19abr 2017
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70 anos de Martha Argerich

Martha Argerich nos anos 70

A pianista argentina Martha Argerich (1941-) completa hoje, 5 de junho de 2011, 70 anos. Quem diria… Se existissem vereditos no assunto, ninguém teria medo de reconhecê-la como a mais forte candidata à maior pianista da atualidade, e isso merece que falemos ao menos rapidamente do seu estilo e de algumas de suas melhores gravações.

Êxitos e influências

Seus maiores êxitos foram conquistados ainda jovem: em 1957, com 16 anos, ela venceu dois dos concursos de piano mais tradicionais da Europa, o Concurso Internacional de Música de Genebra e o Concurso Internacional Ferruccio Busoni, em um intervalo de apenas três semanas. Em 1965, aos 24, venceu o Concurso Internacional Frederic Chopin em Varsóvia (deixando nosso Arthur Moreira Lima em segundo lugar naquele ano), talvez o grande marco da sua proeminência internacional. Desde então, se estabeleceu como a artista de renome que conhecemos hoje.

Martha Argerich nos anos 70

Entre os pianistas de sua geração – como Alfred Brendel, Maurizio Pollini, Vladimir Ashkenazy, Daniel Barenboim e mesmo nosso Nelson Freire -, ela parece aquela que melhor representa algumas das qualidades que as gerações atuais de pianistas virtuoses procuram desenvolver: um toque ágil e claro, cuja expressividade muitas vezes se dá antes pela procura por diversidade de timbres do que propriamente pelo volume, e contrastes – esses sim – incisivos, um spin arrebatador e andamentos extremos. Acredito que essa atualidade de sua personalidade, além de ser fruto de uma feliz adequação à linguagem e às expectativas do nosso tempo, é também uma influência que ela própria passou a representar com o decorrer dos anos. Não por acaso, com características tão modernas que facilmente tornam outros pianistas ultrapassados e chatos, ela é a paixão platônica de muitos diletantes imberbes.

Sua maior influência é certamente o pianista austríaco Friedrich Gulda, seu professor por mais de um ano ainda nos anos 50, e o italiano Arturo Benedetti Michelangeli, a quem procurou nos anos 60 para algumas aulas em um momento de crise artística pessoal. Nos anos 80, reconheceu que se sentia muito sozinha no palco e desde então praticamente deixou de se apresentar em público como pianista solo, passando a ser acompanhada por outros solistas em música de câmara ou orquestras em concertos.

E pra valer a conversa, cinco gravações recomendadas:

1. Liszt: Sonata para Piano em Si menor & Rapsódia Húngara No. 6 em Ré bemol maior
Schumann: Sonata para Piano No. 2 em Sol menor Op. 22
Brahms: 2 Rapsódias Op. 79
1971 (Deutsche Grammophon)

CD da série Galleria, bagatela da Deutsche Grammophon

A grande Sonata em Si menor de Liszt parece ter sido escrita pra Martha: com a liberdade de um domínio técnico absoluto, ela uniu os arcos dessa obra monumental em uma interpretação sólida, redonda, eloquente. Não falta ritmo na primeira exposição sincopada do tema que domina toda a obra, não falta intimidade na seção correspondente ao andamento lento, não falta clareza nem convicção à fuga, e o principal: não falta verve de ferver o sangue nessa gravação que em plenos anos 70 se tornou antológica. Gravação obrigatória e complementar à de Emil Gilels. De quebra, a Rapsódia Húngara No. 6 de Liszt pra descontrair, a irregular Sonata para Piano No. 2 de Schumann e as duas viscerais rapsódias de Brahms – compositor que ela gravou tão pouco.

Um trecho da primeira parte da Sonata em Si menor de Liszt, em que os limites do virtuosismo parecem antes um limite físico do som distinguível do que um limite da capacidade da Martha:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/06/Liszt-Piano-Sonata-in-B-minor-S.-178-1.-Grandioso-excerpt-Martha-Argerich-1971.mp3|titles=Liszt – Piano Sonata in B minor S. 178 – 1. Grandioso – excerpt (Martha Argerich – 1971)]

