Inspirado pelos posts do colega Toscano sobre a relação musical entre Mozart e outros compositores, chamo atenção agora para uma relação inusitada na história da música: de como na obra de Mozart podemos encontrar ecos de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), aquele que é, para o bem ou para o mal, possivelmente o pensador político mais influente do século XVIII.
Sim, porque Rousseau também foi compositor. Em verdade, ele se considerou primeiramente músico por um bom tempo, a julgar pelo que escreve nas Confissões, o que por sua vez não deixava de ser bem paradoxal: sua educação musical foi mínima e isso se evidencia fácil em suas partituras, todas muito amadoras. Daí que a influência de que estamos falando aqui não será musical, absolutamente, mas sim de teor literário e mesmo de uma visão de mundo comum, começando quando Mozart fez um remake operístico de Le Devin Du Village com Bastien und Bastienne e concluindo com a inspiração para As Bodas de Fígaro.
Mas primeiramente vejamos a opinião de Rousseau sobre música. Aparentemente os contemporâneos do autor do Contrato Social consideravam bastante sua opinião, afinal Diderot o convidou para escrever o verbete sobre música na famosa Enciclopédia dos Iluministas em 1765, dando fôlego para que dois anos depois o genebrino publicasse o Dictionaire de Musique. Nessa obra esquecida, que é menos dedicada à teoria musical e mais sobre a natureza da música como arte, é possível encontrar uma exposição do sistema de harmonia de Tartini e Rameau e até mesmo a sugestão de uma nova notação musical de sua autoria (?!).
Para Rousseau, tudo que é natural é bom e o artifício humano que nos afastar da condição original termina por perverter o homem – e quem já o leu percebe que isso é, basicamente, seu mote filosófico principal para tudo. Diante disso, ele irá considerar a melodia vocal como a única forma natural de música, imensamente superior sobre todas as formas instrumentais e contrapontísticas, úteis somente para efeitos. Ora, dizer isso naquela época era praticamente afirmar que a música francesa – Lully, Rameau, Marais – não tinha valor algum e que a música italiana era o futuro – Pergolesi seria um bom exemplo.
Espero em outro momento detalhar mais a polêmica em que nosso autor tomou parte contra Rameau – conhecida como a Querelle des Bouffons –, pois ela é extensa e muito interessante, mas cabe dizer agora que as idéias musicais de Rousseau tinham o propósito de ir justamente contra a tradição da música de Versalhes exemplificada no Traité de l’Harmonie de Rameau. Indo contra o formalismo barroco e em favor da simplicidade, Rousseau pretendia combater a idéia de que a melodia derivava da harmonia – ora, dirá ele, só os europeus utilizam esse recurso e só eles acham agradável –, e afirmava categoricamente que o contraponto era uma técnica de mau gosto, apenas barulho, ilusão de esplendor.
(Não será surpresa, portanto, perceber que em seu dicionário a palavra copiste merece mais de doze páginas, enquanto que termos como harmonie e contrepoint não chegam a dez. A definição de Fugue também é sintomática: “Les fugues, en general, rendent la Musique plus bruyante qu’agréable”).
Não surpreende, portanto, que a música que ele se propôs a compor não tenha muitos recursos, quase primitiva. Desde o Discours sur les sciences et les arts conhecemos a opinião nada favoravel de Rousseau sobre a arte, incapaz de se conciliar com a virtude ao forçar nossas paixões a se expressarem de “maneira afetada”. Contudo isso não o impediu de ele mesmo compor uma ópera em nada similar ao de seus contemporâneos: Le Devin du Village, estreada em Fontainebleau em 1752.
Aqui, a primeira ária de Le Devin:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/02/Jai-perdu-tout-mon-bonheur.mp3|titles=J’ai perdu tout mon bonheur]Inspirada por La Serva Padrona, Rousseau procurou com esse curto interlúdio contar uma ingênua história sobre um casal de pastores, Colin e Colette, que se vê separado quando o rapaz é seduzido por uma dama da cidade, mas através da intervenção mágica do sábio Colas, retorna. História simples da corrupção do homem do campo pela vida artificial das cidades, Colin ao final se despede dos esplendores dos palácios que não mais o impressionam.
Por essas ironias da vida, o rei Luís XV, que não era muito chegado em música, adorou a ópera. Diz-se que passava o dia cantando as árias e convidou Rousseau para uma audiência onde lhe entregaria uma pensão vitalícia para o compositor de tal obra de arte sublime. Nosso autor, muito convicto de seus ideais, recusou e preferiu o mesmo destino de seu personagem Colin.
