19abr 2017
A+ A-
, ,

Concerto de Ano Novo em Euterpe

Wilhelm Gause: Baile no Palácio Imperial de Viena
Wilhelm Gause: Baile no Palácio Imperial de Viena

Pessoal, feliz ano novo! Em comemoração ao ano que se inicia, Euterpe oferece aos seus leitores um vibrante post-concerto de ano novo, inspirado no tradicional concerto que acontece em Viena sempre no primeiro dia do ano. Mas, como aqui no blog nós sempre misturamos um pouco de informação e teoria junto com a música, vamos aproveitar a oportunidade e dar uma olhada na Forma Seccionada.

As formas da música clássica

Para que o ouvinte possa acompanhar o discurso musical, toda música clássica segue uma forma pré-estabelecida, um script tipo receita de bolo que todo ouvinte deve (ou deveria) conhecer. São cinco formas básicas, quatro delas já devidamente apresentadas aqui no blog: a forma-sonata (e sua irmã, a forma-sonata de concerto), o tema com variações, a fuga e a forma livre (ou “a forma que segue uma historinha“). Faltava mesmo só um post para a forma mais simples de todas…

E o que é a forma seccionada?

Como o próprio nome indica, é uma forma baseada em seções independentes e contrastantes. Cada seção da música é identificada por uma letra, e assim surgem os AB, ABA, ABACA, ABACABA…

Por ser uma forma bastante simples, ela é muito utilizada em danças. Como por exemplo na Dança Húngara nº5 de Johannes Brahms, que segue o formato ABA:

Brahms publicou uma série de dez danças húngaras em 1869, e outras onze foram impressas somente em 1880. Originalmente as danças foram escritas para piano a quatro mãos; Brahms orquestrou as danças nºs 1, 3 e 10, e as demais foram orquestradas por vários outros compositores, incluindo até mesmo Dvorák! A orquestração mais famosa da dança nº 5 é de Martin Schmeling (1864-1943).

Das 21 danças, apenas 3 são composições originais de Brahms (nºs 11, 14 e 16); todas as demais são inspiradas em melodias folclóricas ciganas ou canções húngaras. A melodia da dança nº5, por exemplo, vem da csárdás Bártfai emlék (Recordações de Bartfa) de Béla Kéler, como você mesmo pode conferir neste link, a 1:29 do vídeo.

O baile não pode parar!

Viena possui uma longa tradição em grandes bailes. Tanto que, no século XVIII, havia até um cargo específico na corte – o de Compositor de Câmara Imperial – cuja principal obrigação era a de escrever danças para os bailes do Palácio Imperial. Wolfgang Amadeus Mozart havia escrito uma centena de danças antes de assumir o cargo em 1787; nos quatro anos seguintes, ele escreveria mais uma centena.

Todas as suas 200 danças são peças curtinhas, de um a três minutos cada. As Seis Danças Alemãs K.509 não fogem à regra: cada uma delas tem seus dois minutinhos distribuídos numa forma ABAB bem simples. A obra, porém, tem um diferencial em relação às demais: as seis danças estão interligadas, sem pausa para os bailantes relaxarem. Confira na nossa vídeo-análise:

Diferente do minueto, uma dança de origem nobre, a dança alemã surgiu e se tornou popular nas classes sociais mais baixas, sendo logo adotada também pela nobreza. De ritmo mais rápido, seus passos exigiam um maior contato físico entre o par dançante, então você pode até imaginar os nobres mais idosos reclamando “dessa coisa imoral”…

A dança alemã evoluiu para a valsa vienense, explodindo uma pequena revolução na história da dança de salão. Antes dançava-se olhando para fora, coordenando os passos com os demais casais dançantes, tornando toda a dança um evento social por natureza. A valsa foi a primeira dança onde o casal dançava olhando face-a-face, virados um para o outro, girando independentes dos demais. Lord Byron, o famoso poeta inglês, escreveu até um poema criticando aquela nova dança escandalosa e anti-social (veja aqui, em inglês).

