19abr 2017
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Karl Popper e a Música – Parte I

Continuando nossa série de posts apresentando contribuições para a filosofia da música por  diversos autores das humanidades, quero chamar atenção aqui e em dois posts seguintes para as idéias musicais de Sir Karl Popper (1902-1994).

Popper: revolucionário na epistemologia, liberal na política, conservador na música.

Conhecido mais por estabelecer o critério científico do falsificacionismo (falsiability) e pela crítica rigorosa ao historicismo, Popper permitiu-se especular sobre a música de maneira indissociável à sua epistemologia – e como veremos mais tarde, mesmo sua filosofia política ressoa um tanto nas especulações musicais. Popper era um profundo conhecedor de música, vindo de uma família com diversos músicos amadores – tinha mesmo um parentesco distante com o maestro Bruno Walter –, chegando até a cogitar ser músico na juventude. Considerando-se sempre um conservador em matéria de arte, para ele o último dos grandes compositores foi Schubert (com raras exceções a alguma coisa de Brahms e Bruckner). Imaginemos então o pouco apreço que ele teve pelas vanguardas que lhe foram contemporâneas.

As idéias que nos interessam aqui foram condensadas em sua célebre autobiografia, Unended Question – traduzida no Brasil como Autobiografia Intelectual – e seguindo o próprio esquema de Popper, faço notar três sugestões que ele arriscou sobre música. Ainda que pontuais, o vienense não pode ser acusado de falta de originalidade na escolha dos temas: 1) sobre origem da música polifônica; 2) a distinção entre música objetiva e subjetiva; e 3) o problema da idéia de progresso na música. Começarei minha exposição pela segunda, a distinção entre a música objetiva – cujo ideal pode ser encontrado em Bach – e a música subjetiva – cujo ideal está em Beethoven.

Tal distinção entre Bach e Beethoven ocorreu a Popper ainda na juventude, e no momento em que escreve, décadas depois, ele mesmo não a considera mais tão rigorosa, dando-se ao trabalho de expô-la mais para revelar sobre sua evolução intelectual. Contudo, ainda assim achei interessante como uma explicação inicialmente da esfera epistemológica se aproveita da música para, ao fim, criar curiosos desdobramentos nesta. Se a idéia é de fato frutífera ou palpite diletante deixo para vocês julgarem.

Primeiramente, convenhamos que tal distinção não parece lá uma idéia muito original. Mesmo alguém ignorante em teoria musical com o hábito consegue intuir que a música de Bach é mais “cerebral” e a de Beethoven mais “passional”. Contudo, o que Popper faz é dar substância a esse lugar-comum ao mesmo tempo em que expõe seu próprio ideal de arte. Diz nosso autor que, ao contrário de Mozart, por exemplo, Bach e Beethoven são compositores que notadamente fazem suas personalidades transparecerem nas composições. Desse modo, evidenciam-se duas posições antagônicas em relação à arte: em Bach a música é um contínuo jogo de problemas e soluções similar à ciência, enquanto que para Beethoven a música é, eminentemente, um meio de auto-expressão – e para Popper, essa última postura é uma ameaça para a arte.

Beethoven: uma personalidade bipolar em música

Criticando toda a teoria da arte como expressão das emoções de seu criador (exemplificada por Croce e Collingwood), o filósofo, eminentemente anti-essencialista, dirá que a própria questão básica de tal teoria – “o que é arte?” – é desprovida de sentido. Dizer que a arte é expressão da personalidade humana não é dizer nada, uma vez que todo comportamento humano, e mesmo animal, pode se passar por expressão. Nenhuma obra de arte significativa se resume a expressar as emoções de seu criador, pois exige certas habilidades que certamente transcendem a expressão – imaginação, dedicação, gosto, quiçá virtuosismo… etc.