Surpreende que tal ópera tenha feito tanto sucesso e mesmo arrancado um elogio de Gluck. Repetitiva, cheia de erros e desprovida de qualidade, Le Devin seria desconhecida para nós não fosse a fama de seu compositor. Apesar da visão romântica de mundo do libreto, diga-se que seu estilo musical é bastante tradicional, sem a agilidade das operetas buffas italianas que Rousseau adorava. É de se pensar se o seu apelo em favor da melodia se deu mais em função da música francesa estar pobre disso enquanto que a Itália estava abarrotada.
Porém, o que isso tudo tem a ver com Mozart? Bem, Bastien und Bastienne, uma ópera composta por Mozart com apenas doze anos em 1768 é uma espécie de paródia do libreto de Le Devin. Como todas as obras de sucesso no século XVIII, o texto de Rousseau recebeu diversas paródias, e já no ano seguinte de sua estréia, surgiu Le Amours de Bastien et Bastiene, de autoria de Favart e Guerville, contendo uma versão mais cínica e divertida da obra. O enredo é o mesmo, porém agora ao invés de falas pomposas permitidas nos bons palcos os camponeses usam o linguajar popular. Exemplar é a transformação da ária mais acima, em que “J’ai perdu tout mon bonheur; j’ai perdu mon serviteur; Colin me delaisse” se transforma em “J’ons pardu mon ami, depis c’tems-la j’nons point dormi, je n’vivons pus qu’a d’mi”.
Desse modo, Bastien e Bastiene perdem o sentimentalismo arcadiano, sendo até mais briguentos. Colas, por sua vez, ao invés de vender seus serviços mágicos para ajudar Bastiene pede um singelo “beijo” em troca do favor. Inevitavelmente surgiu uma tradução em alemão para ser apresentada em Viena e é com este texto bastante modificado que Mozart compõe uma ópera musicalmente muito superior à de Rousseau, diga-se, e mesmo mais divertida.
Aqui uma das mais famosas árias de Bastien und Bastienne:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/02/Diggi-Daggi.mp3|titles=Diggi, daggi, schurry, murry]Entretanto essa não é a única conexão entre ambos. Em outro momento de sua vida Mozart terá oportunidade de lidar com “herdeiros“ rousseaunianos, mais precisamente seu melhor libretista, Lorenzo Da Ponte – que estava em Viena exilado de Veneza por divulgação das idéias de certo filósofo suíço –, e, claro, Beumarchais. Este cita explicitamente Rousseau no prefácio do Barbeiro de Sevilha, primeira peça de sua trilogia, e a seguinte, As Bodas de Fígaro, é generosa em referências à vida de Rousseau.
Sim, à vida e não à filosofia, se é que é possível separar cada uma ao falar de um pensador tão atípico. É desconcertante a similaridade entre o personagem de Cherubino e o jovem Rousseau descrito nas Confissões. A atração intempestiva pelo sexo oposto, sobretudo por sua patrona, e ainda alguns fatos pontuais – ambos roubam uma faixa de suas amadas, por exemplo – reforçam a tese de que Beumarchais no mínimo se inspirou na autobiografia de seu ídolo. É verdade que o jovem de impulso emocional ingovernável e inarticulado desejo pelo desconhecido não é um personagem incomum nos palcos daquela época, porém é digno de nota que os patronos de Rousseau são muito semelhantes ao Conde – um homem um tanto quanto devasso – e a Condessa – uma senhora muito gentil e amorosa.
Não encontrei nenhuma referência sobre Mozart ter assistido Le Devin, mas isso termina sendo pouco relevante, uma vez que a influência musical é nula. Mesmo a opinião do compositor sobre o libreto de Bastien é difícil de saber, afinal ele era um bocado novo para expressá-la.
Contudo, a dedicação e empenho de Mozart com As Bodas de Fígaro é revelador, dado que a ópera guarda muito do ideal iluminista – e aqui o tema se amplia consideravelmente. De todo modo, talvez até seja exagerado conectar a estética de Rousseau a Mozart quando se percebe em cada similaridade entre um e outro que ambos partilhavam de uma mesma atmosfera de crítica política e social, de reexame dos costumes e da tradição ocidental do final do século XVIII cujo final nós todos já sabemos.
Caro Fernando,
Parabéns pela percepção sobre essa nova conexão mozartiana! Bastien und Bastienne é um conjunto de números musicais realmente muito agradáveis. A escrita de um garoto de doze anos para uma ópera de um ato com cerca de uma hora, três vozes e uma pequena orquestra de cordas, oboés e trompas é de deixar alguns dos velhos compositores de joelhos! Uma seqüência de números simples, mas tão geniais que artistas renomados como Edita Gruberova (a melhor Bastienne que Mozart podia ter sonhado!!!), Kurt Moll e Walter Berry não resistiram em cantá-los!
