19abr 2017
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Terceira Sinfonia de Mahler pela OSESP; ou, por que amamos Mahler?

No último domingo tive a oportunidade de assistir pela primeira vez ao vivo a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob a competente regência do maestro costa-riquenho Giancarlo Guerrero. Todos os colegas aqui do blog já tiveram a chance de ver o que até então eu só vira pela televisão e através de alguns CDs. Pouco tenho a dizer sobre a atuação da orquestra, a não ser que de fato é, sem dúvida, a melhor de nosso país, dando gosto finalmente poder ouvir um naipe de metais tão bom e cordas que demonstram uma unidade digna o bastante para tocar uma sinfonia de Bruckner, digamos. Se a orquestra iniciou aparentemente cansada, já no final do primeiro movimento estava em plena forma, e minhas únicas restrições ficam com a contralto francesa Nathalie Stutzmann (bonita voz, mas não me cativou) e o coro feminino e infantil.

Com a terceira de Mahler me parece que ocorre o que Carpeaux escreveu sobre a música do Götterdämmerung: barulhenta por fora, mas serena por dentro. Nessa sinfonia que tem cara de tudo, menos de uma sinfonia – uma cantata? Uma suíte? Uma missa pagã? –, como o próprio compositor reconhecia, os momentos mais sublimes são reservados em meio aos rompantes fortíssimos dos metais. Parece-me que as passagens em pianíssimo são as características mais marcantes dessa obra – como no toque da trompa fora do palco sustentado pelos violinos no terceiro movimento – e não as explosões militares e triunfais. Não é o barulho a grande conquista de Mahler aqui, mas apenas a alusão.

Essa foi a terceira vez em que fui a um concerto de Mahler nesse ano. Dois dias antes os cariocas puderam assistir a décima sinfonia completada por Cooke sob a batuta de Mathias Bamer com a OSB, e no final de setembro ainda houve a Titã com Mehta e a Filarmônica de Munique (quem não pôde ir nessa teve a oportunidade de ver o mesmo programa pela Sinfônica de Barra Mansa por um preço mais acessível: R$ 1). Inevitável se perguntar: por que tanto Mahler?

Bem mais que 15 minutos de fama

Mahler está em toda parte. Todo maestro que se pretenda sério rege Mahler – mesmo Norrington já gravou a Titã com instrumentos de época (?!) –; há diversas integrais das sinfonias para todos os gostos, personagens de novelas citam Mahler, Prince – sim, o cantor dos anos 80 – menciona Mahler numa música, Mahler aparece nos filmes de Woody Allen, Mahler é o compositor preferido de uma imensidão de melômanos e até mesmo uma extravagante porta de entrada para muitos, como Gilbert Kaplan que estudou regência apenas para executar a segunda sinfonia de Mahler. Tudo Mahler, Mahler, ah Mahler… Quando Mahler disse que seu tempo viria tenho dúvidas se ele achava que viria a ser centro das atenções desse tempo – o equivalente ao Zeitgeist. Enfim, “Mahler Lives, Mahler Grooves”.

Mahler tatuado no braço, harmonia que provoca arrepio

Por que tudo isso? Essa mahlermania não é recente, é claro. Deixo de lado aqui questões como as preferências dos diretores de orquestras, da conveniência dos programas sinfônicos ou de seu uso em trilhas sonoras várias, e mesmo nas peculiaridades das partituras de Mahler para me concentrar no que faz um ouvinte comum ser fascinado por Mahler, considerando sua música tão acessível quanto profunda.

Certa vez testemunhei um senhor perguntar para um adolescente a razão dele estar ali na sala de concerto para ouvir Mahler, ao que este respondeu: “porque ele é mó neurótico! (sic)”. É verdade que o espírito bipolar facilmente reconhecível nas sinfonias e lieder de nosso compositor favorecem sua apreciação por pessoas ávidas de sons neuróticos, mas isso não é o bastante.

Sei que o que direi já é praticamente clichê, porém é inescapável: por mais pura que se pretenda em cada sinfonia mahleriana somos apresentados a uma narrativa épica em forma de música com um teor metafísico imediatamente reconhecível – a segunda e a oitava são exemplares nesse sentido. Evidentemente, nem sempre a ansiedade encontra a redenção ao término – como na sexta. Mesmo na quinta e na sétima parece-me possível perceber uma trajetória latente de declínio, enfrentamento e ascensão.