Mais ainda: tal teoria expressionista termina sugerindo que as melhores obras, sendo expressões das emoções de seus compositores, serão completamente desprovidas de critérios formais e procurarão incessantemente “transgredir”, desconsiderando, portanto, toda a tradição anterior e procurando recriar a música a cada nova composição. É, em suma, o ímpeto vanguardista. Para Popper, o fato é que podemos encontrar facilmente grandes obras que não são necessariamente originais, enquanto obras criadas com o propósito de serem revolucionárias dificilmente são grandes obras. Tentar ser original, transgredir, e ainda por cima com a intenção de imprimir sua marca particular numa composição é, no mínimo, uma ameaça à integridade da composição (imaginemos o horror de Popper ao escutar uma sinfonia de Mahler). Eis o ponto principal de nosso autor: o compositor não deve se impor, mas servir à composição e às suas regras.

Bach: compositor sério, praticamente um cientista.

Mas o que significa isso? Voltando aos nossos compositores antíteses, Popper também crê que a personalidade de Bach transpareça em suas obras, mas não da mesma maneira que Beethoven. Quando aparece, é de maneira inconsciente, pois Bach esquece a si mesmo no projeto de uma composição. Citando o autor das Paixões, Popper lembra que para este luterano convicto toda música deveria somente servir à glória de Deus. Isso não acontece em Beethoven, constantemente preocupado em passar sua “mensagem”, até o cúmulo de inserir um coro em sua última sinfonia.

Não se trata aqui de opor música sacra à música secular, absolutamente, nem dizer que a música de Bach é desprovida de emoção – para tanto basta ouvir a Paixão segundo São Mateus. Ocorre que esse oratório não começou sendo escrito com o propósito de efeitos dramáticos – algo muito diferente da Missa Solemnis de Beethoven, notoriamente composta “do coração para o coração”.

Portanto, a diferença está em aspectos técnicos, como no uso do elemento dinâmico, de piano para forte, por exemplo. Óbvio que isso existe em Bach, mas não será a marca essencial de suas obras, nem sua música se fundamenta inteiramente nessas altercações. Enquanto em Beethoven, diz Popper, basta uma audição da Appassionata para perceber que o elemento dinâmico é tão importante quanto o harmônico. Em suma, Beethoven procura criar estímulos para dar vazão à sua personalidade tempestuosa, enquanto Bach se dirige à prudência da razão.

Então voltamos à vaga idéia de que o compositor não deve se impor, mas servir à sua obra. Nas Invenções, Popper repara o uso didático que Bach transmite dessas músicas, permitindo ao executante se disciplinar nas regras formais ao mesmo que o encoraja a ter suas próprias idéias musicais – e aqui eu gostaria que os tecladistas que podem tocar essas Invenções se manifestassem.

Com isso chegamos ao ponto mais fundamental da visão de Popper: música e ciência são semelhantes na medida em que ambas lidam com resolução de problemas que permanentemente são apresentados, resolução essa que passa por regras formais que são nada menos que o conhecido processo de tentativa e erro.

Isso não significa dizer que a boa arte seja desprovida do componente emocional – e é ao tentar lidar com esse fato inescapável que Popper mais corre riscos. Para tanto, explica que seu interesse está em limpar o terreno das visões românticas da arte: o compositor, e o artista em geral, não devem ser movidos pela tentativa de criar impacto emocional, este deve ser conseqüência, e é precisamente isto que diferencia a música objetiva da subjetiva.

Para dar respostas satisfatórias a essa questão, Popper terá de entrar num vasto campo que transcende a esfera musical, o da relação entre arte e emoções humanas. Espero voltar a ele no próximo post juntamente com sua exposição do problema da idéia de progresso na música. Por hora, faço notar algumas questões problemáticas que as afirmações do austríaco trazem: será que obras que foram propositalmente revolucionárias na música não são grande música? Melhor dizendo, será que uma composição com o propósito emocional é inerentemente ruim? Nesse sentido, será mesmo que Bach não quis criar efeitos dramáticos em nenhuma de suas obras? E Beethoven, cujo estereótipo de herói romântico é aceito por Popper, impõe sua visão de mundo em tudo que toca desconsiderando toda a tradição clássica que lhe foi anterior?

