Seguindo nossa série sobre a filosofia da música de Karl Popper, passemos aqui para sua crítica à idéia de progresso na música. Sem dúvida, de suas três sugestões essa é a que mais se relaciona com o resto de sua epistemologia. Isso porque Popper foi um grande crítico do historicismo, não só devido à invalidade de qualquer método científico dessa ideologia, mas, sobretudo, pelo perigo que ela representa para a sociedade. Algo similar acontece com arte e especialmente na música de sua época.
Vejamos como ele chegou nesse ponto. Como dito no post anterior, Popper desconsiderava o ideal artístico da chamada música subjetiva. Para o filósofo, a música não pode se resumir a expressar o estado emocional de seu criador, conforme Beethoven fez bastante em suas últimas obras. Mais do que rompantes de inspiração, a música é engenho, tentativa constante de adaptar criativamente regra e invenção, na base da tentativa e erro.
Mas isso não quer dizer que a arte deva ser desprovida de conteúdo emocional, pelo contrário. Ocorre que Popper quer recusar a teoria expressionista da arte, e para tanto recorre a mais antiga demonstração de tal teoria, descrita no Íon de Platão. Nesse diálogo, discutem-se diversas respostas sobre a origem da obra, inclusive a de que seria resultado de possessão/inspiração. Ao desconsiderar a técnica, Popper não receia em dizer que está tudo errado, porém quando Platão sugere que o artista e a platéia são igualmente afetados pela obra, ao menos ele se aproxima de um ponto essencial verdadeiro: na arte, as emoções não servem para simplesmente serem expressas, mas para “testar”, objetivamente, os efeitos racionais da composição.
Impacto emocional é apenas conseqüência da resolução de outros tantos problemas que o compositor enfrenta ao se deparar com uma partitura em branco – fazer um bom contraponto, por exemplo. Nossa apreciação não deve se basear na emoção pura e simples, mas na satisfação de ouvir uma peça cujo resultado racional é equilibrado.
Certamente as composições nascidas sob o signo do expressionismo não resistem ao lado da música objetiva. O problema é que tal ideal estético foi utilizado até a exaustão pelos mesmos criadores da nefasta idéia de progresso na música. A crença historicista no campo musical teria começado no romantismo – onde mais? –, precisamente com Richard Wagner e sua “música do futuro”.
Saliente-se que Popper não recusa que pode existir algo que se assemelhe a progresso em arte, uma vez que novas possibilidades sempre são descobertas – na música, a crescente sofisticação dos instrumentos permitiu explorações musicais inéditas. Mas o ponto, diz Popper, é que nem mesmo isso é tão relevante no resultado final. É a postura de Wagner, que julgava a si mesmo como o gênio que apresenta a música num estágio superior de possibilidades, por vezes compreendida em seu tempo apenas por um pequeno grupo de esclarecidos, que Popper procura combater, uma vez que desde os ensaios dele a música tem sido freqüentemente contaminada em criar novidades que ameaçam a tradição anterior.
Imagino que Popper esteja parecendo um velho ranzinza que prefere a segurança de uma partita de Bach a sequer escutar qualquer obra moderna barulhenta, porém é mais do que isso. Contemporâneo da Escola de Viena, ele chegou a fazer parte por um tempo da Sociedade de Performances Privadas – Verein für musikalische Privataufführungen –, presidida por Schoenberg, e sendo assistente de Erwin Stein, durante os diversos ensaios de que participou, chegou a estudar a Kammersymphonie e o Pierrot Lunaire. Foi no convívio com a vanguarda que Popper se deu conta do quanto o ideal do grupo era de cada vez mais superar, ou melhor, sobrepujar a música dos outros – primeiro de Wagner, depois a de seus contemporâneos e até a si mesmos.
Diga-se que exceção é feita à Webern, a quem nosso autor conheceu pessoalmente e a que descreveu como “a dedicated musician and a simple, lovable man”. Seu problema seria menos o progressismo e mais o expressionismo – Webern teria lhe dito que a composição do Orchesterstücke se resumiu a escrever na partitura sons que lhe vieram à mente assim, sem mais nem menos…
Diagnosticando a tendência dos compositores contemporâneos em tentar criar obras geniais, procurando serem os mais herméticos possíveis, Popper rejeita o mito do gênio (especialmente o incompreendido), que desde a fundação de Bayreuth ganhou status de seita e tem infundido a idéia de que a música moderna é necessariamente superior a precedente. Inevitavelmente, o resultado disso serão modas descartáveis – e sabemos que muito da música do século XX não passou de moda.
Diversas críticas podem ser feitas à postura de Popper. Creio que faltou um pouco de senso sociológico, na falta de melhor expressão, ao nosso autor. Não percebeu que depois do romantismo o papel do compositor mudou, não porque eles ou o público quisessem, porém em função do próprio lugar da música na sociedade. Não nego uma simpatia pela censura aos modernismos – quem não conhece alguém que se acha mais profundo por ouvir Berg em detrimento de Haydn? –, mas ao mesmo tempo, percebendo que seu mundo musical parou em Schubert, sua posição sem concessões parece difícil de ser sustentada.
Então entramos aqui num campo de discussão muito maior: o modernismo – seja da Escola de Viena, ou ainda o neoclassicismo de Stravinsky, por exemplo – foi uma total ruptura com a tradição musical anterior? Afinal, é possível comparar obras de uma época com outra? Se sim, por quais critérios?
O que chama a minha atenção aqui – além do fato de ficar mais clara a ligação entre uma poética expressionista e o seu ideal revolucionário – é essa concepção do Popper de que a emoção da arte é mais ou menos a emoção da descoberta da verdade. E essa é, de novo, exatamente a descrição da motivação de um cientista!
Enquanto esperamos pelo terceiro post pra pensarmos mais sobre isso, faço minha indicação de um texto que aproxima arte e ciência mais ou menos nesses termos: nada mais que o prefácio do livro “A Literatura Inglesa” do Anthony Burgess!