2. Chopin: Prelúdios, 3 Mazurkas Op. 59 & Scherzo No. 3 em Dó sustenido menor Op. 39
1961-1977 (Deutsche Grammophon)

CD dedicado a Chopin

Martha raramente ousou um repertório inusitado, preferindo enfrentar a via tradicional do repertório pianístico padrão. Nessa prerrogativa, é uma especialista em Chopin. Essas gravações lançadas em 1977 mostraram um Chopin muito diferente do habitual, semelhante talvez apenas ao de Sviatoslav Richter em alguns aspectos: com uma sonoridade ainda algo impressionista em alguns momentos, mas sempre rápido, enérgico, incisivo. Assim a integral dos prelúdios – tanto os vinte e quatro do Op. 28, como o Op. 45 e o Op. póstumo – se tornou uma controversa referência, especialmente pela rapidez dos andamentos. O resultado, além da novidade, reforça a unidade do conjunto e rende momentos selvagens como este (do Prelúdio Op. 28 No. 18):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/06/Chopin-Prelude-Op.-28-No.-18-in-F-minor-Allegro-molto-Martha-Argerich-1977.mp3|titles=Chopin – Prelude Op. 28 No. 18 in F minor – Allegro molto (Martha Argerich – 1977)]

As três mazurkas Op. 59 – gravadas em 1967 – e o Scherzo No. 3 – em 1961 – seguem essa mesma personalidade inovadora e foram executadas e gravadas por ela ainda muitas vezes antes e depois das versões deste CD.

3. Ravel: Concerto para Piano em Sol maior, Gaspard de la Nuit & Sonatine
com Claudio Abbado & Filarmônica de Berlim
1967-1975 (Deutsche Grammophon)

Outro CD da série Galleria da Deutsche Grammophon

Por mais que tenham sido poucas, é impossível não pensar nas aulas de Martha com Arturo Benedetti Michelangeli ao ouvir seu Ravel: a técnica pra uma sonoridade contemplativa, mas entrecortada por digressões e intervenções das influências sempre diversas que Ravel incorporava em suas obras, teve em Michelangeli um expoente, tanto pela sua própria gravação do Concerto para Piano em Sol maior com Sergiu Celibidache, como por sua interpretação referencial de Debussy, compositor francês análogo à técnica pianística de Ravel no que se convenciona chamar de Impressionismo musical. Nesse território desafiador, Martha produziu um de seus álbuns mais maduros. O concerto para piano soa contagiante, como deve ser, com a multiplicidade de cores e de ritmos dos seus movimentos externos, de influência basca, espanhola e jazzística, e a simplicidade desconcertante do movimento central. Martha, que não tem o volume de som de um Gilels ou de um Horowitz, cria sua atmosfera expressiva pela riqueza de nuances. Isso e sua capacidade técnica que parece sem limites renderam igualmente uma Gaspard de la Nuit impressionante. De quebra, o álbum traz a irônica Sonatine do compositor. Martha ainda gravou La Valse para dois pianos com Nelson Freire e as Valses nobles et sentimentales de Ravel, lançadas em outros álbuns.

Trecho do segundo movimento do concerto para piano:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/06/Ravel-Piano-Concerto-in-G-major-2.-Adagio-assai-excerpt-M.-Argerich-C.-Abbado-BPO-1967.mp3|titles=Ravel – Piano Concerto in G major – 2. Adagio assai – excerpt (M. Argerich & C. Abbado – BPO – 1967)]

4. J. S. Bach: Toccata em Fá sustenido menor BWV 910, Partita No. 2 em Dó menor BWV 826 & Suíte Inglesa No. 3 em Lá menor BWV 807
1980 (Deutsche Grammophon)

CD da série The Originals da Deutsche Grammophon

Nas convocações dos nossos 11 álbuns favoritos no ano passado, acompanhando a lista de Dunga para a Copa do Mundo, Bruno Gripp elegeu este um dos seus CDs favoritos. E eu só não o elegi na minha lista pra não ser repetitivo. Em meio a citações obsessivas a Glenn Gould de um lado ou a Dinu Lipatti de outro, o Bach da Martha é uma surpresa, e só não é mais promovido porque este CDzinho foi uma de suas únicas gravações do compositor. Ela acompanhou mais recentemete Mischa Maisky em transcrições para violoncelo das sonatas para viola da gamba e cravo, e voltou a tocar a Partita No. 2, presente neste CD, no Carnegie Hall em 2000 e no Verbier Festival em 2008. Mas o que há nessas interpretações – uma agilidade inacreditável que explora uma sonoridade toda staccata em emulação ao cravo, instrumento original das obras, e a velha riqueza de nuances que pinta de uma cor cada plano sonoro (que em Bach são muitos) – nos faz, como Bruno já dizia no seu post, implorar pra que saiam mais interpretações de Bach. Essa tal agilidade se prova mais pertinente quando ouvimos como ela articula os ornamentos no estilo do fraseado barroco (trecho da Courante, terceira peça da Partita No. 2):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/06/J.-S.-Bach-Partita-No.-2-in-C-minor-BWV-826-3.-Courante-excerpt-Martha-Argerich-1979.mp3|titles=J. S. Bach – Partita No. 2 in C minor BWV 826 – 3. Courante – excerpt (Martha Argerich – 1979)]

