19abr 2017
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A objetividade e a subjetividade na música – Parte I

Os posts do Randau sobre Karl Popper e a música e a discussão que eles geraram me fizeram pensar mais detidamente sobre o que é descrever uma objetividade/subjetividade em música, pois é a distinção usada por Popper ao descrever a música de Bach (como objetiva) e a de Beethoven (como subjetiva). Mas, justamente, não é só nele que encontramos isso, e as implicações desse tipo de descrição em todo caso são profundas. Cito três casos bastante especiais em que essa dualidade objetividade/subjetividade aparece usada na música – casos justamente pelos quais a exposição do Popper passa -, e nos quais eu pretendo me concentrar a partir de hoje, dedicando um post a cada um dos casos em uma série de três partes:

1) Em muitas descrições da qualidade de uma obra ou compositor, a descrição de qualidades objetivas disputa com a descrição de qualidades subjetivas a primazia do equilíbrio capaz de tornar uma música bela sem ser prolixa ou medíocre, e inteligível sem ser insípida ou grosseira.

2) Na discussão de poéticas musicais, é a descrição do objetivo que coroa o projeto da música absoluta, enquanto a descrição do subjetivo coroa o projeto da música não-absoluta.

3) E na relação entre compositor e ouvinte, a descrição de uma objetividade fala do franco diálogo de técnicas dominadas e de referências à tradição entre música e intelecto, enquanto a descrição de uma subjetividade fala do franco diálogo das idéias e dos sentimentos entre música e coração.

Procurando enxergar o sentido profundo de se aplicar a descrição objetividade/subjetividade na música em cada um desses três casos, começamos hoje pelo primeiro, cujo âmbito resumiremos como: o processo criativo do compositor.

Objetividade/Subjetividade na Mona Lisa

(É muito curioso salientar ainda que na literatura a objetividade/subjetividade é um dos elementos do estudo do estilo, além de ser uma dualidade análoga à operação do universal/particular no estudo das descrições. Mas nossa atenção para ela na música será muito mais sutil, por ser a música uma arte de parâmetros obviamente muito mais abstratos).

1. No processo criativo

Processo criativo, ilustração para “How the Creative Process works”, de Robert Lindsay Nathan Jr.

Imaginem que um artista está criando. Ok. Na feitura de um objeto artístico, digamos que entram preocupações que dizem respeito às possibilidades de se dar forma a esse objeto (objetividade) e às idéias/sentimentos que o objeto causará no sujeito que o apreciar (subjetividade). Mas quanto entra de objetividade e subjetividade nesse processo? Quanto é objetivo e quanto é subjetivo quando um compositor está criando? Não é difícil perceber que tentar responder essa pergunta é a aplicação mais utópica da descrição objetividade/subjetividade, simplesmente porque não há uma possibilidade prática e um método para discriminar qual a porção objetiva e qual a porção subjetiva da criação – afinal, um belo arpejo descendente em sétima diminuta será um procedimento objetivo, que atende às expectativas formais da composição, ou um procedimento subjetivo, que imita uma nuance emocional? As qualidades do objeto, respeitando desde a sua origem a intenção do artista, estão sempre combinadas às qualidades do sujeito que o criou e mesmo às qualidades da maneira como um sujeito o apreciará. Mas…

…se não se pode descrever precisa e cientificamente essa divisão objetividade/subjetividade, pode-se ao menos incentivar o tempero mais pronunciado de um ou de outro na prática. Popper mesmo, como vimos, foi um dos que usou a descrição objetividade/subjetividade para determinar que uma música guiada por suplantar as dificuldades de organizar o seu material (objetiva) é superior a uma guiada por expressar a personalidade do seu autor (subjetiva). E aqui percebemos um uso que, por mais utópico, está assentado na música: a prática das “poéticas”, que tentam ditar o receituário de virtudes como objetividade/subjetividade ao compositor em seu processo criativo, e mesmo julgar os resultados pela presença mais ou menos bem sucedida dessas virtudes em suas obras.

