19abr 2017
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A objetividade e a subjetividade na música – Parte II

2. Na música absoluta/não-absoluta

Richard Strauss em 1909 – mestre da música não-absoluta

Uma das críticas que fundamentam a divisão entre música objetiva/música subjetiva para o Popper é que a música objetiva refletiria menos da personalidade do compositor do que a subjetiva. E aí imaginar uma medida com a qual é cedida mais inspiração ao sujeito do que ao objeto, ou vice-versa, nos leva à velha discussão da música absoluta/não-absoluta, que no séc. XIX veio tanto à tona. Em suma, quanto a música consegue descrever, por ela própria (sem depender da letra cantada), de coisas externas a ela? (coisas extra-musicais, do mundo real, ou mesmo sentimentos diretamente aludidos). E mais: quanto a música DEVE tentar descrever do que é externo a ela? Aqui a objetividade/subjetividade é medida em termos de: quanto mais se cede espaço à inspiração do sujeito (subjetividade) – chegando a buscar elementos externos reais como estórias, lugares e coisas como sentimentos –, mais a música é “não-absoluta”, não bastante de si mesma, pois se empresta a motivos externos – e daqui surgem as chamadas músicas programáticas, poemas sinfônicos contando estorinhas, etc. E quanto mais a música constrói o seu sentido dentro do que acontece nos seus parâmetros puramente musicais oferecidos – o virtuosismo estético de uma fuga, por exemplo –, mais se está cedendo espaço ao objeto (objetividade).

2.1 Problema teórico

O problema dessa descrição, superado há mais ou menos um século, é que a noção de que existam idéias puramente musicais chamadas de “absolutas” é um pouco radical. É verdade que se pode falar em idéias musicais (a criação de uma melodia) e em idéias extra-musicais (a criação de uma estória). Mas o contato do extra-musical com o musical nunca é totalmente abolido: sabe-se, por exemplo, que a linguagem musical está intimamente relacionada ao discursivo – a cadência na música tonal imita claramente uma prosódia comum na fala, e tem sua origem mais provável justamente na recitação. Mas mesmo a noção de organizar o material na música atonal e serial não foge à ordem do discursivo. Com essas relações, a linguagem musical mostra conter arquétipos da linguagem falada, e revela assim se fundar em algo precisamente além de apenas música em si mesma.

2.2 Na crítica

Deixando, portanto, a teoria rigorosa, a separação de música absoluta e não-absoluta acaba então usada em um interesse crítico, de ideais, e nesse caso dois tipos de crítica se voltam para a música não-absoluta: um deles diz de maneira abrangente que uma música se torna ruim quanto mais se deixa ceder a motivações extra-musicais, pois como arte independente a música tem como ideal a autonomia. E outro critica especificamente o gênero musical que surgiu da idéia da música não-absoluta, que é quando poemas sinfônicos não só se deixam ceder totalmente a motivações extra-musicais, imitando-os diretamente, como ANUNCIAM essas motivações ao público, convidando o ouvinte a reconhecer essas associações (e, portanto, a ouvir música extra-musicalmente). Desse tipo de crítica a questão que surge é: na verdade, as idéias musicais, mesmo “técnicas”, não têm sua musicalidade revogada por uma motivação extra-musical: basta um compositor escrever uma carta dizendo que se inspirou em coisas extra-musicais em determinada música a princípio “absoluta”, confessando portanto que ela foi gerada de uma imitação de coisas externas, pra que o status de uma música mude de “absoluta” para “não-absoluta”. E não é porque uma imitação de coisas externas foi articulada que esse compositor abandonou as soluções puramente musicais que surgiram no processo da composição (a Quarta Sinfonia de Tchaikovsky, descrita extra-musicalmente em uma carta do compositor, não precisou deixar de ser uma sinfonia formalmente tradicional e realizada). São, portanto, duas preocupações que não se anulam, mas que podem coexistir e terem acréscimo, enriquecimento, não exclusão, empobrecimento.

Mas tomemos rapidamente um exemplo insuspeito e bastante ilustrativo, uma vez observado junto ao maestro Osvaldo Colarusso: na fuga final da terceira parte do Requiem Alemão de Brahms, o sujeito da fuga leva o texto “As almas dos justos estão na mão de Deus e nenhum sofrimento os aflige”.