A origem da família Strauss

Enfim, a nova dança trouxe riqueza a quem soube aproveitar aquele novo nicho de mercado. Em 1819, o jovem Joseph Lanner convidou o mais jovem ainda Johann Strauss I (então com 15 anos) para, com mais dois amigos, fundar o Quarteto Lanner, especializado em tocar valsas vienenses e danças alemãs em bailes. Logo logo o quarteto se tornou uma pequena orquestra, e quando esta já não dava mais conta da agenda cheia de apresentações, uma segunda orquestra foi fundada sob o comando de Strauss. Tanto Lanner quanto Strauss compunham valsas para suas orquestras, e em pouco tempo os amigos se tornaram rivais, disputando apresentações e sucesso.

Três filhos de Strauss I se tornaram compositores e extenderam o legado do pai: Johann Strauss Jr, Josef Strauss e Eduard Strauss. Com a morte do pai, Strauss Jr assumiu a orquestra e continuou com a agenda de apresentações e viagens pela Europa.

Tal como as Seis Danças Alemãs K.509 de Mozart, as valsas da família Strauss são formadas por várias valsas seguidas, tocadas sem interrupção. Por exemplo, a próxima peça do nosso post-concerto, a valsa Conto dos Bosques de Viena Op.325 de Johann Strauss Jr, é formada por uma longa introdução, seguida de cinco valsas e uma coda. Assista:

A primeira valsa possui apenas uma única seção, com um tema; as valsas nºs 2 e 4 são em formato AB, e as valsas nºs 3 e 5 são em formato ABA. A longa coda junta temas das cinco valsas, mas acredito que o que mais chama atenção são os solos de cítara, presentes no começo e no final da obra.

Franz von Defregger: Der Zitherspieler (O Citarista)
Franz von Defregger: Der Zitherspieler (O Citarista)

A cítara é um instrumento típico da região entre a Áustria, Hungria, sul da Alemanha, alpes, etc. Não é um instrumento comum em orquestras sinfônicas, e por isso Strauss Jr escreveu uma versão da obra onde os solos de cítara são distribuídos por um pequeno grupo de cordas solistas. Se você ficou curioso em ver o instrumento sendo tocado, assista o vídeo deste link.

O sucesso de Strauss Jr

Após assumir a orquestra do pai, Strauss Jr continuou a extensa agenda de concertos e viagens pela Europa, incluindo vários tours pela Rússia. Em 1872, ele e sua orquestra chegaram a fazer um tour até pelos Estados Unidos, com grande sucesso.

Strauss Jr era tão associado à valsa e à Viena que, em 1889, prestes a visitar o imperador da Alemanha em Berlim, o imperador da Áustria encomendou ao compositor uma valsa como forma de celebrar a amizade entre os dois países. O título “Valsa do Imperador” foi sugerido pelo editor de Strauss Jr, Fritz Simrock, pois poderia se referir a qualquer um dos dois imperadores e assim, o outro não se sentiria menosprezado.

A Valsa do Imperador Op.437 é formada por uma introdução, quatro valsas e uma coda. Das quatro valsas, a primeira possui uma única seção (tema); as valsas nºs 2 e 3 são em formato AB, e a valsa nº4 é em ABA.

Strauss Jr e Brahms em Viena (foto de 1894)
Strauss Jr e Brahms em Viena (foto de 1894)

O Danúbio Azul

O compositor também era admirado por outros compositores famosos, como Richard Wagner e Richard Strauss (que, apesar do nome, não era da família dos compositores de valsas). Reza a lenda que, certa vez, Johannes Brahms foi abordado por uma fã pedindo um autógrafo. Ora, o costume nestes casos era o compositor escrever uns poucos compassos de sua música mais famosa e depois assinar seu nome; em vez disso, Brahms escreveu a melodia do Danúbio Azul e assinou: “Infelizmente, NÃO é de … Johannes Brahms”. A historinha faz ainda mais sentido quando procuramos saber a identidade da fã de Brahms: este livro a identifica como a última esposa de Strauss Jr, Adele Strauss; este outro diz que era a enteada de Strauss Jr, Alice von Meyszner-Strauss.

O Danúbio Azul Op.314 teve sua estréia em 1867 numa versão para coral, mas conquistou fama e sucesso numa adaptação de Strauss Jr para orquestra. O título em alemão An der schönen, blauen Donau poderia ser traduzido como “No belo, azul Danúbio”, e até hoje os vienenses e austríacos reconhecem na melodia um certo orgulho patriótico, como um hino nacional extra-oficial. A obra é formada por uma introdução, cinco valsas e uma coda, sendo a valsa nº 2 em formato ABA e as demais em formato AB.