1.1 Poéticas musicais

Detalhe de retrato de Tchaikovsky por Nikolai Kuznetsov (1893)

Quando a qualidade do processo criativo do artista é descrita como em Popper, nos termos objetividade/subjetividade, ela parece remeter à clássica dualidade criativa entre engenho e arte, muito explorada nas poéticas desde o Renascimento, que dizem justamente: o produto artístico deve ser feito da conjugação ideal entre engenho (gênio) e arte (técnica), alcançando através deles o equilíbrio perfeito. Percebam novamente que essa diretiva, para ser normativa nas poéticas, não é apenas teórica e descritiva, mas prática: é como que o apelo à atenção e ao instinto que o artista deverá cuidar de cultivar por si próprio, buscando o equilíbrio das tais duas virtudes. Na música, essa dualidade acaba sendo lembrada exatamente nesses termos no desempenho do processo criativo de alguns compositores, especialmente Schumann e Tchaikovsky. Detendo-se neste último, temos notícia de que ao tocar ao piano o seu recém acabado Concerto para Piano No. 1 ao pianista e compositor Nikolai Rubinstein, Tchaikovsky ouviu duras críticas de como o concerto tinha passagens ERRADAS, e ainda hoje a imagem de um compositor de talento melódico, idéias e inspiração vem sobrelevada por críticas à falta de proporção e a uma desmedida de pathos pelos críticos mais severos de Tchaikovsky. Quer dizer, a divisão objetividade/subjetividade é encontrada aqui quando há uma noção complementar da capacidade do compositor em dominar e se conformar às técnicas de composição (objetividade/arte/técnica do objeto) e à qualidade do seu impulso criativo (subjetividade/engenho/gênio do sujeito).

1.2 Regras!

Por fim, se pensarmos na maneira como a interação do objetivo/subjetivo é concebida nesse modelo de crítica, o que é notável é que a objetividade acaba representando uma conformidade tal a um sistema musical padrão já estabelecido que se cria a idéia do “certo” e “errado”, como se a escolha do sistema musical fosse em si mesma neutra, fonte de regras neutras. Assim os elementos da técnica da composição acabam servindo como a ilusão de uma não-arbitrariedade do compositor, sendo portanto agentes estruturadores da obra. Por que ilusão de não-arbitrariedade? Porque o compositor a princípio pode fazer o que quiser, escolher o gênero ou a linguagem que quiser, mas a escolha de um deles traz uma restrição voluntária que dá parâmetro ao seu diálogo com o público e potencializa a medida da sua criatividade – em suma, é o atrito necessário para a sua subjetividade.

1.3 Conclusão

A distinção das noções de técnica/inspiração, arte/engenho, parece assim ser o fundo da descrição objetividade/subjetividade quando se procura aplicá-la para determinar o processo criativo do compositor. Há uma distância dessa aplicação em relação à teoria – por ser uma divisão impossível de se determinar – e uma proximidade em relação à prática – porque o critério do objetivo com o subjetivo acaba sendo trazido para o incentivo à prática da boa obra. A ênfase no equilíbrio entre objetivo/subjetivo faz lembrar o trabalho do artesão. No subjetivo, a confissão do indivíduo. E no objetivo, como em Popper, chega a lembrar o trabalho do cientista!

Pronto! No próximo post veremos a descrição objetividade/subjetividade na clássica discussão da música absoluta/não-absoluta.

Este post pertence à série:
1. A objetividade e a subjetividade na música – Parte I
2. A objetividade e a subjetividade na música – Parte II
3. A objetividade e a subjetividade na música – Parte III

Este post tem 2 comentários.

2 respostas para “A objetividade e a subjetividade na música – Parte I”

  1. Bom, sobre essa complexa discussão entre objetividade e subjetividade, eu indicaria aos autores algumas leituras do Adorno, principalmente sobre a música moderna.

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