No mundo de referências em que se sucedem marchas militares, canções populares da Belle Époque, folclore judaico, adágios introspectivos e finais triunfantes, percebo o quanto a música de Mahler ganha o status de busca por um senso de transcendência. Convertido sincero ao catolicismo, nosso compositor jamais fez uma exposição desorganizada de sua interioridade por meio das sinfonias. Pelo contrário: Mahler é um compositor cerebral, cujas bruscas alterações de dinâmica são calculadas e não se perdem no todo, não surpreendendo que por isso mesmo não tenha datado. Na sucessão de alta cultura e vulgaridade em uma mesma página, suas partituras oferecem um senso de plenitude que nos põem além do mundano.

Não quero dizer com isso que haja uma maneira certa de ouvir Mahler, nem que é errado sua música ganhar essa “função”. É de se destacar que esse é apenas mais um sintoma muito particular de como a fruição da arte foi cada vez mais sendo interiorizada no Ocidente. Ouve-se Mahler menos porque se deseja uma dimensão heróica, ou melhor dizendo, transcendente – um reencantamento do mundo, algo que Wagner igualmente procurou por meios imanentes e foi menos bem sucedido. É condição típica da modernidade essa consideração com a música e em posts futuros espero me estender mais a respeito.

Viral mahleriano nas ruas de Toronto

Este post tem 12 comentários.

12 respostas para “Terceira Sinfonia de Mahler pela OSESP; ou, por que amamos Mahler?”

  1. Me interessa bastante pensar em como uma música que (já na anedota atribuída ao próprio compositor) quer “conter o mundo” pode interessar ao ouvinte de hoje não pela busca por uma dimensão heróica, mas pela identificação com uma perspectiva interior, “psicológica” (de onde vêm as descrições de um Mahler esquizofrênico e “neurótico!”) diante desse mundo.

    O final do texto ficou mesmo convidativo: se é menos pela dimensão heróica que se ouve Mahler, então por que de fato?

  2. Mahler é maravilhoso, febril, imprevisível. Eu o ouço há muitos anos, cada vez com mais entusiasmo.Desde o tempo das novelas no rádio, que minha mãe ouvia.

  3. Não é à tôa que amamos tanto Mahler, suas obras são marcantes e sentidas à cada nota e acorde tocados.

  4. Eu estive lá! Mas no concerto de sexta, dois dias antes.

    =)

    Mas não gostei muito do solo do trombone, para mim faltou vigor, ele se manteve submisso à orquestra…

    A versão de Leonard Bernstein da terceira, pra mim, é modelo de insuperação. Talvez por isso não tenha gostado tanto da apresentação…

    O coro infantil estava muito mal preparado, cantavam baixinho, não ouvia nem os ”bim bam” direito!

  5. Pessoal do Euterpe,

    esse fim de semana assisti a uma apresentação da 4a sinfonia de Mahler pela Orquestra Sinfônica de Santo André e um detalhe me deixou curioso: a soprano, em vez de entrar logo no início ou no intervalo entre os atos, apareceu no palco num momento específico do terceiro movimento – aliás, o próprio maestro informou antes da apresentação que isso aconteceria e que, obviamente, não era para aplaudir!

    Segundo ele, a entrada dela era a representação de alguma coisa – esqueci mesmo.

    http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=IwFVNZE2Fak#t=105s (a soprano entrou mais ou menos em 2:10, no clímax do movimento).

    Fiquei, no entanto, intrigado, já que não achei nenhum vídeo no Youtube em que isso acontece nem nenhuma indicação em artigos sobre a sinfonia.

    Alguém poderia me dar uma luz? Afinal, essa entrada foi inventada por eles ou realmente remete a alguma referência de Mahler?

    De qualquer modo, tenho de admitir que, se for o primeiro caso, foi uma ideia muito feliz e, com certeza, um dos melhores momentos que já presenciei numa sala de concerto! A cantora caminhando lentamente e a música em seu ápice… que cena!

    Pode parecer estranho, inapropriado, mas nunca vou conseguir reproduzir com palavras esse momento.

    Esse foi o primeiro concerto até agora que me lembro de ver os músicos realmente emocionados, uns 4 ou 5 lacrimejando mesmo – isso na 2a apresentação da mesma obra (fui no domingo). Nunca vi uma música (lá) mexer tanto com as pessoas – digamos, ser tão catártica o quanto um filme ou um livro – sem palavras compreensíveis pra nós.

    Fui embora com a sensação que todo mundo saiu igualmente sem palavras e satisfeito.

    Mudando o conhecido aforisma nietzscheano: sem Mahler, a vida seria um erro.

    Abraços.