Este post pertence à série:
1. Karl Popper e a Música – Parte I
2. Karl Popper e a Música – Parte II
3. Karl Popper e a Música – Parte III

Este post tem 12 comentários.

12 respostas para “Karl Popper e a Música – Parte I”

  1. Conhecer o que o Popper falou sobre música, no tom pessoal da autobiografia, é uma pérola. Recomendável a todo interessado em epistemologia.

    Sobre as idéias que estão aqui reproduzidas: é notável como é difícil, mesmo desconfortável, lidar com uma distinção que já se sabe de antemão o quanto é radical – “objetividade” e “subjetividade” são obviamente qualidades que não se separam na prática, e o risco é nada menos que a contradição: “onde já se viu falar que Bach não é subjetivo?”, “onde já se viu falar que Beethoven não é objetivo?”, etc. Isso sem falar nessa idéia de que Mozart, ao contrário de Bach e Beethoven, não transpareceria sua personalidade na música. Há muita ressalva desde aqui pra se fazer.

    Mas acho que a validade que Popper dá a essas idéias é, primeiro, dizer que está jogando o jogo dos idealismos (esses extremos puros) justamente pra combater pelo menos um deles, no caso: a poética romântica, que dá prestígio à música como metáfora do artista, e que, como tal, é participante mais do que nunca no paradigma da originalidade (a música revolucionária). Popper, com a sensibilidade de um conservador, deve ter percebido que esse prestígio romântico, *subjetivista* dado à música era algo que tornava cego o valor do engenho junto às leis materiais da arte e junto ao significado da tradição. Daí essa contestação nesses próprios termos extremos de objetividade/subjetividade, pra mostrar como a primazia da subjetividade – que desde que pra ser “primazia” se assume nessa divisão com a objetividade – não se sustenta. E segundo que eu acho que ele não se preocupou tanto com a grosseria dessa divisão objetividade/subjetividade porque ele as indica mais como os ideias de duas poéticas. É como você falar em imparcialidade e alguém vir e dizer que ela não existe na prática. Óbvio, mas ela não precisa deixar de existir como um critério e como um ideal a um método. E o que resta pra ele parece ser essa poética que espanta os ultra-românticos chatos e lembra o valor da objetividade na arte.

    Só que… …também parece claro que não é jogando o jogo idealista dos próprios subjetivistas ou essencialistas que ele vai construir o argumento de uma poética melhor que a deles. É certo que não é necessariamente inserindo sua biografia ou guiando-se pela originalidade pura e simples que um artista vai tornar sua obra melhor. Mas também não parece suficiente dizer que uma poética da objetividade, da ponderação da razão, consiga tornar a arte significativa. A aproximação aqui da arte e da razão nesses termos lembra muito uma aproximação entre arte e ciência, mas obviamente essa aproximação não pode ser tão radical.

    Muita conversa a partir daqui. Espero pelos próximos dois posts!

  2. Ah, saudade das aulas do Prof. Pedro Lincoln da UFPE no mestrado falando de Popper com tanto entusiasmo… “Música e ciência são semelhantes na medida em que ambas lidam com resolução de problemas que permanentemente são apresentados.” Isso é veludo para meus ouvidos! Admiro o conservadorismo de Popper na música. No entanto, concordo com Leo quanto à ressalva na idéia de que Mozart, ao contrário de Bach e Beethoven, não transpareceria sua personalidade na música. Essa coisa de Beethoven ser emoção pura e Mozart não se expressar por meio da música é tida como dogma por muita gente – a exemplo do que escreveu o colunista Leonardo Martinelli na Revista Concerto de dezembro/2010 na seção “Vidas Musicais”, do qual discordo prontamente. Parabéns pelo post, Nando! Aguardo ansioso os próximos capítulos!
    Abraços!

