19abr 2017
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Dvořák no Novo Mundo – 1. O início da jornada

Nova York, 1893. Da esquerda para a direita: Anna (esposa), Antonín II (filho), Sadie Siebert (amiga), Josef Jan Jovařík (secretário), mãe de Sadie (amiga), Otilie (filha) e o compositor Antonín Dvořak
Nova York, 1893. Da esquerda para a direita: Anna (esposa), Antonín II (filho), Sadie Siebert (amiga), Josef Jan Jovařík (secretário), mãe de Sadie (amiga), Otilie (filha) e o compositor Antonín Dvořak

Quando os compositores viajavam para outros países, muitas vezes a experiência de vivenciar uma cultura diferente rendia uma boa obra. Mas a viagem do tcheco Antonín Dvořák (1841-1904) para os Estados Unidos no final do século XIX resultou muito mais do que em obras-primas: ela alterou o próprio curso da história da música. Nesta série de posts vamos reviver a jornada do compositor, e entender a importância dela para a história da música clássica norte-americana.

O desafio de cruzar o Atlântico

Durante o século XIX a humanidade sentiu as distâncias marítimas se encurtarem: se nas primeiras décadas os barcos à vela levavam um ou dois meses atravessando o Atlântico Norte, no final do século os modernos navios a vapor levavam passageiros da Inglaterra para os Estados Unidos em pouco menos de uma semana. O desenvolvimento tecnológico também trouxe mais conforto para os passageiros, como água corrente, luz elétrica… e cabines de primeira classe. E com a expansão econômica dos países da América estimulando a formação de um público consumidor de espetáculos, em pouco tempo as companhias de balé e orquestras européias começaram a incluir o Novo Mundo em suas turnês internacionais.

Convites para artistas e compositores também começaram a se multiplicar, e aos poucos os europeus foram vencendo o medo de atravessar o oceano e encarar uma civilização diferente. Em 1891 o regente e compositor Piotr Tchaikovsky veio a Nova York para a inauguração do Carnegie Hall e passou dois meses regendo concertos em várias cidades dos Estados Unidos. Em 1903 o tenor Enrico Caruso assinou um contrato com o Metropolitan Opera de Nova York e passou a vir com frequência à cidade. E em 1908 foi a vez de Gustav Mahler iniciar as viagens transatlânticas ao assumir a regência da mesma casa de ópera.

E Dvořák, como foi parar nos Estados Unidos?

No início da década de 1890, Antonín Dvořák trabalhava como professor de composição no Conservatório de Praga, e já era reconhecido como um compositor de fama internacional. Suas obras frequentemente incluíam ritmos e melodias inspiradas em música folclórica da sua terra natal, a Boêmia, e regiões vizinhas, como a Morávia, Eslováquia e Polônia. Para que vocês tenham uma idéia de como a música dele soava ANTES da sua viagem para os Estados Unidos, ouçam no próximo vídeo a sua Dança Eslava Op.46 nº7, escrita em 1878 e baseada numa dança típica chamada Skočná:

[kad_vimeo url=”https://vimeo.com/140101019″]
Jeannette Thurber (1850-1946)
Jeannette Thurber (1850-1946)

Lá do outro lado do Atlântico, Jeannette Thurber (1850-1946), uma rica mecenas de Nova York, havia fundado o Conservatório Nacional de Música da América em 1884 e estava procurando, para o cargo de diretor, um nome famoso nos círculos musicais da Europa para alavancar o prestígio de sua escola. Thurber escolheu Dvořák, e em junho de 1891 ela enviou para ele um telegrama oferecendo um salário de 15 mil dólares por ano e 4 meses de férias para trabalhar 3 horas por dia, 6 dias por semana. A proposta era bem tentadora – por exemplo, o salário era 25 vezes mais alto do que o Conservatório de Praga oferecia e o compositor teria tempo de sobra para se dedicar às suas obras – mas Dvořák ainda estava em dúvida. Por fim sua família o convenceu; veja mais detalhes desta história neste link aqui (em inglês, mas é muito interessante!).

Dois meses antes da viagem, Dvořák conheceu Josef Jan Kovařík (1870-1951), um jovem americano filho de imigrantes tchecos que havia recém-concluído seus estudos de violino no Conservatório de Praga. Kovařík estava voltando para seu país, e assim que soube que o novo amigo também estava indo para os Estados Unidos, decidiu adiar sua viagem para o acompanhar. Devido ao seu conhecimento de ambas as culturas, Kovařík foi contratado pelo compositor como guia e “secretário informal”, e permaneceu junto com a família Dvořák durante todos os anos em que eles estiveram em Nova York.

Enfim, a viagem aconteceu de 15 a 27 de setembro de 1892. O compositor trouxe consigo a esposa Anna e apenas dois dos seus seis filhos: Antonín II com 9 anos de idade e Otilie, na época com 14 anos.