E como é empolgante quando, com as vozes da música em corrida, consegue deixar claro quando uma se sobrepõe à outra (trecho do Capriccio, sexta e última peça da Partita No. 2):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/06/J.-S.-Bach-Partita-No.-2-in-C-minor-BWV-826-6.-Capriccio-excerpt-Martha-Argerich-1979.mp3|titles=J. S. Bach – Partita No. 2 in C minor BWV 826 – 6. Capriccio – excerpt (Martha Argerich – 1979)]

5. Prokofiev: Concerto para Piano No. 1 em Ré bemol maior Op. 10 & Concerto para Piano No. 3 em Dó maior Op. 26
Bartók: Concerto para Piano No. 3 em Mi maior Sz. 119
com Charles Dutoit & Orchestre Symphonique de Montréal
1997 (EMI Classics)

CD de 1997 da EMI Classics

O Concerto para Piano No. 3 de Prokofiev é uma das obras mais difíceis já escritas para piano. Mas Martha reconhecidamente não o considera tão difícil assim… Ela já o havia gravado com Abbado no fim dos anos 60, e voltou a ele neste CD de 1997. Alguns a criticam de, em anos mais recentes, não apresentar a mesma bravura da juventude, o que não é uma crítica ao seu condicionamento físico, que continua seguro, mas talvez à sua “química musical” de hoje em dia. Este CD, em contraposição a isso, prova o quanto Martha ainda tem a oferecer – e nem faria sentido supor o contrário. Além do entusiasmo inconfundível que imprime nos concertos de Prokofiev e de Bartók, há aqui uma irreverência, uma intimidade com o virtuosismo que as obras exigem, que rende uma série de momentos surpreendentes de pura naturalidade, semelhantes mesmo a improvisos. Seu entendimento com Charles Dutoit é de longa data: foram casados entre 1969 e 1973 e passavam horas discutindo música em meio a partituras. O maneirismo a que se dão direito nessas gravações legitima a interpretação da modernidade dessas obras. Um notório ponto negativo, segundo o próprio David Hurwitz comentando o outro álbum da EMI fruto desse encontro, é que a gravação do piano no trabalho da engenharia de som parece não estar em um volume muito bom em relação à orquestra… Mas pelos inéditos concertos no. 1 de Prokofiev e no. 3 de Bartók na discografia da Martha este álbum continua sendo essencial.

Trecho do primeiro movimento do Concerto para Piano No. 3 de Prokofiev:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/06/Prokofiev-Piano-Concerto-No.-3-in-C-major-Op.-26-1.-Andante-Allegro-excerpt-M.-Argerich-C.-Dutoit-Orch.-Symph.-de-Montréal-1997.mp3|titles=Prokofiev – Piano Concerto No. 3 in C major Op. 26 – 1. Andante – Allegro – excerpt (M. Argerich & C. Dutoit – Orch. Symph. de Montréal – 1997)]

Poderíamos acrescentar seu Rachmaninoff, seu Schumann, suas colaborações com Rostropovich, Kremer e Maisky, mas que esses cinco álbuns – um The Essential Martha – já entusiasmem o seu reconhecimento e mesmo a divulguem e incentivem entre os desavisados.


Este post tem 9 comentários.

9 respostas para “70 anos de Martha Argerich”

  1. Por quê as maiores pianistas conseguem ser tão talentosas quanto lindas?? Até parece que uma coisa tem a ver com outra! ^^

  2. Nem tanto, Caio, nem tanto.Vide Tatiana Nikolayeva ou Annie Fischer. Agora eu gostaria de fazer um pedido pra Leonardo. Se um dia você puder entrevistar essa mulher, pergunte a ela por quê, por quê, por que ela nunca gravou nenhumazinha sequer das 32 sonatas de Beethoven. Ou eu estou enganado?

  3. Caio,

    Realmente, como diz o Ivan, esse parece ser um fenômeno mais recente, muito influenciado pelo novo apelo das gravadoras, mas que tem na Martha e, mais atrás ainda, na Eileen Joyce já importantes prenunciadoras.