  3. Eita, caríssimos amigos de longa data, vocês estão elevando a discussão para um nível altíssimo. Recentemente fui atrás de fontes sobre o papel do coro no ópera, motivado pelo artigo do querido Fred. E agora esse texto instigante do amigo Fernando. Beleza pura. Realmente esse debate sobre subjetivo e objetivo na música não é original, contudo ler as idiossincrasias de personalidade fortes é um dos meus prazeres favoritos. Li um artigo na Gramophone de outubro sobre como Boulez (compositor vanguardista) achava das novas tendências da música pós-moderna, como o neo-tonalismo ou neo-romantismo. “Perda de tempo” disse o compositor francês. Com as descobertas rítmicas de Stravinski e harmônicas de Schoenberg, pensar em tonalismo é um retrocesso imperdoável. A música, assim como a ciência (qualquer uma, exata ou humana) tem o caráter de agregar valores técnicos e objetivos. Escolher técnicas antiquadas para montar um moldura musical é o mesmo que fazer astronomia hoje usando um luneta similar ao de Galileu. Música é ciência, segundo Boulez.
    Já outro compositor francês, Claude Debussy, também um vanguardista, influência máxima para música que se fazia no início do século XX, pensava de outra maneira. Vejam vocês que Popper fala sobre Bach e Beethoven (última fase) como representantes da música objetiva e subjetiva, respectivamente. Debussy amava os dois, mas tinha uma implicância com Beethoven (às vezes falava dele com desprezo e antipatia. Pois é, contradições de um gênio. Amava e detestava Wagner também), não aceitava as “malditas variações” que só destruíam a espontaneidade de sua natureza. Ou seja, Debussy queria um Beethoven ainda mais solto, mais subjetivo. Engraçado, a espontaneidade era mais percebida por Debussy na música de Bach. Eu vou um pouquinho na linha de Debussy. Beethoven é filho direto de Haydn, pois os dois usam células para construção de suas obras. Já Mozart usa um arco indivisível, com nenhuma fissura. É só comparar as partituras originais, as de Mozart são limpas e sem correções, como alguém que monta uma arquitetura em todos os seus detalhes na cabeça (a La Bach), mas as de Beethoven são garranchos que eram o terror para os copistas. Beethoven não escrevia suas obras no ímpeto, elas eram corrigidas inúmeras vezes. Ou seja, o subjetivo ou inexplicável está em Mozart e Bach e não em Beethoven, já que as “malditas variações” e transições na música de Beethoven são percebidas constantemente. Como a música é medida de diferentes formas (culturais, populares, econômicas,…), ela se afasta da verdadeira ciência, que nega completamente pontos de vistas. A imprecisão é uma ferramenta de trabalho para o cientista, mas não nesta ordem de grandeza que encontramos na música.

  4. Grande Bosco!

    O seu comentário me faz pensar no quanto é complicado querer determinar o que seja objetivo/impessoal/universal e subjetivo/pessoal/particular em música. Percebo que Popper usa esses termos justamente pra contestar esse raciocínio presente tacitamente na primazia da subjetividade defendida pela poética ultra-romântica. Mas é bem quando ele mantém a definição e generalização desses termos pra defender a objetividade que ele mais claramente merece tantas ressalvas e entra em contradições.

    Veja que sem usarmos esses extremos puros, eu também percebo o que você diz a respeito de Beethoven: é como se não restasse mais ingenuidade no seu mundo informado pelo repertório de convenções da tradição, e com isso ele desenvolvesse a sensibilidade de procurar em muitos dos caminhos da tradição uma solução própria. Qualquer análise de perto percebe como transições de função a princípio inócua em Beethoven podem abrigar algum desvio do caminho com o efeito de causar supresa, de despertar a consciência a todo momento. Mais do que já o espírito revolucionário dos românticos, penso que esse aspecto é o aspecto de um artista que se vê logo depois da geração que aperfeiçoou a noção das formas clássicas, e que a partir do caminho sem volta que encontra nessa posição vai ser incorporado pelo Romantismo e vai ser no mínimo o primeiro compositor da era contemporânea.

