19abr 2017
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Música Clássica e Porrada – Parte II

Correndo atrás de completar as séries de posts ainda pendentes no blog (logo vem mais Dvorák, etc.), hoje nos ocuparemos de mais música e pancadaria. As motivações e mesmo a utilidade (!) desta série sobre Música Clássica e Porrada foram expostas no post da Parte I, juntamente com bons exemplos, claro. Pra essa Parte II, conversaremos sobre mais quatro exemplos pra depois seguirmos gastando toda a surra musical nas partes III e IV. São vários exemplos e uma breve descrição do enfezamento que se passa em cada um deles, o que autoriza a leitura a ir colhendo as informações de acordo com o interesse.

5. Bartók: Allegro barbaro (1911)


László Endl

O Allegro barbaro de Bartók é quase um vandalismo escrito para o piano: a entrada é feita de acordes puros que podem parecer um acompanhamento, mas terminam sendo o próprio tema principal exposto em blocos. Além de soar elementar e primitiva, a música se apóia predominantemente sobre elementos folclóricos, e ouvimos desde a entrada o modo frígio da escala pentatônica (evocando a música folclórica húngara) e, na seção central, escalas mais cromatizadas do folclore romeno. Como pesquisador e compilador de música folclórica, Bartók não desperdiçou o conhecimento folclórico pra experimentar novas texturas harmônicas e melódicas e criar um barbarismo musical incisivo e nervoso!, que se resume em um gesto bruto de pouco mais de 200 compassos.

6. Mussorgsky: Kartinki s vystavki (“Quadros de uma Exposição”): No. 9 “Izbushka na kuryikh nozhkakh” (Baba-Yagá) (“‘A Cabana sobre Patas de Galinha’ (Baba-Yaga)”) (1874)

Viktor Hartmann: Estudo de design para um relógio na forma da cabana de Baba-Yaga

A obra mais famosa de Mussorgsky é uma homenagem póstuma, escrita após a morte do amigo Viktor Hartmann, artista e arquiteto devoto à causa do nacionalismo russo. Morto de um aneurisma em 1873, aos 39 anos, Hartmann ganhou em fevereiro e março de 1874 uma grande exposição póstuma de suas obras, organizada por Vladimir Stasov. Inspirado, Mussorgsky escreveu em apenas seis semanas uma das obras mais “incidentais” escritas para o piano: os Quadros de uma Exposição, uma suíte que descreve o passeio de um expectador (no caso, o próprio Mussorgsky) por entre dez obras da exposição de Hartmann. Os retratos musicais de cada obra de Hartmann são ligados por descrições do passeio do próprio expectador em meio à exposição, revelando o seu movimento de interesse entre os quadros, sua aproximação, sua lembrança melancólica do autor, tudo a partir do material da chamada Promenade, o movimento que abre a obra e que já descreve os primeiros passos no espaço da exposição.

Viktor Vasnetsov (1848-1926): Baba Jaga (1917)

Entre as obras de Hartmann, a penúltima retratada pelos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky é a ilustração de um estudo de design para um relógio inspirado na lendária cabana de Baba-Yagá. De acordo com o folclore eslavo, Baba-Yagá é uma bruxa que voa sobre um pilão, varrendo seus rastros com uma vassoura de prata, e que mora em uma cabana móvel que caminha sobre patas dançantes de galinha. De caráter sinistro, as lendas costumam descrevê-la a perseguir crianças e a assumir o papel de antagonista. Porém, em lendas como as coletadas pelo analista russo Vladimir Propp, ela aparece assumindo o papel ambíguo de uma sábia que recompensa as almas puras.

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Mussorgsky-Pictures-at-an-Exhibition-15.-The-Hut-on-Fowls-Legs-Baba-Yaga.-Allegro-con-brio-Andante-Allegro-molto-attacca-S.-Richter-Sofia-1958.mp3|titles=Mussorgsky – Pictures at an Exhibition – 15. The Hut on Fowl’s Legs (Baba-Yaga). Allegro con brio – Andante – Allegro molto – attacca (S. Richter – Sofia, 1958)]

A música de Mussorgsky, descrevendo o quadro de Hartmann e ao mesmo tempo a lenda da Baba-Yagá, é uma marcha que dá movimento à idéia grotesca da cabana a caminhar com suas patas de galinha. Podemos ainda ouvir o motivo do vôo da bruxa sobre o seu pilão e, na seção central (0’57”), os sinos do relógio. O final desencadeia a última peça da obra, o imponente Portal de Kiev (que ouviremos em outra oportunidade).