Aqui está um pouco de Gruberova como Bastienne:
http://www.youtube.com/watch?v=yNV28xOf5no
Mas como classificar o KV 50? É um desafio… No seu pesado livro, Hermann Abert não apenas fala que Mozart “retornou à concepção de Rousseau”, mas também que se inspirou na opéra comique, na opera buffa e na canção do sul da Alemanha. As melodias são relativamente simples; ritmos, harmonias e texturas semelhantes aos estilos da opéra comique e à música alemã. A maioria das frases melódicas são curtas e simétricas. Evitam-se notas de longa duração e acompanhamentos complicados. Aqui e ali ele permite as inquietações da opera buffa, para dar efeito cômico… Os violinos dominam a textura com uma escrita encantadora, especialmente na ária da magia de Colas – que parece ganhar ares de herói de opera seria! É sensacional sentirmos a facilidade precoce de Mozart no drama musical ao diferenciar personagens, temperamentos e cenas. O tempo passa quando a ouvimos que nem percebemos… É uma delícia de música que conquista a todos! :)
Abraços!
Prezado Fernando Randau,
Rousseau trabalhou como copista! Ele tinha razões pessoais para achar o verbete tão fundamental…
Achei muito exato o seu comentário final: “talvez até seja exagerado conectar a estética de Rousseau a Mozart quando se percebe em cada similaridade entre um e outro que ambos partilhavam de uma mesma atmosfera de crítica política e social”. Rousseau foi um dos responsáveis por essa atmosfera das Luzes, e Mozart, creio, teve seu papel principalmente com As bodas de Fígaro e A flauta mágica. Abraços, Pádua
eu achei muito bom, achei não né, eu gostei bastante…
Fazendo uma pesquisa na internet recentemente sobre Rousseau me deparei com esse texto, li por inteiro, achei extremamente interessante, mas ao final fiquei curioso com uma possível bibliografia, ou mesmo fontes utilizadas para a produção do texto. Enfim, se puder mencionar as fontes utilizadas ficaria grato, já que me interessei pela relação de Rousseau com a música.
No ano em que se comemora o tricentenário de seu nascimento, o pensamento de Rousseau revive em publicações pelo mundo afora. Encontrei até, num livro comprado faz pouco, um paradoxo que me fez dar boas risadas: apesar de toda a sua influência na política, sociedade e nas artes, Rousseau era, pelo menos a princípio, um inimigo das Belas Artes! Dela dizia que era um “luxo perecível”, uma “expressão da ociosidade”, um fomento à estranheza e à decadência. Ocupar-se com arte era um “abus du temps”. Pinturas e esculturas? “Ce sont des images de tous les égarements du cœur et de la raison.” (1750). Em suma, a Arte era o passatempo da odiada aristocracia, da elite socio-política, e por isso deveria ser combatida.
Não é um pensamento parecido ao dos que ainda hoje chamam a musica “clássica” de elitista, antipopular, formalista, hermética e outros tantos quetais?
Olá José,
Minhas fontes principais, além dos libretos das duas óperas, foram artigos acadêmicos que encontrei e estão disponíveis na internet. Foram particularmente informativos artigos musicais antigos, como o “Jean Jacques Rousseau as a Musician”, de H. V. F. Somerset, que saiu no Music & Letters de janeiro de 1936 – e há continuação na edição de julho do menos ano; e “Concerning Jean-Jacques Rousseau, the Musician”, de Julien Tiersot, que saiu na The Musical Quarterly de julho de 1931. Bastante informativo sobre Rousseau e a Querelle é “Music and Ideology: Rameau, Rousseau, and 1789”, de Charles B. Paul, que saiu no Journal of the History of Ideas na edição de jul-set/1971, bem como “Jean-Jacques Rousseau and Traditional Views in His Dictionnaire de musique”, de Cynthia Verba, do Journal of Musicology, de 1989. Lembro ainda de ter lido “The Harmony between Rousseau´s Musical Theory and His Philosophy”, de John T. Scott, do já citado Journal of the History of Ideas, de abril de 1998. Sobre a associação que fiz com o Cherubino da peça de e da ópera de Mozart, veja-se “Rousseau and Cherubin”, de Ann Livermore, um artigo que saiu em Music & Letters em julho de 1962. Nesse momento é o que encontrei, mas adianto que há mais coisas escritas – sobretudo em francês, que não leio –, mas que não estão acessíveis para mim no momento.