    Mas veja como é ambíguo colocar isso em termos de objetividade/subjetividade: citando Debussy, você incorpora essa característica à leitura emprestada pelo Popper, e diz que Mozart e Bach seriam mais subjetivos porque suas músicas fluem com naturalidade, espontaneidade, sem as marcas do esforço do artifício. E que Beethoven, ao submeter o material musical a procedimentos técnicos que chegam a obstruir a sua fruição natural, seria com isso um autor de objetividade imposta. Mas fora a generalização muito taxativa, a ambigüidade nessa adjetivação é que esse aspecto também pode ser descrito ao avesso: a naturalidade de Bach e de Mozart pode ser fruto justamente do maneio objetivo com a forma, com a aplicação da técnica. E os conflitos de Beethoven entre o seu impulso criativo e a forma que o abrigará podem muito bem ser descritos como extremamente subjetivos – tão subjetivos que desde essa fórmula de materializar a idéia e o sentimento já marcam uma tensão emocional. E isso que essas descrições ainda são generalizantes demais, como eu disse!

    Daí, enfim, ser ingênuo e comprometedor apostar muito nesses termos, e é algo que o Popper a certa altura faz com alguma infelicidade.

  5. Oi Leo,

    Sobre a subjetividade aparente em Bach e Mozart ser fruto de um exaustivo domínio das técnicas musicais, você deve ter razão. Pois o próprio Mozart disse que sofreu muito para chegar naquele nível de perfeição, assim como podemos imaginar os calos nos pés de Bach viajando em busca da música de seus mestres. Um esforço intelectual insano dos dois mestres. No entanto, imagine uma analogia totalmente absurda – uma escola de atores. Creio que o que todos procuram é aperfeiçoar e aprender todas as técnicas de atuação para poderem no fim serem naturais e convicentes. Só que alguns terão sucesso, pelo carisma e veracidade inatas e outros não…aliás, nunca terão. Voltando para a música. A resposta para a subjetividade (ou naturalidade) que percebo em Bach e Mozart é que esses dois possuem uma genialidade nos poros. Um acontecimento biológico. Já Beethoven parece (com o perdão da ousadia) está mais próximo de nós.

  6. O Mozart divino e o Beethoven humano? :)

    Faz sentido, mas claro que essa característica em Beethoven não é um acidente da sua naturalidade. Primeiro porque, como eu disse, ela é uma postura estética compreensível no seu contexto. E segundo porque nós não precisamos entrar justamente na gaiola em que o Popper entrou: como alguém não nota a fluidez das variações do Op. 127, difícil até de acompanhar como variações sobre um tema? Do Op. 131? As últimas sonatas também começam a ter um formato prosaico fruto de um discurso de muita intimidade com a forma. E terceiro que mesmo as interferências radicais de Beethoven no artifício que forja a linguagem musical não têm nada a ver com falta de capacidade de ser natural, mas justamente com uma necessidade de acordar a percepção da naturalidade ameaçando-a. É um recurso estético que trabalha a expectativa em música de maneira bastante nova, e que amplia a percepção das atitudes que expressam algo em arte. Mas Beethoven ainda está bastante próximo do Classicismo pra não extrapolar isso. É diferente da “humanidade” que se possa registrar em Tchaikovsky, por exemplo.

  7. Concordo em gênero, número e grau com o Leonardo. Em minha opinião, os esforços de Beethoven são muito mais subjetivos do que objetivos: esse caráter de “transgressão” é muito marcado na sua música, um reflexo da sua personalidade. E sim, por mais que Mozart e Bach tenha imprimido seus pensamentos em suas obras, por assim dizer, eu vejo Beethoven como o primeiro expoente dessa música mais intimista. É só escutar a Apassionata, por exemplo: em todos os movimentos há a expressão de sentimentos e, sinceramente, não deixa de ser uma obra de arte menor do que qualquer sonata de Mozart. Não acho que a música seja como Popper defende, uma “solução” de problemas. Ela transcende este sentido. Por mais que a música tenha se tornado uma linguagem, ela não é estritamente racional, como uma equação. Ciência e música têm objetivos completamente diferentes, métodos completamente diferentes (método científico X linguagem musical), e acho foi nesse aspecto, nesse positivismo exagerado, que Popper mais pecou.