  6. Mahleriano, eu também nunca ouvi falar nada sobre a entrada da soprano na Quarta Sinfonia, e não creio que Mahler tenha deixado alguma instrução específica para isso. De qualquer forma, me pareceu uma idéia muito boa! Das Quartas que já assisti, em todas elas a soprano entrava no intervalo entre o terceiro e o quarto movimento – o que invariavelmente fazia a platéia aplaudi-la, porém quebrando o clima celestial formado pelo final do movimento lento.

    Alguns anos atrás o Quarteto Vermeer se apresentou na Sala São Paulo e tocou um dos quartetos de Beethoven mais emocionantes que eu conheço: o Op.132 em Lá menor. Já nas primeiras notas do Heiliger Dankgesang o violista começou a chorar, e ao final do 2º trio todos os quatro estavam vertendo lágrimas, chegando os soluços até a atrapalhar as notas de arcadas mais longas. Acho que ninguém da platéia se importou com isso, pois para onde quer que eu olhasse eu só via pessoas com lencinhos nos olhos, ou enxugando-os com as costas das mãos.

    http://www.youtube.com/watch?v=YrZBG2wfg5o

  7. Em minha opinião,Ludwig van Beethoven pode ser considerado,procedentemente,o maior compositor que este mundo já teve.E Gustav Mahler pode ser considerado o maior sinfonista que este mundo já teve.Sua obra,além de imensa em termos de extensão cronológica de apresentação,é de uma riqueza e de uma densidade de conteúdo verdadeiramente impressionantes,retratando a profundidade e a elevação de uma alma humana,permeada de chamamentos de Luz,questionamentos metafísicos e angústias,tão peculiares aos grandiosos Espíritos que vêm à Terra em desiderato missionário evolutivo relevante – algo que,por evolução consciencial,também a nós caberá.Em termos de peças sinfônicas já orquestradas,a obra de Mahler é algo monumental e admirável,realmente.No futuro,novas melodias,também gigantescas,assomar-se-ão nesta sociedade,por parte de quem,por merecimento evolutivo,haverá de trabalhá-las,em bem mais alto nível realizacional.Busquemos,sempre,os valores civilizatórios construtivos,rememorando-nos nossa inalterável condição de viajores da Evolução,filhos do Infinito e herdeiros da Eternidade.

  8. Nossa! Com tanta “ênfase Mahleriana” devo admitir que preciso ler mais sobre Mahler e ouvir mais Mahler. Gosto da “arrogância sinfônica” bruckneriana… E acho que estou me reconhecendo um “cult” (referência ao post – Estereótipos clássicos). Não devo ter a mínima ideia do que estou dizendo mais estou participando (risos). Enfim. Vou mesmo ler e ouvir mais Mahler.
    J.Farias-PE

  9. Caríssimo Leonardo,
    Sua pergunta é instigante.
    Mahler esteve reprimido por meio século. Há cem anos, não foi compreendido. Depois,o nazismo o silenciou. Apenas Amsterdam era um oásis. Esse silêncio fez que,ainda nos anos 60, gente mais velha sequer sabia que Mahler fosse um compositor austríaco. Na mesma década, Carpeaux, que conhecia tudo e todos, escreveria “As sinfonias de Mahler são desiguais e,numa sinfonia, são desiguais os movimentos”. Nos anos 70, eu era jovem e o conheci. Digamos que Mahler abriu minha cabeça. Mas o velho Herbert Caro, tradutor de T.Mann, me dizia de Porto Alegre “nao sou mahleriano como você” e escreveu o mesmo que Carpeaux. Nos anos 80, H.Caro voltou da Alemanha e me contou:Você foi profético. A Europa só fala em Mahler.
    Acho que o Gustav foi um nietzscheano que antevia o beco sem saída em que a humanidade entraria no sec XX. Ele almejava um “Uebermensch”,ao mesmo tempo em que sentia a pequenez e a perdição do Homem. Seus estupores heroicos me parecem mais uma “vontade de potência”, manobras diversionistas , como Tchaikovsky falou a Von Meck de afogar as tristezas na alegria pública….Mahler é angústia, pessimismo iluminado por uma fé cética, um vizinho de Freud a sentir o incoerente psiquismo e um humanista como Dostoiévski a bradar contra o niilismo e o materialismo.
    Por que o ouvinte atual se interessa por Mahler? Acho que por causa da atualidade de Mahler.
    Sempre fui fissuradíssimo em Mahler, Bruckner e R.Strauss.
    Alguém escreveu isso: “Mahler passou a vida à procura de Deus, sem encontrar. R.Strauss não se interessava por Deus. Bruckner O encontrou…”
    Realmente esses três gigantes da orquestra são muito diferentes. E talvez Mahler seja hoje o mais popular porque representa a dúvida.

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