7. Prokofiev: Sonata para Piano No. 7 em Si bemol maior Op. 83 “War Sonata II: Stalingrado” (1943)

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/10/Prokofiev-Piano-Sonata-No.-7-in-B-flat-major-Op.-83-War-Sonata-II-Stalingrad-3.-Precipitato-S.-Richter-1958.mp3|titles=Prokofiev – Piano Sonata No. 7 in B flat major Op. 83 ‘War Sonata II (Stalingrad)’ – 3. Precipitato (S. Richter – 1958)]

As chamadas “War Sonatas” de Prokofiev são daquelas obras vistas como o desabafo que a arte permite dar em tempos de ditadura e repressão. Em 1932, o diretor Vsevolodov Meyerhold, amigo próximo de Prokofiev, prestes a ensaiar a ópera Semyon Kotko, foi assassinado pela NKVD (a polícia secreta de Stalin). Menos de um mês depois, a polícia de Stalin foi atrás de sua esposa, Zinaida Raikh. Em meio à revolta, Prokofiev recebeu a encomenda de uma cantata para celebrar o aniversário de 60 anos de Stalin (o que resultou na Cantata Zdravitsa Op. 85).

Foi depois desses eventos, ao fim do ano de 1932, que Prokofiev começou a escrever as sonatas para piano Nos. 6, 7 e 8, conhecidas mais tarde como “Sonatas de Guerra”. São suas sonatas mais importantes e também as mais dissonantes.

Da Sonata No. 7, seu terceiro e último movimento, marcado com a indicação Precipitato, é uma tocatta de afirmação enfática e onipresente da tonalidade principal da sonata: Si bemol maior. Ouvimos por todo o movimento o baixo nervoso que resolve a base da música em oitavas que marcam Si b – Dó # – Si b, e é essa insistência cada vez mais intensa e a variedade que Prokofiev faz caber sobre ela que dá uma sensação de inevitabilidade e de coação à conclusão da sonata.

Na interpretação de Sviatoslav Richter no player acima, o que chama a atenção é como Richter forma um grande crescendo em tensão, que já no final do movimento alcança um volume de som quase insuportável.

8. Beethoven: Quarteto para Cordas No. 11 em Fá menor Op. 95 “Serioso” (1814)

Beethoven também era violento com a pena

Beethoven mereceria uma compilação de macheza só pra ele, mas é engraçado como em suas obras não há uma violência desproporcional, que não encontre dentro da própria obra uma resposta, uma solução. Pensando que Beethoven é em muitos sentidos antes um alargador do Classicismo do que um destruidor das suas convenções, a violência em suas obras pode ser extrema, mas também não escapa ao controle, ao equilíbrio caro aos clássicos, dado por uma simetria na estrutura da obra, na administração da tensão-distensão que a música percorre. Por vezes a solução a um conflito apresentado é pacificadora, otimista, como na Ode à Alegria da Nona Sinfonia, mas por vezes é uma solução trágica, como aparentemente no Quarteto Op. 131. O exemplo que separo aqui traz dramaticamente problemas que só serão resolvidos no final da obra, e não é o primeiro movimento da Quinta Sinfonia nem a Tempestade da Sexta, mas o primeiro do “Quarteto Serioso”, uma música que, a despeito da textura mais homogênea de um quarteto de cordas, tem momentos dignos de headbanging.

Exposição:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/10/Beethoven-String-Quartet-No.-11-in-F-minor-Op.-95-Serioso-1.-Allegro-con-brio-I.-Exposition-Alban-Berg-Quartett-1979.mp3|titles=Beethoven – String Quartet No. 11 in F minor Op. 95 ‘Serioso’ – 1. Allegro con brio – I. Exposition (Alban Berg Quartett – 1979)]

O incisivo primeiro tema se apóia na figura básica que servirá para montar toda a música. O segundo (cuja melodia surge em 0’35”), em contraste, é lírico e em tonalidade maior. A conclusão da exposição (0’51” até o final do player acima) retoma e já funde material dos dois temas.

Desenvolvimento:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/10/Beethoven-String-Quartet-No.-11-in-F-minor-Op.-95-Serioso-1.-Allegro-con-brio-II.-Development-Alban-Berg-Quartett-1979.mp3|titles=Beethoven – String Quartet No. 11 in F minor Op. 95 ‘Serioso’ – 1. Allegro con brio – II. Development (Alban Berg Quartett – 1979)]

O grande momento headbanger da música, fazendo as figuras primordiais dos dois temas da exposição renderem e passarem por um momento de instabilidade. O primeiro violino chega a rosnar! quando desenvolve a figura de oitavas quebradas em resposta ao primeiro tema.

Reexposição:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/10/Beethoven-String-Quartet-No.-11-in-F-minor-Op.-95-Serioso-1.-Allegro-con-brio-III.-Recapitulation-Alban-Berg-Quartett-1979.mp3|titles=Beethoven – String Quartet No. 11 in F minor Op. 95 ‘Serioso’ – 1. Allegro con brio – III. Recapitulation (Alban Berg Quartett – 1979)]

Os dois temas voltam pra casa depois da experiência caótica do desenvolvimento.

