19abr 2017
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Todas as manhãs do mundo

Gerard Depardieu como o velho Marin Marais

O Fernando já falou sobre música e cinema, vou aproveitar a deixa para falar de um dos melhores filmes já feitos sobre música: Tous les matins du monde, de 1991, do recém-falecido Alain Corneau. O filme narra basicamente a relação entre Marin Marais, o famoso compositor do barroco francês, e seu mestre, Jean de Sainte-Colombe. No entanto, ele acaba por mostrar muito mais do que isso, tornando-se uma grande reflexão sobre a música, e este aspecto o torna extraordinário.

Tecnicamente, é um filme muito bem produzido, com uma linda fotografia, reforçando de forma muito clara aspectos de chiaroscuro e com uma forte influência da pintura contemporânea. Mas mais impressionante é a riqueza musical: Marais, St. Colombe são muito tocados, mas também Lully, Couperin e muita música original (no devido estilo do barroco francês!) composta e tocada por Jordi Savall, cujo talento aprofunda ainda mais a produção.

Sinopse

O filme inicia com uma situação que qualquer pessoa que faz música já experimentou: as notas estão certas, a partitura está sendo fidedignamente reproduzida, mas ainda assim, o resultado não é agradável, não é musical. Toda pessoa que já tocou algum instrumento já foi criticada por tocar errado, mesmo estando aparentemente certa. Desta forma, a cena tem uma insuspeita familiaridade.

Em um primeiro momento, o professor explica: “Toute note doit finir en mourant” e os músicos recomeçam a tocar, de maneira praticamente idêntica. Irritado, Marais resolve dar uma aula para seus músicos sobre como tocar, “Marin Marais fait sa leçon!”. Mas, antes de falar tecnicamente sobre música, ele narra a história da sua própria aprendizagem.

A história básica é de como o gambista Marin Marais, após ter tido aulas com todos os grandes gambistas da corte francesa, se aproxima do compositor e gambista misantropo St. Colombe. Considerado por todos o melhor gambista de seu tempo, ele tinha, desde a morte de sua esposa, abandonado toda a vida da corte e passado a viver austeramente com suas duas filhas, a quem ele ensina toda sua arte, em uma propriedade rural do interior da França. Depois de uma breve exibição de Marais, St. Colombe resiste, mas acaba aceitando-o como aluno. Marais envolve-se amorosamente com uma das suas filhas, mas não consegue cativar o professor, que sempre o trata de maneira rude.

Marais acaba por se afastar do mestre e vai viver na corte, onde consegue a posição de chefe da orquestra de Lully, assumindo sua posição de compositor da corte depois da morte do grande italiano. Ele rejeita a filha de St. Colombe, grávida dele, por alguma beldade da corte. Algum tempo depois, com a gravidez tendo resultado em uma criança natimorta, a filha está gravemente doente e pede para que Marais toque para ela uma peça que lhe havia dedicado anos antes. Ele toca e, logo depois de sair, ela se suicida.

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Guillaume Depardieu como o jovem Marin Marais.

Tempos depois, Marais, algo desiludido com sua vida na corte, sente vontade de ouvir a música de St. Colombe e volta, escondido, para ouvi-lo – agora sozinho, já que sua outra filha tinha se casado. Em uma dessas noites, Marais surpreende St. Colombe conversando com sua esposa (que sempre lhe aparecia em visões) e decide falar com ele. Ao contrário das outras vezes em que acolhera Marais rudemente, agora St. Colombe decide lhe dar não uma última lição, como tinha sido pedido, mas sua primeira lição sobre música.

E é essa lição que ele repete a seus músicos. O Marais jovem que tocava para St. Colombe estava tão errado quanto os músicos da sua orquestra. St. Colombe dizia repetidamente: “Vous faisez de la musique, mais vous n’êtes pas musicien”. O talento ele tinha, o conhecimento técnico estava lá, mas faltava algo. E o filme fala desse algo.

Jean-Pierre Marielle como Sainte Colombe

“Algo”

O filme não trata da vida anterior de St. Colombe, ela é sutilmente deixada de lado, mas dá a entender que o evento central da sua vida foi a morte de sua esposa. Desde então, ele passou a se concentrar cada vez mais na música e a dar cada vez menos valor às coisas alheias a ela. Porque a música é a única coisa capaz não de superar, mas de sublimar a dor da perda da sua mulher.

Marais, ainda mais do que St. Colombe, viveu uma vida de ostentação – chegou a abandonar seu mestre e seu primeiro amor para a suntuosidade de Versalhes. Depois de algum tempo – o filme não é claro, mas é claramente depois da morte de Madeleine –, essa vida deixou de ser suficiente para ele. Com essa desilusão, ele retorna toda noite em segredo à propriedade de St. Colombe para ouvir sua música: ela lhe tinha bem mais a dizer do que os rococós de Versalhes.

