As Hébridas são um conjunto de ilhas de diversos tamanhos, localizadas a oeste da Escócia. Muitas são habitadas, outras continuam desertas até hoje. Numa das ilhas desertas, na pequena ilha de Staffa, está localizada uma caverna conhecida como Gruta de Fingal. Aos 20 anos de idade, o jovem Felix Mendelssohn esteve por lá, e ficou tão impressionado com o local que no mesmo dia enviou uma carta para sua irmã Fanny dizendo:
Para que você entenda a profunda impressão que As Hébridas me causaram, estou te enviando o seguinte, que veio à minha cabeça quando eu estava por lá.
E na sequência, os primeiros compassos da abertura As Hébridas ou A Gruta de Fingal Op. 26 (ouça o primeiro tema logo mais abaixo). Apesar do nome “abertura”, a obra não precede nenhuma peça maior, como uma ópera ou um balé; ela é uma peça independente, uma “abertura de concerto”.
A obra foi finalizada um ano depois, em 1830, com o título Die einsame Insel (em alemão, A Ilha Solitária), mas na revisão que o compositor fez em 1832, trocou o nome para Die Hebriden (As Hébridas) na partitura de orquestra, e Die Fingalshöhle (A Gruta de Fingal) nas partes de cada instrumento – por isso a abertura hoje é conhecida por ambos os nomes.
A peça é um bom exemplo do uso da forma-sonata, mas ao contrário do que parece, ela não descreve paisagens minuciosas (como O Moldávia, de Smetana) nem conta nenhuma história (como A Bruxa do Meio Dia, de Dvorák). Em vez disso, ela tenta transmitir a sensação de se estar num lugar tão misterioso, mágico, solitário e diferente.
Vejamos…
… e ouçamos…
Exposição
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb1.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 1. Exposição 1º tema (Claudio Abbado – LSO)]Sem introdução, a obra começa direto com o primeiro tema, o tema principal em Si menor. O clima de mistério parece querer evocar a paisagem marinha, ou talvez a jornada para se chegar ao local. Obs: só é possível chegar até lá de barco. Já o desembarque, somente se o tempo estiver bom.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb2.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 2. Exposição transição (Claudio Abbado – LSO)]Temos um pequeno desenvolvimento do primeiro tema e uma transição para o segundo tema.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb3.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 3. Exposição 2º tema (Claudio Abbado – LSO)]O segundo tema vem em Ré Maior, como manda o figurino da forma-sonata. Alguns dizem que ele retrata o sentimento do compositor ao chegar à caverna; outros dizem que retrata a solidão do local; outros dizem que é a esperança, e outros o som do interior da gruta… mas pra mim é só uma das mais belas melodias do compositor.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb4.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 4. Exposição coda (Claudio Abbado – LSO)]O fim da exposição (coda) é todo baseado no primeiro tema, com destaque no final para um chamado militar, um chamado de trompa – o que, para os compositores românticos da primeira geração, quer evocar solidão e saudade do passado.
Toda uma face da ilha, incluindo a entrada e as paredes da gruta, são formadas por colunas de basalto em formato hexagonal, construídas e modeladas apenas pela natureza. Em 1772, após uma visita exploratória, o naturalista britânico Sir Joseph Banks passou a elogiar a beleza natural do lugar, e nos anos seguintes a ilha recebeu várias visitas ilustres, como os escritores Sir Walter Scott, Jules Verne e Robert Louis Stevenson, o pintor William Turner (autor de um quadro retratando a gruta e um barco ao amanhecer) e até mesmo a Rainha Vitória.
Continuando com a música, temos o…
Desenvolvimento
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb5.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 5. Desenvolvimento início (Claudio Abbado – LSO)]A seção de desenvolvimento começa explorando justamente o chamado militar, ecoando-o por metais e madeiras (já li em algum lugar que um dos ecos representaria o som dos pássaros). E na segunda metade do trecho, uma breve citação do segundo tema.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb6.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 6. Desenvolvimento cont. (Claudio Abbado – LSO)]O primeiro tema dá o ar de sua graça, num trecho de instabilidade tonal típico de desenvolvimento de forma-sonata. Um enorme crescendo nos leva de volta a Si menor e à…
Reexposição
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb7.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 7. Reexposição 1º tema (Claudio Abbado – LSO)]Novamente encontramos o primeiro tema, agora em sua forma original e com direito a uma autêntica chamada de trompa. O trecho se encerra com uma breve transição que nos levará ao segundo tema.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb8.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 8. Reexposição 2º tema (Claudio Abbado – LSO)]Como reza a cartilha da forma-sonata, o segundo tema é reapresentado na tônica (neste caso, Si Maior).
A caverna tem aproximadamente 20 m de altura e 75 m de profundidade, e seu teto tem um formato de abóbada, ampliando ainda mais os ecos das ondas do mar. Isso faz com que a gruta tenha um som parecido com o de um órgão de catedral. O nome original em gaélico reforça esta idéia: Uamh-Binn significa “Gruta da Melodia”.
Coda
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/11/MendHeb9.mp3|titles=Mendelssohn: Abertura As Hébridas (A Gruta de Fingal) – 9. Coda (Claudio Abbado – LSO)]Na minha humilde opinião, a coda é a melhor parte de toda a abertura, um show de orquestração onde brilham o primeiro tema e o chamado militar usado no início do desenvolvimento. Soa como uma tempestade marítima que força o visitante a dar adeus ao misterioso local.
O vídeo abaixo pode demorar um pouco para carregar, pois traz imagens da ilha de Staffa e da Gruta de Fingal em muito boa resolução, mas vale a pena esperar. Dê uma colher de chá à orquestra, que não estava em seus melhores dias, e curta as imagens de cair o queixo.
