19abr 2017
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Sibelius e uma catarse nacionalista: o final da Sinfonia No. 2

Ataque (1899), de Edvard Isto (1865-1905), simbolizando a resistência finlandesa à chamada "russificação" – a águia de duas cabeças da Rússia arranca o livro da lei dos braços da dama finlandesa.
Ataque (1899), de Edvard Isto (1865-1905), simbolizando a resistência finlandesa à chamada “russificação” – a águia de duas cabeças da Rússia arranca o livro da lei dos braços da dama finlandesa.

Em 1902, os finlandeses se sentiam dentro do próprio país como animais de estimação patrulhando um quintal alheio: tinham liberdade local, mas toda decisão de estado dependia do Império Russo. Sem autonomia de governo, de exército, de moeda, de religião e mesmo de idioma, quando tais elementos são sentidos como de um outro, não é difícil compreender como a própria identidade se torna comprometida.

Em 8 de março daquele ano, o compositor finlandês Jean Sibelius (1865-1957) estreava a sua Segunda Sinfonia na cidade de Helsinki com a orquestra filarmônica local. E, após três movimentos de uma obra que alternara brilho e melancolia, foi isto o que o público ouviu na transição para o quarto e último movimento:

Coloque-se no lugar do ouvinte da estreia: tempos de opressão, público tenso, e depois desse looongo crescendo, vem esse tema heroico e pujante, germinado desde o motivo de três notas que havia dado abertura à sinfonia e que serviu de genial “material genético” para toda a obra, tornando-se cada vez mais grandioso e irresistível: era tudo de que os finlandeses precisavam!

Com um final desses, a obra se tornou extremamente popular na Finlândia e foi associada à luta por independência do país: passou a ser chamada de “Sinfonia da Independência”, e assim o país encontrava nada menos do que uma voz reconhecível e desejada, capaz de expressar a identidade que buscava.

Questiona-se se era essa mesmo a intenção de Sibelius ou se foi desses exemplos em que a música é capaz de instaurar um mundo que inspira as possibilidades do nosso mundo e nos ajuda a libertar o espírito, mas uma prova de que não se tratou nem de uma obra datada nem de uma utopia é que hoje em dia ela é admirada no mundo inteiro e continua importante no seu país de origem.

Sibelius em 1904, por Albert Engström (1869-1940)
Sibelius em 1904, por Albert Engström (1869-1940)

Ontem, dia 8 de dezembro de 2015, completaram-se 150 anos do nascimento de Sibelius, um compositor cuja obra fascinante tem maravilhas deste e de outros níveis para nos mostrar. Viva Sibelius!


Este post tem 20 comentários.

20 respostas para “Sibelius e uma catarse nacionalista: o final da Sinfonia No. 2”

  1. Fui remetido à adolescência, quando conheci esta “Segunda” em vinil sob nobre regência de Barbirolli. Eu amava codas ufanistas mas, em 1970, ainda não conhecia Bruckner , Shostakovitch e Mahler. Em algum momento, sob “síndrome de Stendhal”, ouvi de joelhos o finalzão da Segunda de Sibelius. O tema é quase simples demais, porém o crescendo será sempre um marco de desenvolvimento emotivo sob os ostinatos das madeiras. E o que são as síncopes metálicas do segundo movimento?
    É controvertido o nacionalismo da mesma, tanto que os musicólogos classificam como tchaikovskianas a primeira e a segunda, preferindo a 4 e 5 de Sibelius ( 1865-1957). Ele é contemporâneo exato de R> Strauss (1864-1949), sendo ambos românticos fanáticos, talvez como nós todos somos de alguma forma.
    Carpeaux julgava Puccini e Sibelius como os caretas do séc 20, assim como muitos veem em Mendelssohn o cafona do séc. 19.
    Penso que Mahler (1860-1911), tendo sido contemporâneo na metade de Sibelius, e tendo ido mais longe sem viver a primeira metade do sec. XX, contribuiu para essa sensação de um Sibelius “datado”. Entretanto ,não podemos entender assim: há espaço para a vanguarda e para a conservação; vejamos a deliciosa “cafonice” da Primeira (1905) de Casella.
    Existe um CD da BIS sob Osmo Vanska, com obras solenes e raras do grande finlandês:: O Andante Festivo, Abertura em Lá Menor, Snofrid op 29, Rakastava op 14, Oma Maa op 92 e a Cantata para Coroação de Nicolau II (1896). Considero esta superior à similar de Glazunov. Consta que compareceram Nicolau e Alexandra à homenagem em Helsinki com entusiasmo apenas relativo. A Rússia tinha problemas maiores do que a Finlândia….(?).
    Se a Segunda Sinfonia reflete ou não emancipacionismo, importa menos, porque ela sempre representará um pináculo, nada retrô, do que chamamos de escola romântico-nacionalista.