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/01/Brahms-Ein-Deutsches-Requiem-3.-Fugue.mp3|titles=Brahms – Ein Deutsches Requiem – 3. Fugue]

Der Gerechten Seelen sind in Gottes Hand
As almas dos justos estão na mão de Deus
und keine Qual rühret sie an.
e nenhum sofrimento as aflige.

Acompanhem pela imagem brega que fiz acima: “As almas dos justos” é apoiado por um arpejo ascendente (caminho para o céu); nas mãos de Deus” faz um formato de conchinha e não deixa que as almas dos justos caiam; e quando o sofrimento – a palavra Qual” em alemão – tenta alcançá-las nas alturas, ele cai sem amparo em um arpejo descendente de sétima diminuta (dissonância, sombra, tensão no sistema da escala). São três recursos musicais para enfatizar a frase do texto, algo que está fora da natureza puramente musical. Mas se escutássemos essa fuga sem coro ela continuaria bela! Portanto o texto, que aqui é o elemento extra-musical, acaba iluminando outro aspecto da música: de novo, é acréscimo, é enriquecimento, não exclusão, empobrecimento. Daí se vê que o fator extra-musical está intrínseco em todas as obras, sejam elas música “absoluta” ou não – a velha história de que a arte é feita por homens e não por robôs.

2.3 Formas musicais

E por fim, como método de organização, a prática no uso dos termos música absoluta/não-absoluta respeita a relação já anunciada de início: se a música serve declaradamente a um enredo que ela imita e anuncia essa imitação ao público, incorporando o enredo ao seu sentido e apreciação, a sua motivação viria de fora para dentro – e daqui temos formas como o poema sinfônico e concertos e sinfonias programáticas; mas se a música serve mais às necessidades que surgem do seu desenvolvimento natural e principalmente às convenções do gênero musical adotado, a sua motivação já viria de dentro – e aqui temos todas as obras que se apresentam isentas de um programa declarado, que imprescinda o seu sentido.

Como discussão, os termos música absoluta/não-absoluta podem se referir à motivação de qualquer música, instrumental ou cantada. Mas como organização, referem-se geralmente apenas à música instrumental.

2.4 Conclusão

O objetivo/subjetivo, portanto, no sentido de serem relativos ao objeto e ao sujeito, parece compor a pretensa idéia de uma proporção de um e de outro nas motivações da música na clássica discussão entre música absoluta e não-absoluta. Retomando Popper, quando ele determina que é possível a um compositor colocar mais ou menos da sua personalidade na música, ele se insere nessa discussão: diz ele que, como motivação extra-musical, já basta à música o fato dela ser a necessidade de expressão do ser humano. A partir daí, ela deveria funcionar como um relógio, de motivações internas, representando o desenvolvimento dos seus próprios elementos. E aqui ela seria absoluta, pois a música por si mesma nunca pediria soluções extra-musicais (eis também um ponto discutível). E essa, portanto, seria a arte superior à arte que simplesmente tenta imitar emoções diretamente, sem critérios internos autônomos. Mais uma vez, trata-se de uma poética, uma postura idealizada adotada em relação à prática, já que já se mostrou que as duas motivações, musicais e extra-musicais, não se excluem necessariamente nem tornam a música necessariamente pior quando coexistem.

No próximo e último post veremos a descrição objetividade/subjetividade em um aspecto bem peculiar da audição musical: o nível de naturalidade/artificialidade que certos compositores pretensamente impõem à fruição do ouvinte.

Este post pertence à série:
1. A objetividade e a subjetividade na música – Parte I
2. A objetividade e a subjetividade na música – Parte II
3. A objetividade e a subjetividade na música – Parte III

Este post tem 7 comentários.