Marais tinha tido também a sua experiência com a morte, a da morte da filha de seu mestre, que é em grande parte por sua culpa. É somente a partir dessa experiência com o sofrimento e da desilusão com a pompa real que St. Colombe aceita ensinar música para Marais.

“A música é uma linguagem que só consegue se exprimir quando as palavras não podem. Nesse sentido, ela não é humana. Para que é a música?”. St. Colombe pergunta para Marais, “Você já descobriu que não é para o Rei”. E Marais responde com todos os lugares comuns: “Glória, fama, para si mesmo, para Deus, para um amor, para os males do amor”. Só depois de muitas tentativas, ele percebe: a música fala com tudo aquilo que não tem palavra. E a principal metáfora que o filme usa é a da linguagem dos mortos, é com a música que St. Colombe reencontra sua antiga esposa, e é somente depois da sua própria experiência com a morte de Madeleine que Marais vai conseguir finalmente aprender a ser um musicista. “Eu vou te ensinar duas airs que podem ressuscitar os mortos”, e assim termina a formação de Marais.

Não que o filme queira dizer que a música barroca era uma espécie de scéance espírita bem avant la lettre, os mortos são apenas um símbolo. É óbvio que a linguagem dos mortos no filme serve como metáfora para aquilo que a música tem de mais essencial: é a linguagem do indizível. A música só consegue exprimir aquilo que não tem palavras para se exprimir, por isso que é tão difícil falar sobre música, porque ela, quando está sendo música em seu mais alto grau, recusa as próprias palavras. E o filme deixa isso bem claro.

Por ser uma longa reflexão sobre a natureza da música, o filme assume um valor muito elevado. Filmes sobre músicos existem aos montes, mas filmes sobre a música, que eu conheço, somente este. E poucas obras, mesmo as filosóficas, conseguiram falar sobre musica de uma forma tão profunda.


Este post tem 8 comentários.

8 respostas para “Todas as manhãs do mundo”

  1. Bruno, eu só queria lembrar que esse filme é uma adaptação de uma novela do escritor francês Pascal Quignard. Já li outro livro dele (Vie secrète), que também fala de música de modo muito tocante. Só que este não virou filme, ainda.

  2. O Pascal Quignard participou do roteiro e acompanhou a direção do filme, e pelo que eu li a respeito como adaptação o filme ficou bastante próximo do livro.

    E a morte como símbolo do lado “escuro” da expressividade – que nisso estaria relacionada à música como o oculto, o além do exprimível – aparece bastante durante todo o filme: o St. Colombe passa a ter visões da mulher morta depois que ele próprio, conforme um sonho que se confunde com a realidade, se cobre d’água em um lago experimentando a idéia de um suicídio – bem uma travessia da morte e da “escuridão!” antes da sua epifania. E a mulher aparece mais de uma vez espremendo aqueles rolinhos que servem de luz quando são queimados (cf. a pintura aí em cima) – também uma vinculação à escuridão. E como símbolo de morte-escuro-inexprimível, ela é intocável (quando St. Colombe tenta tocar a sua mão).

  3. Inexplicável e imperdoavelmente, ainda não assisti este filme. Mas pela leitura dinâmica que fiz creio que o Bruno não citou um fato: A trilha sonora do filme (ou a dublagem de uma dos personagens, não tenho certeza) foi feita por Maria Eunice Brandão, falecida há alguns anos, que nasceu em Curitiba no meio de uma família de músicos: irmã de Hélio (saxofonista, e contrabaixista), Maria Alice (violoncelista), Maria Ester (a primogênita, violinista), Zélia (flautista) e “Maíka” (violinista barroca e professora) Brandão. Todos eles grandes músicos.

  4. Verdade, este é não só o melhor mas acho que o único filme que discute o significado da música mesmo, não a vida romanceada de algum compositor. O momento-chave pra mim foi quando, ao responder à pergunta sobre o que é a música, Marais diz: A voz de Deus?, e o mestre lhe responde. Não, Deus fala! A música expressa coisas que não podem ser ditas com a palavra (não me lembro das palavras exatas). É isso que eu pensava, mas só depois do filme vi que tinha mais gente que pensava assim.

  5. Encontrei neste post o motivo para um trabalho da cadeira de Fenomenologia do curso de Especialização em Estética. Amanhã mesmo vou conversar com meu professor sobre esse tema: “a música diz o indizível”. Muitíssimo grato pelo blog de vocês. É sensacional! Indico sempre. Ah! Tenho que ver o filme depois de tudo que li.

  6. Este filme é realmente maravilhoso . Perfeito , Uma das Obras mais bonitas que já vi e ouvi. Estouprocurando nas locadoras mas não o encontro . Como encontrá-lo ?Parece que tudo que é bom anda desaparecendo !S pudere dar alguma dica …

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