  8. Só temos que tomar o cuidado de não confundir esse aspecto de que eu disse – do maior peso da originalidade sobre o artista-indivíduo na era contemporânea – e a qualidade “pessoal” na música. Pois antes de Beethoven, Bach ou Mozart sempre souberam ser pessoais, sentimentais, emocionantes, etc. – não foi o Romantismo ou a Era Contemporânea que inventou os sentimentos na música.

    E acho que Popper tinha consciência do lado emocional na música, tanto que ele dizia que essa emoção advinha justamente da suplantação das dificuldades impostas pela técnica na composição de uma peça. Mas nessa sua exposição o interesse dele era enfatizar como a subjetividade, caso eleita como o bem supremo na arte, pode condenar os valores da música a uma mediocridade sem parâmetro e até sem ética.

    Essa questão foi comentada em posts à parte abordando o dualismo objetividade/subjetividade na música aqui: http://euterpe.blog.br/filosofia-da-musica/a-objetividade-e-a-subjetividade-na-musica-parte-i

  9. Hummmm… acho que entendi, Leonardo.
    Olhe, Bach e Mozart conseguiam exprimir sua pessoalidade sim (até porque, escutando algo dos dois, você sabe claramente diferenciá-los). Veja o belíssimo andante do Concerto para Piano e Orquestra nº 21 de Mozart. Só que eu realmente acho que Beethoven dá uma “guinada” nesse aspecto intimista da música, não saberia explicar como (infelizmente não sei muito sobre teoria musical). A impressão que me passa é que Mozart se preocupa muito com a forma musical, enquanto Beethoven se preocupa mais com a transmissão de ideias através da música (desculpe se eu estiver dizendo besteiras).

    “Mas nessa sua exposição o interesse dele era enfatizar como a subjetividade, caso eleita como o bem supremo na arte, pode condenar os valores da música a uma mediocridade sem parâmetro e até sem ética.”

    Acho que aí tudo se resume a uma questão de linguagem. É como na poesia: se abandonou, de certo modo, a métrica em poesias (exemplo: sonetos) e hoje temos obras poéticas que se constituem apenas em uma palavra. Acho que para Popper isso pareceria absurdo. Mas será que a arte se limita apenas a “métodos” e “métricas”? Será que não pode haver abertura para interpretações diferentes? Ou será que música se resume apenas ao que está na partitura e pronto?

    “E acho que Popper tinha consciência do lado emocional na música, tanto que ele dizia que essa emoção advinha justamente da suplantação das dificuldades impostas pela técnica na composição de uma peça.”

    Poxa, eu fico imaginando se a emoção se limita apenas a isso. Sério, seria como resolver um problema de matemática, que teria uma solução simples e direta, mas que, ao invés disso, seria escolhido o método mais longo, porque seria considerado “mais belo” por quem estivesse resolvendo. Essa ideia de “quantificar” e “sistematizar” sentimentos não me parece muito interessante, e acho que é aí que está o erro do Popper: considerar música como ciência. Não que ela não seja conhecimento, mas, como eu disse no comentário anterior, ela transcende esse sentido. O objetivo da ciência é encontrar respostas para os fenômenos. Te lanço essa pergunta: será que esse é o objetivo real da música e da arte, como um todo?

    Desculpe qualquer besteira que eu houver dito, e também pelo comentário enorme, mas esta discussão é bem interessante, hehehe!