7 respostas para “A objetividade e a subjetividade na música – Parte II”

  1. to vendo aonde vc quer chegar, e concordo bastante. penso sempre em algo como “gramática musical”: algo bastante artificial, é claro. por meio dela atribuímos… sentido, algo comunicativo e passível de subjetivação na música. só tenho dois pontos: 1) mesmo a música ultra-subjetiva teria, de algum modo, de respeitar essa “gramática”. exemplo delirante, só pra marcar o ponto: mozart poderia ter dito que fez a “marcha turca” para expressar sua profunda tristeza num domingo enquanto assisitia ao faustão. sim, mas a expressão subjetiva dele estaria falhando na convenção interpretativa da nossa “gramática”, porque eu pelo menos não fico triste quando a ouço… 2) última coisa, a ideia de essencialidade da música parece estar na sua fala. se a música acompanha um texto (seu exemplo de brahms), não haveria porque separar os constituintes. a música não se adequa ao texto, ela existe junto dele. se o texto apresenta um sentido, é na coexistência com a música que a gente pode afirmar realmente um sentido. um desencontro entre texto e melodia, por exemplo, pode ser sentido como ironia, e por aí vai… só insisto que, nesses casos, o texto não está “fora da música”, como você falou. nem a ideia de acréscimo me parece muito boa, porque ela parte da ideia de coisas separadas.
    mas seus textos estão ficando muito bons mesmo!

  2. 1) Sim! São muitos os casos em que não há consenso entre os ouvintes sequer se uma música é triste ou alegre (Adagio da 9a. do Beethoven, p. ex.). Acho que esse ponto fala justamente do tipo de apreciação do ouvinte, de que eu pretendo falar um pouco em um último post. Mas neste post eu tentei mostrar apenas dois pontos na relação do compositor e a obra: a) pode-se imaginar que essa “gramática” da música tenha motivações e necessidades próprias, como um relógio pra funcionar, e que essas motivações sejam superiores às motivações de você ficar apenas mimetizando os seus próprios sentimentos e transformando a música em um monstrinho (quase como que esquecendo que arte é dar ordem à expressão com artifícios, e não simplesmente reproduzir o caos da natureza). Mas se um compositor confessar que construiu uma música (ou um relojoeiro um relógio) pensando e imitando alguma coisa sua muito particular, isso não compromete necessariamente a “gramática”, mas se torna a sua motivação particular no momento da criação. Só quis dizer que uma defesa muito rigorosa dessa necessidade interna da gramática da música não seria uma defesa de muita autoridade, pois a própria gramática musical não é neutra – ela reserva tensões, distensões, sinuosidades, noções de proporção, mesmo a prosódia da fala, que tocam e têm tanto a ver com a nossa sensibilidade geral que acabam dando espaço pra se vincularem a qualquer imaginação, tanto nossa como ouvintes como do compositor mesmo. b) é que há ainda os casos em que o compositor não só é motivado por algo extra-musical, mas ANUNCIA essa motivação e convida o ouvinte a percebê-la na música. Aí ele se compromete mais a conseguir nos fazer enxergar a sua motivação nos sons (e Mozart no seu exemplo teria um pouco mais de obrigação de nos convencer, heheh). Por isso é sempre bem interessante ver como o compositor tenta fazer isso nessas obras.

    2) Eu concordo com você, quando a gente ouve uma música que canta um texto, elas já são uma coisa só. Não são sequer música + texto (quase como verde não é mais apenas amarelo + azul depois que essas cores são combinadas). Mas acho que o único problema foi que pra explicar isso eu tive que separá-las, heheh. Como eu tentei falar da relação do compositor com a obra, eu falei como que do compositor olhando pra um texto antes de fazer a música. Aí quando me refiro ao texto como algo que está “fora” da música, estou me referindo ao tal elemento extra-musical em discussão no post, já que o texto obviamente não faz parte da gramática musical. Talvez dê pra fazer alguma emendazinha pra esclarecer isso. :P

    Obrigado pelos comentários! :)

  3. Para mim a verdadeira expressao da musica absoluta tem de ser encontrada no mundo do SOM e nas RELACOES SONORAS. E depois o ouvinte sera capaz de adaptar isso a situacao em que ele se encontra, seja ela de conforto, desconforto, exilio, luta.
    Eu particularmente nao tenho imagem nenhuma na cabeca. claro esta que estudei o texto, analisei as ideias decorrentes do texto, mas sempre procuro encontrar sua verdadeira expressao na MUSICA, e com muita frequencia, se encontro o que me parece ser o verdadeiro sentido da musica, ele esta intimamente relacionado com o texto; caso contrario, o texto de repente nao se encaixa, algo esta errado. Mas nao acredito em estudar o texto antes e depois tentar ver como a musica se encaixa…embora se escrevam os libretos antes (por ex Wagner) estava buscando uma forma artistica que os unificasse. E criou uma unidade de SOM e PALAVRAS absoluta e indivisivel. Claro esta, que nao acho correto querer comparar uma opera, principalmente uma opera com as ideias e o desenvolvimento das ideias de Wagner, com a musica absoluta ou com a maioria das cantatas. Em Meistersinger , por ex Wagner esta tentando criar uma nova Alemanha , dado o estado fragmentado precario do pais. Por isso mesmo penso que palavras como redencao, gloria ou revolucao, seja la o que for, implicam o perigo de usar a MUSICA, mesmo num nivel subconsciente, como uma descricao dessas ideias.
    P.S. Minha avo nao ouve Wagner, pois a MUSICA esta associada ao mais profundo sofrimento de perder os seres a quem se ama.