Os primeiros meses em Nova York

Dvořák foi recebido como celebridade, e assumiu seu posto no Conservatório em 1º de outubro de 1892. Curioso como era, em pouco tempo ele absorveu a cultura e os costumes locais… mas algo passou a incomodá-lo. Ao tentar descobrir como era a música clássica norte-americana, ele ouviu obras como esta aqui, ó:

Chadwick: Abertura Melpomene (trecho) (Neeme Järvi – Detroit Symphony Orch.):

O trecho acima é da Abertura Melpomene, escrita por George W. Chadwick em 1887. Não sei o que vocês acharam, mas para mim soa como um Brahms, muito semelhante à música que os europeus escreviam na época. (Leonard Bernstein também pensava a mesma coisa). “Por que os americanos não escrevem música americana?”, devia perguntar-se Dvořák.

Harry T. Burleigh (1866-1949)
Harry T. Burleigh (1866-1949)

O conservatório onde o compositor trabalhava tinha uma política social bastante avançada para a época: mulheres e negros eram aceitos como estudantes, e os melhores alunos recebiam bolsas de estudo como incentivo. Infelizmente este não era o caso de Harry T. Burleigh (1866-1949), barítono e (futuro) compositor: para ajudar nos estudos, ele tinha que limpar as salas e corredores do conservatório. Em momentos mais à vontade, ele trabalhava cantando spirituals, canções negras religiosas; e certo dia aquela cantoria chamou a atenção do diretor Dvořák. A partir de então, com frequência o diretor chamava Burleigh em sua sala e pedia para ele cantar spirituals e canções populares americanas.

Não demorou muito para o tcheco juntar A com B. Num artigo publicado no New York Herald em 21 de maio de 1893, ele afirmou: “Nas melodias dos negros americanos eu descobri tudo o que é necessário para uma grande e nobre escola de música”. Por causa deste e de outros artigos semelhantes ele passou a receber muitas críticas vindas não só dos Estados Unidos mas também da Europa. Kovařík, o “secretário informal”, relata que ele lia e ouvia as críticas em silêncio, e a única coisa que ele dizia era: “Então esses cavalheiros acham que isto é impossível? Bem, nós vamos ver sobre isso!.

Kovařík já sabia do que se tratava: em janeiro daquele ano (1893) a Filarmônica de Nova York havia encomendado ao mestre uma nova sinfonia, obra que ele escreveu entre 10 de janeiro e 24 de maio.

Então Dvořák usou melodias populares nas suas obras americanas?

Bem, com raríssimas exceções, não. Em suas próprias palavras:

“Na verdade eu não usei nenhuma das melodias [nativas americanas]. Eu simplesmente escrevi temas originais que contêm as peculiaridades da música dos índios e, usando estes temas como motivos, eu os desenvolvi com todos os recursos de ritmos modernos, contrapontos e cores orquestrais”.

Música dos índios também? Sim! Ainda no primeiro semestre de 1893, Dvořák teve a oportunidade de assistir ao show Oeste Selvagem (Wild West Show) com o lendário Buffalo Bill. Neste show ele teve o primeiro contato com a música dos índios americanos, mais especificamente da tribo Sioux Oglala.

E que características que ele encontrou na música dos negros e dos índios? Pelo menos duas são as que mais saltam aos olhos – ou melhor, aos ouvidos. O primeiro é o uso da escala pentatônica.

A escala musical tradicional tem sete notas; a escala pentatônica remove duas destas notas, exatamente as que compõem os dois semitons da escala maior, e ficamos com uma escala de cinco notas sem semitons. Compare ambas as escalas ouvindo-as aqui::

Escala tradicional de Dó Maior – Escala pentatônica de Dó Maior:

E então as melodias são escritas usando apenas estas cinco notas da escala. Ouça alguns exemplos aqui:

Escala pentatônica – Oh! Susanna (Stephen Foster) – Quarteto Americano – Quinteto Op.97 – Sonatina Op.100 – Sinfonia do Novo Mundo (1º e 2º movs):

A segunda característica é o uso de sensíveis naturais nas escalas em modo menor, fazendo-as soarem como no modo aeólio. Explicando melhor: quando você escreve uma melodia em tom menor, você eleva a sétima nota em 1 semitom para que ela tenha a mesma característica da sétima nota do modo maior; na música negra americana isso não acontece. Ouça no player abaixo a escala escala menor com a sétima nota alterada (7ª Maior), comparando-a em seguida com a sétima nota ao natural (7ª menor) e o uso que Dvořák faz disso em suas melodias:

Escala menor com 7ª Maior e 7ª menor – Sinfonia do Novo Mundo (4º e 1º movs) – Concerto para Violoncelo – Quarteto Americano:

Estou curioso, quero ouvir um exemplo completo!

Claro, você tem todo o direito!

A Sonatina para violino e piano Op.100 foi escrita entre 19 de novembro e 3 de dezembro de 1893, em Nova York. Sonatina, como o nome diz, é uma “sonata pequena”: Dvořák compôs a obra visando desenvolver as habilidades musicais de seus dois filhos, a Ottillie (que aos 15 anos estava aprendendo piano) e Antonín II (que com 10 anos estudava violino com Kovařík). É por isso que a primeira página da partitura diz: “Dedicada às minhas pequenas crianças”. Aliás, elas mesmas fizeram a estréia privada da obra, tocando-a para o pai.