  2. Caro Bruno,

    Obrigado pelo comentário e escreva-nos sempre nessas passagens!

    Caro Flávio,

    Excelentes referências, obrigado! Acho que a sinfonia no. 1 é ainda mais “eslava” do que a no. 2, já um pouco mais “meridional”. “Finlândia” e “Kullervo” também são grandes obras mais românticas dessa fase. Mas é na sinfonia no. 3 que Sibelius dá uma modernizada, a Ilha Quadrada, do Adriano Brandão, tem uma apresentação genial desta obra: http://ilhaquadrada.com/sibelius/sinfonia-no-3-3/. É pra mim a mais viciante das sinfonias! E em termos de modernidade eu lembraria ainda da 4 e da 7.

    De todo modo é uma fascinante jornada para acompanharmos, que curiosamente terminou cedo, com os últimos trinta anos do compositor sem uma grande obra! :O

    Grande abraço!

  3. Para mim que ainda estou adentrando no mundo da música erudita, onde posso conhecer e me aprofundar mais sobre a história da música Leonardo?

  4. Meu conflito com as sinfonias de Sibelius acalmou muito nestes últimos anos. As três primeiras sinfonias, assim como boa parte de sua obra (tive coragem de ouvir praticamente tudo), tem uma terrível falta de unidade. E a culpa não é minha. Passagens belíssimas entre transições infelizes. O começo da segunda sinfonia promete tanto, e o final descamba para o exagero. Na verdade, até sua sexta sinfonia, eu também fico entristecido com a falta de habilidade com temas tão ricos. Felizmente tive o prazer de me apaixonar pela sua quarta sinfonia através da pintura do inglês Turner. O primeiro movimento é pura perfeição pictórica, um tratado sobre cores e sombras que nem mesmo Debussy alcançou. A quarta sinfonia seria uma obra-prima se Sibelius a tivesse escrito como fez com sua sétima sinfonia. Não gosto de frases de efeito e sei da injustiça que vou cometer, mas tudo que Sibelius escreveu foi para poder chegar na sétima sinfonia. A melhor sinfonia do século XX. Deve ter sido terrível para o compositor saber que não poderia fazer nada melhor que aquilo. Décadas de desassossego.

  5. Caro Bruno,

    A pergunta é tão essencial que agradeço por você tê-la feito! Pensando-se em indicações, preparamos uma página aqui no blog com alguns sites e também livros empolgantes de se conferir: http://euterpe.blog.br/livros-e-sites.

    Mas acho que para iniciar uma relação significativa com a música clássica, mais do que conhecimento “histórico”, vale a pena procurar um conhecimento “artístico” das obras que o cativam. E com isso eu não quero soar subjetivo e abstrato: conhecimento artístico da música é saber acompanhar a “estória” contada por ela, quando o compositor nos apresenta certos temas e para onde nos leva com eles. Acho, afinal, que foi mais para que acompanhássemos isso do que para sabermos a história dos séculos que cada compositor fez música!

    Nesse sentido, duas coisas ajudam bastante a aprendermos a ser o interlocutor da música: a seção “Análise de obra” aqui no blog (http://euterpe.blog.br/category/analise-de-obra), com posts como este, por exemplo: http://euterpe.blog.br/analise-de-obra/dvorak-vodnik-%E2%80%9Co-espirito-das-aguas%E2%80%9D-op-107, e o livro “Como Ouvir (e Entender) Música”, de Aaron Copland (a última edição da É Realizações traz um CD). Também pretendemos fazer uma série de podcasts sobre essa mesma questão, com os roteiros dos dois primeiros programas já esboçados, mas agora só ano que vem.

    No mais, se você realmente se entusiasmar com panoramas apaixonados e diversificados de obras musicais no decorrer da história, recomendo a empolgante Ilha Quadrada, do Adriano Brandão: http://www.ilhaquadrada.com.br/.

    E claro, ter amigos que recomendam obras também ajuda bastante, e pra isso estamos às ordens! Escreva-nos mais vezes!

    Caro Bosco,

    Muito interessante a sua relação com a música de Sibelius! A minha obra favorita dele é de longe o concerto para violino, e acho curioso como não dá para encontrar nada parecido no que ele próprio escreveu além dessa obra. O que acha dela?

    Abraços!

  6. O concerto para violino nem parece ser de Sibelius, pelas razões do meu comentário anterior. Um ponto fora da sua incansável busca por uma linguagem pessoal. E ele conseguiu essa linguagem , aos trancos e barrancos, ele conseguiu. Está entre os grandes.

    Voltando ao concerto, sua perfeição formal deve ter atraído Sibelius a seguir esse caminho – beleza estética mas sem originalidade e avanço na linguagem. Ele preferiu o caminho mais difícil; como já disse, pintando quadros a la Turner.