  10. Cla,

    A discussão é muito interessante mesmo! E eu concordo com as suas reações diante dessa abordagem cientificista da música. Sobre os nossos pontos até aqui:

    – É inegável que Beethoven arrisca muito mais a extensão do nível de tensão (em um sentido técnico inclusive) na música do que muito dos seus antecessores. Concordo com você que isso pode ser chamado de subjetividade, e não à toa isso foi decididamente aproveitado pelo Romantismo como a imagem do artista subjetivo, da metáfora intocável do “eu” do artista em Beethoven, etc. Só chamei a atenção pra maneira como descrevemos isso, pra não acabarmos atribuindo a Beethoven ou a esse papel do artista na Era Contemporânea a invenção da subjetividade na arte. Mas é um tema que eu guardo pra abordar em post à parte como um dos critérios usados pra se argumentar na discussão do Beethoven clássico/romântico.

    – Sobre a questão da linguagem de que você fala – que apenas compõe parte da arte, mas não a resume totalmente (e daí o sentido de uma poesia sem metro e de poucas palavras não residir simplesmente na redução da linguagem, mas em algo muito além disso) -, não acho que o Popper estivesse ignorando isso. Só que ele chama a atenção para o fato de que uma defesa extrema da subjetividade como construtora do sentido da arte pode tornar tudo relativo, que o artista pode usar de autobiografismos como se isso fosse licença de originalidade para tornar sua obra melhor, e ainda pode buscar a originalidade pela originalidade condenando a sua arte a uma falácia orgulhosa. São coisas um pouco óbvias pra gente na teoria (embora nem tanto na prática), mas Popper sentiu a necessidade de expor esse extremo na sua época, e de quebra se dedicou a descrever, em contrapartida mesmo, como seria a concepção da objetividade na música. Eu tenho dito que nesse sentido Popper acabou jogando o mesmo jogo de extremos dos subjetivistas, e nisso, como você percebeu, ele também acabou exagerando porque a objetividade também não é suficiente pra explicar a boa arte.

    – E sobre a emoção advir da suplantação do desafio técnico que torna uma peça musical possível apenas depois de o sistema musical ser dominado, sem dúvida isso também não é o bastante pra explicar como a música compreende a emoção. Mas também acho que o Popper apenas não explorou melhor esse lado porque não era do seu interesse. O que ele quis foi descrever um critério (o objetivo) que ilumina o que para ele é a grande arte – aquela que não deve nada à construção de um mérito e uma ambição tecnicamente conquistada.

    Mas recomendo muito que você leia os dois posts seguintes dessa seriezinha sobre o Popper que o Fernando escreveu e, se o interesse da discussão sobreviver, ler os outros posts sobre objetividade e subjetividade na música. Eles contextualizam um pouco melhor o que o Popper quis fazer com essa abordagem aqui descrita, e como nós podemos e costumamos usar a objetividade e a subjetividade ao falar de música.

    Abraços e escreva mais vezes! :)

  11. Nossa, Leonardo, lendo o seu primeiro parágrafo me recordei de algumas coisas importantes sobre Beethoven. Você disse que ele “arrisca muito mais a extensão do nível de tensão (em um sentido técnico inclusive) na música do que muito dos seus antecessores.”. Realmente, Beethoven exigia, ao menos na fase final da sua produção, pianos com escalas mais amplas do que eram fabricados na época. Há também a questão de que muitos músicos reclamavam que as notas de suas obras às vezes eram “altas demais” para serem alcançadas, como em passagens do coral na 9ª sinfonia. O mestre foi de fato um divisor de águas na música, embora eu concorde plenamente que Mozart e Bach também imprimissem sua subjetividade.

    “o fato de que uma defesa extrema da subjetividade como construtora do sentido da arte pode tornar tudo relativo, que o artista pode usar de autobiografismos como se isso fosse licença de originalidade para tornar sua obra melhor, e ainda pode buscar a originalidade pela originalidade condenando a sua arte a uma falácia orgulhosa.”. Quanto a esse aspecto, concordo com o Popper.

    No mais, estou de acordo contigo! Já li as outras partes do post e vou dar uma olhada nessa sua última sugestão! Estarei por aqui sempre que puder agora, o trabalho que vocês fazem é excelente, e o nível de cordialidade nas discussões é raro de se encontrar na internet.

    Um grande abraço a todos!

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