No próximo post teremos a continuação da jornada: iremos para Spillville, Iowa! Até breve!

Este post pertence à série “Dvořák no Novo Mundo”:
1. O início da jornada
2. Spillville, Iowa
3. A sinfonia e seu legado
4. O retorno à Europa

Este post tem 11 comentários.

11 respostas para “Dvořák no Novo Mundo – 1. O início da jornada”

  1. Primeiro, ótimo que tenham voltado a publicar.

    Esta história mostra que, bem ou mal, não foi só o Brasil e países da América Latina que mantiveram uma arte altamente eurocêntrica durante muito tempo após a independência política das metrópoles… e é interessante saber que um europeu os ajudou a despertar para os elementos nacionais próprios deles.

  2. Eu, embora lendo guias de ouvintes, não entendo o que seja um trio além de uma formação de 3. O que seria como parte de uma música?
    Sobre o video de Berstein, ouvi que ele falara de Brahms de Wagner, mas eu não entendo o inglês falado. Poderia ao menos parafrasear o que ele considera?

    Obrigado pelo excelente artigo.

  3. Olá Max!

    Vc também está certo: “trio” é uma formação de 3, e também uma música escrita para 3 instrumentos. Nas danças do século XVIII, a parte central da música era tradicionalmente tocada por apenas 3 instrumentos ou 3 partes, e por isso ganhou o nome de Trio. Lembre do movimento final do Brandenburgo nº1 de Bach, que é um Menuetto: o “Trio nº1” é interpretado por dois oboés e um fagote, e o “Trio nº2” é para duas trompas e oboés. No minueto da Sinfonia nº40 de Mozart, uma boa parte da seção central é escrita para flauta, oboé e fagote. No Scherzo da Sinfonia nº9 de Beethoven, a seção central começa com oboé, clarinete e fagote. Há vários outros exemplos, mas o fato é que o nome pegou, e em várias partituras o próprio compositor denomina como “Trio” a seção central das formas A-B-A, mesmo quando a música não é mais escrita para 3 vozes.

    Já o que o Bernstein fala no vídeo pode ser lido aqui (em inglês): http://www.leonardbernstein.com/ypc_script_what_is_american_music.htm . Traduzindo mais ou menos:

    “Naquele tempo os poucos compositores americanos que tínhamos estavam imitando os compositores europeus, como Brahms e Liszt e Wagner e todos aqueles. Nós podemos chamar aquele o “período do jardim de infância” da música americana; nossos compositores então estavam como crianças inocentes e alegres no jardim de infância. Por exemplo, nós tivemos um compositor muito bom chamado George W. Chadwick, que escreveu música profissional, e também com música com sentimentos profundos, mas você quase não pode dizer que ela é diferente da música de Brahms, Wagner ou outros europeus. Como esta abertura dele. Ouçam.”

  4. Grande Amancio, obrigado pela iniciativa de postar sobre a aventura americana do Dvorak, um fantástico compositor ainda desconhecido em parte, principalmente no Brasil. Eu mesmo demorei a descobri-lo, mas agora sou fanzoca. Como näo quero estragar sua festa de mostrar a música que ele compôs nos EUA, mando um link de uma obra bem anterior, uma de minhas favoritas:

    https://www.youtube.com/watch?v=DTAMISjMLS0

    O Andante, pra mim, é filho legítimo do imortal Adagio da Gran Partita K 361 de Mozart. E essa turma que toca näo é das piores. Gravado no palácio Sansouci, em Potsdam. Bom domingo a todos e abs.

  5. Magnífico, não possuia conhecimento de tal blog! É muito prazeroso encontrá-lo! Quanto ao post, simplesmente esplêndido! Com certeza serei um frequente leitor!

  6. Excelente Blog.Como amadora de música – e como amo! – e coralista, achei uma excelente oportuniudade para aprofundar meus conhecimentos .
    Muito grata,

  7. Esse artigo é excepcional! Sou violinista, já toquei a 9ª sinfonia de Dvořák umas 3 vezes (caminhando para a 4ª), mas nunca havia percebido as bases em escalas pentatônicas e em 7ª Maiores e menores. Por favor, publiquem o 3º e 4º artigo, estou ansioso para lê-los.

    Agradecido,
    Uiler Moreira de Souza

  8. Encontrei este blog totalmente por acaso, pois estava pesquisando sobre A Flauta Mágica, de Mozart, quando o blog, entre vários outras “links” chamou a minha atenção. Amei! Depois do post sobre A Flauta Mágica, encontrei este, sobre Dvorák, cujas sinfonias muito aprecio, principalmente a do Novo Mundo. Amei o blog. Já estou fã! Sou amante de música clássica há muitos anos, e já tive a oportunidade de assistir a varios concertos e óperas. Agora, com suas análises vou apreciar mais ainda. Muito obrigada! Continuem, por favor!

  9. Eu quero me manter informada sobre estes compositores, porque eles são importantes na história da música

  10. Adorei saber mais sobre Dvorak, um dos meus compositores preferidos e saber dessa mecenas tão a frente de seu tempo.

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