O Concerto de Ano Novo em Viena

Após a morte de Strauss Jr em 1899, alguns anos ainda se passaram antes dos vienenses reconhecem a importância do compositor. Em 1921, uma estátua de bronze foi inaugurada no Parque da Cidade, com Arthur Nikisch regendo um concerto comemorativo com obras do compositor. O primeiro concerto de Ano Novo aconteceu em 31 de dezembro de 1939 infelizmente com propósitos pouco nobres: angariar fundos para a guerra que havia acabado de iniciar (na época, a Áustria estava anexada à Alemanha nazista). A partir de 1941, os concertos passaram a acontecer anualmente sempre na manhã de 1º de janeiro exclusivamente com obras da família Strauss, e só nos últimos anos obras de outros compositores passaram a ser incluídas no programa. Desde 1987, cada ano um regente diferente é convidado a conduzir a orquestra; o concerto de hoje de manhã, por exemplo, foi dirigido por Zubin Mehta. No ano passado (2014) a responsabilidade caiu sobre Daniel Barenboim; o vídeo que encerra o post mostra o “bis” daquele concerto, com a orquestra tocando a Marcha Radetzky, a obra mais famosa de Johann Strauss pai.

[kad_youtube url=”https://www.youtube.com/watch?v=2ORHVroiWHk” maxwidth=”600″]

E assim, eu (Amancio) e toda a equipe de Euterpe desejamos a todos um feliz ano novo! Que a música reine nesse ano que se inicia!


Este post tem 11 comentários.

11 respostas para “Concerto de Ano Novo em Euterpe”

  1. Primeiramente,desejo-lhes um Feliz Ano Novo e gostaria de parabenizar as análises e informações em geral.Comecei a acompanhar o blog recentemente,e esse é um dos melhores,senão o melhor blog;Vi tambem que os que Publicam e que Coordenam o Blog tem um grande conhecimento sobre Música,Continuem com esse grande trabalho.Fico muito alegre por ter um Blog de Música Erudita,pois vendo como a Cultura do Brasil está se perdendo,vejo que ainda tem pessoas que assim ou/e melhor que eu,tem um gosto músical apurado.Abraços!

  2. O que seria de nós sem o Euterpe, estaríamos perdidos.
    Feliz ano novo a todos do Euterpe, um artigo muito bom, parabéns.
    Conhecia todas as outras formas, mas a forma seccionada não conhecia.

  3. Amâncio,
    Felicidades e parabéns por tudo. Mas o mais interessante aqui achei o imenso poema de Byron “contra” a Valsa. O ser humano é mesmo um porão de incoerências.

  4. Feliz ano novo e vinda longa a este blog que presta uma verdadeira missão civilizatória a este país. Saudações bachianas!

  5. Sou extremamente grato a vocês pelo bellíssimo serviço prestado a todos os amantes de música.É um trabalho excepcional e de grande auxílio.

  6. Boa noite gente

    Sou novo na paixão em música clássica, toco piano (bem pouco) e estava procurando um blog sobre esse assunto. Tenho muitas dúvidas e uma delas é: onde posso comprar CDs com qualidade de áudio garantida desses gênios da música?

  7. Olá Misael!

    Lojas físicas: aí na sua cidade eu não sei, mas aqui em Curitiba eu encontro (ou encontrava) CDs bons de música clássica nas Livrarias Curitiba (ou Catarinense), Cultura, FNAC, Saraiva… Lojas virtuais: experimente http://www.cdpoint.com.br/ e, o paraíso dos paraísos, http://www.amazon.com/ . Já comprei em muitos outros lugares, mas minhas mecas são essas aí, além dos sebos onde vc pode encontrar muitas pechinchas.

    Claro: o local da compra não garante que vc vá encontrar *só* coisas boas por lá. Em qualquer lugar, vc vai precisar garimpar muito. E pra saber separar os pedregulhos das pepitas de ouro, é só com a prática mesmo. Boas compras!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *