas as quais não podemos relatar aqui. A mais importante, contudo, está no fato de a escala não conter nenhum intervalo de quinta.

Ora, o intervalo de quinta é o mais importante de toda a tonalidade, pois ele é a base de todos os acordes e tonalidades que existem, é a consonância mais importante e central na história da música ocidental. A ausência desse intervalo implica na impossibilidade de se compor em uma tonalidade normal pela inexistência desse intervalo básico.

Por essa razão, a escala de tons inteiros tinha sido, até a época de Debussy, utilizada sobretudo na música russa e somente de maneira melódica, como um “tempero” musical para mostrar algo exótico ou diferente. Um dos exemplos do uso dessa escala se encontra no tema do sultão em Scheherazade, de Rimsky Korsakov.

Nesse prelúdio, contudo, Debussy utiliza a escala de uma maneira muito mais radical e faz dela o elemento central de toda a primeira parte da peça. Voltemos a ela:

debuçavoilesex2:

Essa abertura, embora não contenha tonalidade em nenhuma forma concebível, ainda apresenta um senso de direção harmônica, ainda que bastante tênue. Em primeiro lugar a frase inteira conclui de maneira bem decisiva no intervalo dó-mi, que é basicamente o intervalo do acorde de dó maior sem a quinta que a escala não possui; em segundo lugar, as duas primeiras frases terminam em um segundo intervalo que vai ter importância ao longo da peça, o intervalo de láb-dó.

Podemos imaginar que esse intervalo de terça maior (ou, invertido, sexta menor) seja uma maneira que Debussy escolheu para ter a sua dominante. A presença em diversos momentos centrais da peça nos permite ver isso.

O terceiro elemento “tonal” dessa obra é o pedal em si bemol que podemos ver surgir bem ao fim do exemplo, como ele é frequente e constante, podemos interpretá-lo como uma versão de “tom inteiro” da sensível da tonalidade moderna. Esse pedal está presente na obra inteira e é um elemento central de ligação entre as duas partes da obra.

Após dezesseis compassos em que esses gestos são de grande relevância estrutural, a música muda um pouco de figura, as terças descendentes agora passam a ascender (e com outra figura rítimica, agora baseadas em colcheias de dois pontos e fusas) e o ponto culminante deixa de ser o dó e passa a ser o ré. Talvez seja pouco para chamar “modulação”, mas é uma modificação do sistema em uso até então:

debuçavoilesex3:

Na seção seguinte, o destaque é a textura, o rápido movimento da música – seria o vento nos véus? –, mas de um ponto de vista “analítico” o mais importante é a culminância do ré e o pedal em si bemol, que dão uma fixidez “harmônica” para toda a série. Como estamos utilizando a escala de tons maiores, qualquer noção de função tonal é complexa, porém, a presença desses claros centros nos convida para reconhecê-los como uma forma ad hoc de centro tonal: o dó como o destino final e duas formações – láb e sib-ré no baixo e no soprano – funcionando como “dominantes”.

E logo a estrutura harmônica se revela com o baixo tocando dois acordes que, juntos, perfazem a escala inteira:

debuçavoilesex4:

Esse é o ponto culminante da seção e revela de maneira mais clara as particularidades da escala. Em primeiro ponto sua simetria torna as possibilidades de construção mais limitadas: Debussy tem basicamente dois acordes à escolha, o dó-mi-láb e o sib-ré-fá#, qualquer variação é somente uma inversão desses acordes.

Expondo assim podemos ver como Debussy explorou as relações sonoras para criar essa música: já estabelecemos que o dó é o “objetivo” dessa música, então, a partir dele a gente consegue ver como o láb surge como a falsa quinta e como sib e ré, por serem as notas mais próximas de dó, acabam funcionando como as “sensíveis” dessa peça, por isso a prioridade dada a elas na música.

Contudo, estas relações derivam apenas do interesse de Debussy de manter um centro tonal velado (e aí podemos interpretar de maneira mais clara o nome da peça), porque a escala de tons inteiros é uma escala perfeitamente atonal. Isto é, o fato de todos os intervalos serem iguais retira qualquer relação hierárquica entre os sons, não há um centro inerente a essa escala como a escala tonal possui.

Assim, o procedimento de Debussy deriva totalmente da escolha da escala de tons inteiros, essa criação do século XIX em suas mãos se torna um procedimento de revolução na música, mas um procedimento totalmente diverso do que a tradição germânica, de ampliação do cromatismo, vinha tentando. Debussy questiona a tonalidade ao criar uma “tonalidade” com um sistema diferente.

Voltando ao prelúdio, em outro momento, contudo, a música muda completamente de aspecto:

debuçavoilesex5:

Agora Debussy abandona a escala de tons inteiros e passa a utilizar a escala pentatônica, as notas pretas do piano. Se a escala de tons inteiros é uma criação recente, a pentatônica é utilizada desde tempos imemoriais, é uma escala encontrada na música folclórica do mundo inteiro e característica de músicas não-tonais.

Uma semelhança que a escala pentatônica apresenta com a escala de tons inteiros é a ausência do intervalo de semitom, isto é, a ausência da sensível, o que impede a definição tonal da mesma forma. A escala pentatônica também não permite a mobilidade harmônica da tonalidade normal: ela, como toda música não tonal, é estática do ponto de vista harmônico. Esta é uma preferida de vários compositores, seja como em Dvorak e outros compositores de cunho “folclórico” para dar um ar popular à música, seja como uma maneira de se afastar da tonalidade comum. Debussy, como é de se supor, utiliza-a de forma bastante ampla.

Assim, a introdução dessa escala marca uma quebra com aquilo que vinha antes, isto é, em um esquema formal é uma evidente “parte b”, mas ao mesmo tempo mantém essa característica marcadamente “anti-tonal” que caracteriza a peça inteira. A mudança de modo e de escala serve como a modulação que sempre ocorria em um ambiente semelhante nas peças musicais dos séculos anteriores, seja, como no classicismo, para a dominante, seja para tons mais distantes a partir de Beethoven, ela é o contraste que a volta dos tons inteiros vai propiciar.

Depois dessa intromissão pentatônica retorna a parte de tons inteiros, o esquema A-B-A, característico de peças breves assim, se completa. A peça termina com uma “cadência” ré-dó, que mostra como o dó funciona como o “objetivo” musical de toda a música:

Debussy – Preludes for Piano – 1er Livre – 02. Voiles. Modéré (A. Michelangeli – 1978) (mp3cut.net):

Este prelúdio é um exemplo muito claro das escolhas musicais de Debussy, de abandonar procedimentos tonais e criar a partir de novas e velhas escalas sonoridades e possibilidades musicais diferentes. Uma das conquistas de Debussy é a exploração de fenômenos harmônicos não funcionais, que vemos conspicuamente nesta peça, não há funções harmônicas reais, há apenas um centro tonal, muito frágil e criado pelo compositor, no dó.

Mas seria o nome da peça “véus” uma alusão à ocultação desse centro tonal em dó com toda a construção escalar que ele utiliza na peça? É uma hipótese possível, mas, como tudo em arte, passível de discussão. O que vocês acham?


Este post tem 2 comentários.

2 respostas para “Os véus da música”

  1. Debussy seguramente encontrou uma solução moderna para o problema da limitação que a música tradicional ou clássica estava sofrendo. O caminho foi bem diferente daquele que praticamente todos seguiam, que nas palavras de Debussy era uma doença chamada wagnerite. Mas não creio que essa procura tenha sido deliberada ou forçada, Debussy tinha uma especial relação com os sons (organicamente falando), por outro lado um ouvido atento à música de seus contemporâneos (ex: Stravinsky) ou predecessores (ex: Wagner). Mas um gênio como Debussy absorve tudo e transforma em música pessoal e inimitável. No entanto, é fácil perceber que Debussy tem 3 fases, a primeira com um certo traço melódico (Quarteto de cordas, Suite bergamasque ) até mais ou menos Pelleas, aí em diante Debussy está na ponta do modernismo (até mesmo de R. Strauss): a impressionista e radical La Mer, os obscuros Preludes (muito bem iluminado pelo texto do Bruno), os intrincáveis Etudes (para o executor e para o ouvinte),..Mas já no finzinho da vida (breve vida), Debussy parece retomar sua característica melódica inicial (as sonatas). É bom lembrar que Debussy não era um entusiasta da música de Schoenberg (será que pelo verniz wagneriano dessa música?), chegando a ficar preocupado com o entusiasmo de Stravinsky por Pierrot. Enfim, Debussy não seguia escolas e morreu sem fundar nenhuma (apesar da forte influência sobre quase todos os compositores do século XX).

  2. Como num retrato impressionista Clair de Lune consegue transformar seus acordes na mais encantadora pintura celestial jamais vista no Universo. Apenas fico pensando aqui quantas paixões foram seladas, declarações de amor e romances sepultados para sempre na fantasia desses acordes, emoção em cada nota inspirando os mais lindos poemas com a precisão dos diamantes sequer sonhados

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