  4. Primeiro gostaria de parabenizá-los pelo excelente trabalho produzido nesse blog.
    Essa “legitimidade” da música como sendo a própria finalidade de si, ou seja não correlacionada com o mundo externo, é amplamente discutida por Adorno, apresentando o problema da forma/conteúdo, estilo/indivíduo, entre outros pontos abertos na música. A música como sendo imagem e representação de elementos/sentimentos externos à si, como: tristeza, alegria, angústia etc… é rompida com os experimentos de Schoenberg, que consegue provar que uma melodia pode ser interpretada como triste por alguns, ou feliz por outros, revelando o papel ativo do ouvinte na música ouvida. Algumas afirmações desse meu comentário encontram-se expostas no livro: “Crítica dialética em Theodor Adorno música e verdade nos anos vinte” de Jorge Almeida.

  5. Caio,

    Muito obrigado pelos comentários e pela indicação precisa sobre o Adorno.

    Sobre o comentário a respeito de Schoenberg mostrar essa qualidade propriamente subjetiva da música, creio que ela já era compreendida intuitivamente há muito tempo, mas a atitude da música de Schoenberg é de fato um impacto contra qualquer “vício” nessas associações subjetivas, porque a sua música se apresentou exigindo a interação do ouvinte com um paradigma estético totalmente novo.

    E essa série orbitou a afirmação do Popper conforme apresentada no primeiro post do Randau, mas a referência a discussões paralelas desses assuntos tão abrangentes, como no caso do Adorno, é muito bem-vinda.

  6. De nada meu caro Leonardo, estarei presente mais ativamente nos comentários do blog a partir de hoje, e apesar de conhecer pouco sobre Adorno, espero contribuir com as idéias desse grande sociólogo, musicólogo e filósofo da estética.

  7. Leonardo e demais comentaristas: quero apenas compartilhar um álbum de 3 discos , q existe barato lá fora(não vou dar nomes comerciais,mas sabem onde), chamado The Other Strauss. Warner classics. Vocal and chamber music.
    Obviamente , é o Richard, que tanto conhecemos por óperas e poemas sinfônicos , todas e todos magníficos a meu ver.
    Pois ,aqui, temos a música “absoluta” de R Strauss. Creiam, foi uma surpresa para mim, que conhecia ,possuía, amava todas as óperas e poemas, além dos deliciosos concertinos, os quais até passam tb por absolutos.
    Aqui há um CD de música de câmara ,delicioso mas menos importante. Outro ,com o Prelúdio Festivo, poderoso, e um “Lied para coro” chamado “Der Abend” ,sobre Schiller, op 34.1, simplesmente etéreo, assombroso, “moderno” em harmonias inusitadas. Depois, trechos orquestrais da Mulher Silenciosa e da Sem Sombra(Frosch). Até aqui, nem tanto espanto.
    Mas não imaginam a beleza e raridade do terceiro CD,no caso, o no. 1: Fabulosas peças corais que nos revelam os exercícios paralelos que RStrauss fazia para colocar nas óperas momentos vocais tão talentosos.
    “Taillefer” op 52, para solistas ,coro e orquestra.
    “Wandrers Sturmlied” op 14 , sobre Goethe, algo maravilhoso, meio brahmsiano.
    “Die Tageszeiten”, quatro Líeder op 76 para coro masculino, sublimes. Baseados em texto de Eichendorff, que nos lembram o crepuscular romantismo dos 4 Últimos Lieder.
    Finalmente, com 20 minutos, o Deutsche Motette op 62 (Rueckert), em que se percebe eloquente e “absoluto” contraponto.

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