No Youtube é fácil encontrar muitos outros vídeos da gruta, por exemplo este aqui filmado por um turista (só não o coloquei no post porque é ao som de Mozart e não faria sentido misturá-lo com o Mendelssohn).
Pra mim uma das imagens mais bonitas nessa música é a das ondas que ecoam entre a gruta e lhe rendem a fama de Gruta da Melodia. Como diria um texto do movimento.com e do qual eu não esqueci “Mendelssohn ‘pinta’ com exatidão de cores o mar invadindo a gruta, o poder das ondas contra a imponência das rochas e a sabedoria implícita de que um não existiria sem o outro”. Dá pra ouvir isso especialmente no final da exposição do 1o. tema e no final do desenvolvimento, quando o 1o. tema se expande em staccato pelas cordas.
Texto excelente sobre uma música belíssima, parabéns!
Amancio, você já pensou em falar sobre a Sagração da Primavera, obra que mudou a história da música? Penso que ficaria muito bom você explicando (como nos moldes da Noite Transfigurada) os trechos e detalhes técnicos que deixaram os críticos boquiabertos. Faria com que entendêssemos melhor a música moderna. Fica aí a sugestão.
Oi Ivan, obrigado pelas palavras!
A Sagração já está na minha “lista de idéias”, mas a sua sugestão de “entender música moderna” estará melhor explicada num outro “projeto de post” que eu tenho: como Mozart, Beethoven e Haydn harmonizariam melodias da Sagração e dos Quartetos de Bartók. A idéia será mostrar que as melodias são tão “normais” quanto quaisquer outras, só o tratamento delas é que muda.
PS.: depois de muito tempo, publiquei os tais “projetos de posts”. O primeiro tem o sugestivo título de “E se Mozart tivesse escrito os quartetos de Bartók?”, e o segundo é a análise da Sagração da Primavera.
ótima análise sobre ótima música, caro Amancio, bravo!
À propósito, você já tentou o contrário, análisar uma obra cacofônica? Uma obra dodecafônica por exemplo…
Ainda não tentei, mas está na minha lista de próximos posts analisar o magnífico Concerto para Violino de Alban Berg, incluindo uma explicação de como funciona uma composição dodecafônica na prática. Porém ainda preciso comprar a partitura do concerto (está na minha lista de compras).
PS.: Estava agora relendo sua mensagem, e não entendi se vc falou brincando ou sério… Mas eu gosto de música dodecafônica! (das boas, não qualquer uma).
Caro Amâncio, não gosto de música dodecafônica. Pelo menos nada do que ouvi até hoje me agradou. A saber, Guerra Gueixe, Cláudio Santoro etc.
A eufonia é, pra mim, algo muito importante em música e pelo que ouvi, é inconciliável com o dodecafonismo.
Porém, quem sabe como esta análise que prometes não mude eu de opinião.
Grande abraço.
Parabéns pelo belo e informativo blog! Talvez fosse interessante acrescentar que a história da Gruta de Fingal se refere à Lenda de Ossian, que tanto inspirou músicos, poetas e outros intelectuais europeus durante o Romantismo. Não só Mendelssohn –que até, como vc falou, foi até lá pra conhecer as Hébridas- mas também artistas como Schubert ou Goethe deixaram-se levar pelo clima épico da narrativa de Ossian, o pai de Fingal.
Só que a Lenda de Ossian era falsa! Uma das maiores falsificações literárias da história, de autoria de um obscuro professor Mc Pherson, foi indiretamente responsável por obras belíssimas, como a abertura de Mendelssohn…
Mais detalhes aqui:
http://en.wikipedia.org/wiki/Ossian
Essa história é mesmo fascinante, os poemas desse suposto bardo escocês exerceram uma função crucial no enredo dos Sofrimentos do Jovem Werther de Goethe antes de serem desmentidos por Samuel Johnson. Macpherson apresentou os poemas como uma tradução em inglês de uma compilação de fragmentos em gaélico escocês, mas não chegou a apresentar o suposto original até a inquirição da farsa.
Mas a inspiração de Ossian e das personagens míticas dos fragmentos, como Fingal, na verdade tem ligação real com a mitologia gaélica, como as figuras de Oisín (Ossian) e Finn (Fingal). Então (pelo menos) não é uma ilusão completa, a farsa teve mais a ver com o suposto resgate de fragmentos da literatura oral gaélica, o que de qualquer forma deu um impulso ao interesse pela história gaélica e celta.
Aprecio musica erudita a vinte quatro anos e sempre fiz questao de observar que os grandes mestres deste gênero eram muito jovens e no maior vigor de suas vidas escreveram obras que imortalizou e imortalizou-os,gostaria muito que os jovens de hoje,que estao se destruindo tivessem essa maravilhosa linha de pensamento.
Foi uma excelente ideia esta de analisar as Hébridas. A forma-sonata dela parece narrar todas as fases do desbravamento do lugar, desde a navegação até a despedida, passando pelo momento mais sublime de audição da melodia produzida pela maré dentro da gruta. Gostaria que esta composição fosse trabalhada mais vezes pelos euterpianos em outros tópicos, pois esta análise de obra ficou muito boa e empolgante e, por fim, as Hébridas são uma abertura feita com uma inspiração tão grande e apaixonada que mesmo sendo curta há sempre mais o que se explorar. Segue um vídeo simpático e bem feito que pode ajudar a ilustrar a possível sensação de se deparar com lugar imponente assim:
https://www.youtube.com/watch?v=bdNFzXH4Qug
Um grande abraço,
Helô!