Em 2017 registramos o tricentenário de um acontecimento único na música clássica. Na quarta-feira 17 de julho de 1717, à noite, ocorreu em Londres um evento real de grande esplendor. O rei Jorge I e a nobreza inglesa embarcaram, com pompa e opulência, em barcas abertas no rio Tâmisa em Whitehall e navegaram rio acima até Chelsea, onde eles participaram de um banquete. A comitiva incluía a Duquesa de Bolton, a Duquesa de Newcastle, a Condessa de Darlington, a Condessa de Godolphin, Madame Kilmarnock, e o Conde de Orkney. Tal foi a sensação daquele momento que a festa ainda não havia terminado às três horas da manhã. O rei voltou ao palácio de St. James por volta das quatro e meia.
De acordo com um relato do Daily Courant de 19 de julho, o primeiro jornal inglês de circulação diária:
“Uma das barcaças do rio foi utilizada pelo Musick, na qual tocavam 50 instrumentos de todos os tipos. As mais belas sinfonias, compostas especialmente para esta ocasião pelo Sr. Hendel, agradaram tanto sua Majestade que ele as mandou repetir por três vezes, nas idas e vindas”.
O embaixador prussiano em Londres, Friedrich Bonet, também relatou o evento aos seus superiores em Berlim e lhes deu mais informações sobre a música. Os instrumentos utilizados na apresentação incluíam trompetes, trompas (“cors de chasse”), oboés, fagotes, flautas e cordas, e cada uma das três apresentações durou uma hora. Estes detalhes não deixam dúvidas que a nobreza ouvira o conjunto de peças orquestrais que mais tarde seriam conhecidas como Water Music (Música Aquática) do compositor alemão, naturalizado inglês, Georg Friedrich Händel (1685-1759).
Water Music / Suíte em Ré maior (HWV 349) / Alla Hornpipe:
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E qual foi o contexto dessa celebração? Bonet observou de forma muito perspicaz que o Príncipe e a Princesa de Gales (o futuro rei Jorge II e rainha Carolina) não participaram das festividades – uma referência de que o evento teve um significado político considerável. Durante certo tempo se estabeleceu um distanciamento entre o rei e o príncipe. Em 1717, o príncipe conquistou vários seguidores influentes e foi capaz de obter apoio suficiente no Parlamento, passando a representar um sério obstáculo aos interesses dos ministros do rei. Em consequência, o monarca cancelou os planos para uma visita à sua cidade natal (Hanôver, na Alemanha) no verão e decidiu tornar-se mais presente e visível aos seus súditos do que era de costume. O evento no Tâmisa, realizado no recesso de verão do Parlamento, foi o prelúdio de três meses de atividade festiva, marcada principalmente por uma série de generosas recepções em Hampton Court.
Water Music / Suíte em Ré maior (HWV 349) / Bourrée:
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A iniciativa da Música Aquática pode ter sido uma estratégia de Händel em demostrar que, no conflito entre o monarca inglês e o Príncipe de Gales, sua lealdade primordial era dedicada ao rei – um gesto importante, pois, em Hanôver, Händel tinha sido o compositor favorito do príncipe e da princesa. Nenhum esforço para publicar a obra em sua concepção original parece ter sido feito na época da estreia – Händel possivelmente desejou manter a composição em seu arquivo pessoal – mas a música que tinha dado tanto prazer ao rei jamais poderia ser esquecida. Dentro de poucos anos seria ouvida frequentemente nas salas de concertos de Londres.
Uma lenda diz que, na realidade, Händel teria composto a Water Music para se reconciliar com Jorge I. O compositor havia conquistado uma função na corte do futuro rei quando este ainda era príncipe-eleitor na Alemanha, antes de assumir o trono britânico, como dito acima. Händel, porém, obteve uma licença para apresentar uma ópera na Inglaterra com a promessa de não demorar. Mas o artista não comprimiu o prometido, e demorou demais nas terras britânicas, pois teria caído nas graças da rainha Ana, que o adorava e lhe concedeu prêmios e pensões. Não é por menos: Händel a presenteou com belíssimas composições, como a magnífica Ode for the Birthday of Queen Anne (vídeo a seguir). A situação do compositor diante do seu patrão germânico, o então príncipe Jorge, não era das melhores, pois ele aguardava o seu retorno. O fato é que Jorge logo acabou se tornando rei da Inglaterra e Händel precisava recuperar o favoritismo do seu antigo admirador. Assim, compôs a Música Aquática e a ofereceu ao rei – tendo pleno êxito em sua estratégia. O novo monarca não só manteve todas as pensões e benefícios reais de Händel, como lhe concedeu mais honrarias.
Ode for the Birthday of Queen Anne / Ária: “Eternal source of light divine”:
Em 1725, a editora do compositor (Walsh) inseriu a abertura da Música Aquática, em Fá maior, em sua terceira coleção de aberturas de Händel – a primeira aparição da música impressa – e arranjos de vários movimentos foram incluídos numa coleção de minuetos de Händel publicados por Walsh em 1729. Já em 1734 a editora voltou a publicar um conjunto de partes orquestrais que chamou de “Celebrated Water Musick”, mas na verdade a edição continha apenas metade dos movimentos. Uma versão completa da suíte, transcrita para cravo solo, foi produzida por Walsh em 1743. A edição de Arnold de 1788 foi a primeira a apresentar todos os números na partitura completa. Essa história da publicação da obra, juntamente com a triste perda dos autógrafos originais, deixa vários aspectos da Water Music abertos a questionamentos.
Water Music / Suíte in Ré maior (HWV 349) / Minueto:
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Muitos debates tentam esclarecer como a Música Aquática foi composta. Embora o Daily Courant e o embaixador Bonet afirmem que Händel teria escrito a música especificamente para o evento sobre o rio Tâmisa de 1717, parece plausível que algumas partes da obra tenham sido compostas mais cedo para outros fins. É improvável, por exemplo, que a abertura, com sua escrita delicada para dois violinos solistas (áudio abaixo), pudesse ter sido concebida para uma apresentação ao ar livre. A Water Music possivelmente nasceu como duas suítes orquestrais independentes ou concertos escritos apenas para sopros e cordas. Em 1717 Handel simplesmente pode ter organizado estes movimentos e acrescentado os números com trompas e trompetes, que são obviamente adequados à apresentação ao ar livre.
Water Music / Suíte em Fá maior (HWV 348) / Abertura:
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A música em si proporciona um magnífico resumo de todo o estilo de Händel no período de suas primeiras óperas para a Inglaterra, sua nova pátria. Como “música de ocasião”, combinando qualidade com fascínio imediato, a Water Music não tinha rival pelo menos até que o próprio Händel produzisse a sua famosa Music for the Royal Fireworks de 1749.
Encerramos este post com um vídeo trazendo a reprodução da estreia da Música Aquática como teria acontecido há 300 anos no rio Tâmisa, em Londres.
Boa tarde, Fred!
Parabéns pelo texto! Como sempre, uma leitura muito agradável e rica em detalhes.
Você poderia indicar uma gravação da Water Music de Händel?
Grato,
Caro Elcir,
Obrigado pela mensagem!
Felizmente existem ótimas gravações da Música Aquática no mercado, como essas três:
1. The English Concert / Trevor Pinnock / Archiv (Deutsche Grammophon);
2. English Baroque Soloists / Sir John Eliot Gardiner / Philips;
3. Academy of St. Martin in the Fields / Sir Neville Marriner / Decca.
Abraços händelianos!
Salvo engano, todas essas recomendações do Frederico são de gravações com instrumentos pretensamente de época, que se autodenominam “historicamente informadas” mas tal historicidade é um tanto arbitrária, conforme algumas postagens aqui do próprio Euterpe. Imagino que maestros como Karl Richter e Otto Klemperer tenham gravado esta obra, não tenho certeza mas vale procurar. Se gravaram, foi certamente com orquestração moderna, que francamente é bem mais compatível com a grandeza e grandiosidade dos compositores barrocos.
De resto, este blog como sempre continua muito bom.
[ ]s
Prezado Cleverson,
Obrigado por acompanhar o nosso blog! Na verdade, tentei variar nas indicações. Duas delas são da categoria que você chamou de “historicamente informadas” (Pinnock e Gardiner), porém a de Marriner já se enquadra na concepção orquestral mais moderna.
Abraços!
Bom saber, vou procurar.
Um abraço igualmente.
Senhores,
Parabenizo-os pela iniciativa do blog e pelo primor do conteúdo.
Sugiro seja uma revista a seguida no Flipboard.
Saudações,
Anete Rubin
Cara Euterpe,
um pouco à parte do post, gostaria de saber se vocês pretendem continuar aquela série de posts XOW sobre O Ciclo do Anel, agora descrevendo o segundo ato d’A Valquíria.
Parabéns pelo excelente blog, abraço.
Parabéns ao Fred por mais este excelente trabalho! Aprendi bastante com a leitura.
Ao Cleverson,
Muito bem lembrada a série do Bruno Gripp sobre as interpretações “HIP” aqui no blog! No entanto, deixe-me dizer que, à parte as contextualizações necessárias sobre a proposta, há músicos “HIP” simplesmente geniais e entusiasmantes! Não creio que se deva de nenhuma maneira evitar esse movimento, mas buscá-lo com todo o interesse e entusiasmo.
Ao Ivan,
Agradeço pelo interesse e pela lembrança! Aquela série pretendia mesmo mostrar apenas o primeiro ato, mas uma série que ficou pendente aí atrás, sobre o “herói” na música, deve retomar uma cena do segundo ato e outra do terceiro ato, para matar a vontade!
Abraços aos amigos!
Sim é um movimento válido mas monopolizou todo o cenário fonográfico ou no mínimo o domina de longe… No dia que metade das interpretações voltar a ser mais “grandiosa”, sossego. :)
Um abraço.
Oi Cleverson, vc tocou, quem sabe até sem querer, num assunto muito interessante. A gente percebe claramente que vc näo gosta tanto (ou nem um pouco) das HIP (Historically Informed Performances) e reclama que elas tiraram espaco no mercado das interpretacöes anteriores, regidas por gente como K. Richter e O. Klemperer, citados por vc.
Näo vou entrar aqui numa análise das diferencas e semelhancas entre esses dois tipos de interpretacäo, mas gostaria de deixar dois pontos por considerar:
1) Os artistas que vc gosta e cita eram, nas suas respectivas épocas, a vanguarda interpretativa desse repertório e eram vistos, por boa parte do público apreciador de entäo, com as mesmas ressalvas que vc tem contra a geracäo seguinte. Da mesma forma, muita gente hoje classifica interpretacöes de Harnoncourt, Pinnock e Gardiner como mainstream, pouco ousado e meio antiquado, mesmo reconhecendo seus méritos. Näo é ótimo que haja esse conflito de geracöes, que indica que, assim como a própria música, a maneira de interpretá-las pode (ou até deve) variar com o tempo?
2) A possibilidade quase ilimitada de se conservarem registros fonográficos desde, digamos, lá por 1880, permite uma comparacäo de diversos estilos estéticos e interpretativos ao longo de décadas e séculos. Com isso, podemos curtir näo só um repertório distantíssimo no espaco e tempo, como tb discutir, e até nos irritarmos, com alguma forma de interpretacäo do mesmo. Esse privilégio é recente, quem viveu até o fim do séc.19 tinha que se contentar com a música ao vivo do lugar onde o ouvinte se encontrava. E quem näo gostar da interpretacäo de fulano pode buscar (e encontrar), sem grandes problemas, a interpretacäo de beltrano para se deliciar. O mesmo mercado que procura vender seu peixe fresco oferece tb conservas antigas, porque elas säo mais baratas pra produzir e säo, muitas vezes, best e long sellers.
Buenas Fabio, muito agradecido pelas considerações.