    E Ivan,

    Meu Deus, você tocou em um ponto fundamental: SEMPRE ME PERGUNTEI A MESMA COISA. E ela tanto parece gostar muito de Beethoven como alegou ter tido uma redescoberta dele em anos mais recentes, daí ter gravado toda a obra pra violino e piano com Kremer e toda a obra pra cello e piano com Maisky. Fora os três primeiros concertos pra piano mais de uma vez (uma delas até regendo a orquestra ao mesmo tempo, no 2) e o concerto “tríplice” também diversas vezes nos últimos anos, especialmente com os irmãos Capuçon.

    Mas até que ela já chegou a ter gravada uma ou outra sonata de Beethoven: a No. 7 por três vezes, a 21, e a 28 por duas vezes. A grande maioria são gravações piratas de concertos ao vivo ou transmissões de rádio registradas. Mas a 7 saiu em VHS e em alguns CDs obscuros, a partir de um recital filmado em Tóquio em 1976 (http://www.argerich.jp/Japan_76-E.htm), e a 28 foi lançada por outra gravadora obscura de um recital em Veneza em 1969 (http://www.argerich.jp/FED-070-E.htm). São dessas coisas que é preciso fuçar fundo pra encontrar.

    Uma discografia dela pode ser conferida aqui: http://www.argerich.jp/Recordings_E.htm

  4. Fantástico Leonardo! Eu nunca iria saber de uma coisa dessas. Sou apaixonado pela sua versão (com Kremer) da 4ª Sonata para Violino de Beethoven, e seu Concerto para Piano Nº 2 com a Mahler Chamber Orquestra foi por muito tempo minha versão favorita.

    E ela gravou a Sonata Nº 7 três vezes? É inacreditável! Essa sonata não é deste planeta. Li uma vez que Beethoven se irritara com o estrondoso sucesso da Moonlight, e chegou a afirmar “já escrevi outras muito melhores”, o que é, em verdade, uma frase um tanto exagerada do mestre. Mas eu digo que, pelo que eu conheço de Beethoven, a Nº 7 sem dúvida estaria na sua lista das “melhores”.

    Rapaz, você já estudou essa sonata? É fascinante do primeiro ao último compasso, e o segundo movimento é de uma sofisticação (não me pergunte o que isso significa) que a coloca acima de tudo que já ouvi da literatura pianística até a sua data de composição. Mas a Martita que me perdoe, eu duvido que ela supere Kovacevich nessas gravações.

  5. Ivan,

    Beethoven parecia mesmo ter um gosto esquisito em relação às suas próprias obras, mas talvez fosse pra chamar a atenção praquelas que ficavam sombreadas pela popularidade de outras. A certa altura sabe qual era a sonata pra piano favorita dele? A 24. E há a famosa anedota dele resmungando porque o público adorou a Sétima Sinfonia e foi menos caloroso com a Oitava, ambas apresentadas no mesmo concerto – expressou isso chegando a dizer que preferia a Oitava se eu não me engano!

    E a Sonata pra piano No. 7 é mesmo um grande projeto realizado. O andamento lento é uma das músicas mais densas de toda a obra de Beethoven, e já evoca uma dimensão que vai bem além do que era confiado ao repertório do piano solo até então. O minueto também é muito bonito e o Rondó faz música a partir de um gesto displicente, é um milagre. Tenho na mão apenas um segundo volume das sonatas dele, então fiquei com ele mesmo e só estudei a 19 e a 20, e já “li com os dedos” várias outras da 16 pra frente. Também já dei uma olhada na 1, na 10 e na 14, conforme o meu período irregular de estudo do piano possibilitou, hoje ainda por cima suspenso.

    Pra finalizar, o YouTube mostra um pouco desses Beethovens da Martha Argerich!

    A 7: http://www.youtube.com/watch?v=M-gB-tkQUtk

    A 21 “Waldstein”: http://www.youtube.com/watch?v=ffesxg5K5NQ

    E a 28: http://www.youtube.com/watch?v=I-Fp0SEHhLU

    \o/

  6. Caramba, esta mujer toca demais. Ouvi só um pedaço da Sonata Nº 7 e isso pra mim já basta. Vou ver se descubro o e-mail dela, e pedir pra ela gravar logo toda a obra pianística de Beethoven. E se ela quiser reger algumas sinfonias ou fazer o papel de Leonora na ópera Fidelio eu darei a maior força.

  7. sobre Martha Argerich eu so posso dizer tudo que ela interpreta e da melhor qualidade adoro assistir seus con certos gran de pianista fantastica pra mim a melhor dessa geracâo

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