  7. O Concerto para violino de Sibelius é em estilo romântico do sec XIX. Não estaria tão datado porquanto é de 1905. Muitas vezes temos de esquecer a época dum artista, principalmente a data de sua morte quando teve improdutivos os últimos anos, o que também é o caso de Rossini. Não tenho problema em apreciar uma peça que esteja deslocada de seu “zeitgeist”, desde que seja boa, ainda que retrógrada se passarmos a trena das escolas. Claro que um visionário (como Turner) merece mais pontuação do que seus contemporâneos conservadores. E o Concerto de Tchaikovsky é ,por esta e outras razões a meu ver, superior ao de Sibelius. Tal concerto em pauta ,embora agradabilíssimo, não me faz sentir qualquer atmosfera nórdica. O ritmo “latino” do terceiro movimento fez minha mulher perguntar (desculpa, Leo!) se aquilo era música do Zorro….Pode haver um vínculo estilístico, espiritual entre Espanha e Finlândia? Acho que também devemos entender que os autores nacionalistas podem escrever em espírito supranacional ou cosmopolita. Se na Finlândia ao menos tivesse havido ciganos!!!Surpreendente esta bagunça geográfica que por vezes eu sinto em música nórdica. Ouçam a bela Overture Suomenlina op 30 de Uuno Klami (1900-1961) e me digam se não parece música espanhola !

  8. Desculpem a insistência, mas, no embalo de Sibelius, penso que a mais esquecida é sua música para piano. Não sei colar links: para quem interessar, recomendo “Ten piano pieces op 24”. Música da passagem de século, invoca Schumann ,Liszt, Chopin, com pitadinha de Grieg, sem brumas bálticas,contudo tem luz própria , principalmente sob Eric Tawastjerna.
    Possuo integral para piano de todos os compositores “pianísticos”. Mesmo assim, minha filha , pouco chegada,talvez por overdose passiva, quando ouve a primeira dessas peças (Improptu em sol menor), fala “eu adoro isto”.
    Existe o op 24 no youtube com pianista oriental.

  9. Nossa, eu não acho o concerto para violino do Sibelius nada oitocentista, ainda mais se comparado ao concerto de Tchaikovsky (que é exuberantemente oitocentista e uma obra cativante, mas que também tem as suas limitações, como no desenvolvimento do primeiro movimento). O do Sibelius é cheio de temas angulosos, barulhos, rompantes, saltos e passagens de bravura (a cadenza participa da estrutura do primeiro movimento como nunca se viu), e de uma beleza em geral nada óbvia. A orquestração também é bem interessante, como em passagens misteriosas na escrita para os sopros, etc. Um belíssimo vídeo que talvez deixe essas coisas mais evidentes (por não ser tão antigo como as grandes gravações do Heifetz ou do Ferras) é este, que o Bruno Gripp descobriu recentemente: https://www.youtube.com/watch?v=n4aOgRjqHrc. Tem uns ruídos esquisitos aqui e ali, mas ainda vale muitíssimo a pena.

    No mais, obrigado pelas riquíssimas indicações, Flavio!

    E obrigado também ao Monteiro pelo belíssimo e imperdível flashmob de Natal!

  10. Caro Leo,

    A questão de vanguarda versus conservadorismo é insolúvel. No post de Bruno sobre Boulez, Bosco acresceu um texto de Huxley. A propósito , lembrei uma frase de Mahler mais ou menos assim: ” Criar um idioma novo não é tão difícil quanto reescrever a Beleza!”. Vejamos que Bach e Mozart não fundaram novas escolas.
    Sobre Sibelius “oitocentista”, eu perguntaria o que é exatamente música novecentista? Alguns consideram R.Strauss pesadíssimo e moderno. Suas ” Quatro Últimas Canções” são de um romantismo INAUDITO que pode parecer oitocentista a alguns que não esquecem os rumos da arte contemporânea em meados do sec XX. Porém, o que seria de nós sem a música “neo-romântica” de R.Strauss, Mahler e outros? Sibelius, inclusive!
    Quanto a sinfonias, percebo que muitos torcem o nariz para Prokófiev e Shostakóvitch por causa de sua “cafonice”devida á censura do jdanovismo. Julgo falácia isto, mas, deixando para lá, podemos rejeitar as seis deliciosas sinfonias de Martinu, a meio caminho entre a tradição e a ousadia?
    Desta forma, o concerto de Sibelius, em 1905, não poderia deixar de estar com uma perna nos oitocentos e outra nos novecentos.
    Muitos dizem que o séc xIX terminou em 1918. Neste momento,porém, Schoenberg já fazia misérias. Esta questão dá pano para manga!. Não importa que Haydn , em 1805, ainda era genialmente setecentista, não é mesmo?

  11. Não sei explicar, mas redescobri a música de Sibelius recentemente e, sinceramente, é o que mais me agrada o espírito.

    Um abraço por tabela pro Amâncio!

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