Sobre minha relação com as HIP, quando se trata dalguma obra descoberta recentemente que não tem ainda gravações mais pujantes, escuto de boa sim. Mas é importante que quem prefere as “conservas antigas” faça chegar essa preferência à indústria, do contrário podem parar as remasterizações… Nesse sentido, sua informação que hoje muita gente já quer alternativas soa literalmente como música para meus ouvidos. :-)
Quanto a extrema facilidade de hoje em dia em poder escolher a interpretação que se quer ouvir, é sem dúvida algo formidável. Até o século XIX, como voce disse era se contentar com os músicos presentes ou, no máximo quem morava em grandes metrópoles podia aguardar outro dia de apresentação quando viriam outros músicos e tal.
Quanto às interpretações variarem com o tempo, podem é claro, mas o ideal que espero que aconteça é que de fato nunca parem de remasterizar o que se fez antes, e o que se faz hoje seja apenas somado ao invés de “expulsar” o que havia. Quanto a se devem ou não devem variar, acho que conforme vão se adquirindo conhecimentos eles podem ser incorporados respeitando-se critérios sólidos. Nesse sentido é que as HIP tem sim lá sua validade ao tentar reconstruir o que se crê hoje fiel à história com os registros históricos que se tem até agora, em que pese entrar uma boa dose de deduções no processo.
O conhecimento e realizações tecnológicos também trazem resultados interessantes quando aplicados e nesse sentido acho válidas também iniciativas como de Wendy Carlos e as interpretações com instrumentos eletrônicos.
é isso; Um abraço.
Mas como as HIPs “expulsaram” outras gravações do mercado? Gravações antigas, especialmente dos gigantes do passado, estão mais disponíveis do que nunca hoje em dia. E se é verdade que as HIPs ganharam grande autoridade no repertório barroco e clássico, elas continuam exceções no repertório romântico e contemporâneo. Mesmo assim, não consigo sequer imaginar dilema real de alguém procurando uma gravação de Beethoven e, contrariado, ver-se incapaz de encontrar algo além de instrumentos de época – acho que isso nunca chegou a acontecer.
Em outro aspecto, se a *maneira* de interpretar nunca mais seguiu os passos do Furtwängler ou do Klemperer, é porque as concepções das HIPs, tanto para seus intérpretes como para outros, não puderam ser ignoradas. De fato, tocar Bach como se toca Brahms não faz mais sentido, há elementos estilísticos sobre os quais os intérpretes lançam consciência e reconhecem diferenças, o que é muito inspirador musicalmente. Ou seja, a esta altura, com ou sem instrumentos de época, há concepções musicais renovadas que em muito ultrapassaram essa oposição, e no fim não vejo como isso ou como essa própria oposição exclui o acesso às gravações, que continuam todas lado a lado disponíveis na Amazon.com ou no Spotify.
Abraços!
Buenas,
Os elementos que mais acho chatos nas HIPs são os mais aparentes mesmos, ex.: Orquestras nanicas demais, os andamentos numa correria só e os ambientes praticamente sem reverb. Agora, tem pelo menos um elemento que fizeram muito bem em adotar que é a ausência de vibrato nos instrumentos de cordas. Vibrato para mim é um “elemento perturbador”…
Felizmente, no caso da obra para teclado de Bach, continuam existindo tanto pianistas que a executam de modo mais romântico como que executam de modo mais “austero”. Nesse caso, gosto de ambas concepções por igual.
Um abraço.
Sou soprano, canto no Coral da Cidade de São Paulo, então, tudo que esteja relacionado ao universo da música erudita me chama atenção. Tenho uma página sobre música também (numa rede social russa), principalmente erudita, chamada Soprano-Dramático (meu timbre é mais leve que este do título, entretanto o pus por uma história pessoal, com Kirsten Flagstad envolvida). Estás de parabéns, meus incentivos. Teus textos são muito bem elaborados. Encontrei este blog ontem e vejo que terei muito o que ler aqui nas horas vagas, quando a graduação de biblioteconomia me “permitir”.
Abraços fraternais.
Cara Lígia,
Muito bom ter você por aqui. Sucesso nos estudos e projetos profissionais.
Agradecemos pela credibilidade.
Abraços,
Frederico.