Coda:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/10/Beethoven-String-Quartet-No.-11-in-F-minor-Op.-95-Serioso-1.-Allegro-con-brio-IV.-Coda-Alban-Berg-Quartett-1979.mp3|titles=Beethoven – String Quartet No. 11 in F minor Op. 95 ‘Serioso’ – 1. Allegro con brio – IV. Coda (Alban Berg Quartett – 1979)]

Conclusão nervosa pra não deixar barato.

Este post pertence à série:
1. Música Clássica e Porrada – Parte I (Stravinsky, Bartók, Vivaldi & Verdi)
2. Música Clássica e Porrada – Parte II (Bartók, Mussorgsky, Prokofiev & Beethoven)
3. Música Clássica e Porrada – Parte III (Liszt, Tchaikovsky, Messiaen & Wagner)
4. Música Clássica e Porrada – Parte IV (Chopin, Shostakovich, Prokofiev & Messiaen)

Este post tem 14 comentários.

14 respostas para “Música Clássica e Porrada – Parte II”

  1. Quer mais porrada? A Sinfonia no. 3 de Roussel é uma linda pancadaria. A Sinfonia no. 2 de Holmboe também – e sua no. 5 também tem seus momentos de porrada pura. A Sinfonia “Asrael” de Suk, que já comentei aqui, tem em seu primeiro movimento alguns trechos de heavy metal. E acho que o Quarteto no. 6 de Mendelssohn faz belo par com o “Serioso” de Beethoven.

    Yeah! \m/

  2. Muito boas as sugestões, Ludwig. Exemplos desse uso de porrada mais percussiva do Roussel eu guardava mais pra frente, e apesar de não conhecer o Holmboe e ainda não ter encontrado a Sinfonia No. 2, ouvi outras coisas e a musculatura orquestral dele parece fazer impacto também por um colorido e uma percussão mais enfáticos. A Sinfonia Asrael que você citou eu já consegui ouvir e já anotei pra um dia falar de alguns autores menos canônicos, porque é mesmo uma obra incrível, quem conhece logo percebe. E finalmente do quarteto do Mendelssohn, é o melhor exemplo de que nas obras avançadas ele ainda era capaz de fazer tanta música empolgante como quando era garoto. Amo mutcho.

    Abraço.

  3. O Serioso é sacanagem. Um nervosismo incontido, mas conciso. O primeiro movimento é curtíssimo, você postou-o inteiro, mas acontece tanta coisa que leva quase mais tempo pra ler o que você escreveu do que ouvindo a música. :)
    Saudade de te ver, Léo. Precisamos marcar um bate-papo.
    Abraço.

  4. É verdade, Paulo! Tem a transição pro segundo tema que sai “de dentro” do primeiro, e cada figura que ele desenvolve sempre retomando o que apareceu na exposição.

    Vamos nos preparando pra um bate-papo já pra uma próxima oportunidade! E também não vamos desistir do The Art of Violin um dia. :)

    Abraço!

  5. Parabéns pelo blog !
    Pancadaria mesmo é o 2o Mov. da Sinfonia n9 de Bruckner (Bewegt, lebhaft !) – derruba qualquer Metallicazinho a nocaute, da um espaço pra uma respirada e quando menos se espera, tome porrada novamente.
    Abs !

  6. Bruno, muito bem lembrado! O scherzo da Nona de Bruckner é porrada mesmo. Daniel Barenboim disse certa vez que chegava a parecer Shostakovich. E é verdade.

  7. Fui apresentado a este movimento numa cena de “Sarabande”, último filme de Bergman – Bruckner é fantástico.

    Lembrei também da sensacional “Dança Selvagem Guerreira”, trecho da Floresta Amazônica do grande Villa Lobos ! Quem disse que brasileiro tambem não desce o cacete??

    Acho que esse tema ainda pode render bastante. Ggde abraço !

  8. Outro trecho pancado é o Interludio de Romeu e Julieta de Prokofiev (7o mov.) Tudo parece ir bem até que por volta de 10 segs o céu cai sobre as nossas cabeças…Pra ser ouvido em último volume, claro. Felizmente tudo melhora depois numa dancinha, ainda assim tensa….

    Abs !

  9. Estou pensando em fazer uma compilação em cd só com essas porradas, pra ouvir quando estiver raivoso. Normalmente nesses momentos ouço wagner! rsrsrs
    Aguardo a continuação da série, e espero que você não a deixe fazer aniversário de um ano!!! rsrsrsrs

    Grande Abraço.

  10. Emerson, aqui nos rascunhos essa série já está quase concluída. Só estou me certificando de não ter sido muito injusto deixando alguns exemplos de lado, e mesmo buscando alguns menos óbvios.

    E eu já fiz esse CD! E já usei contra alguns vizinhos. XD

    Abraço!

  11. Leo,
    Não li toda a série ainda, mas, a julgar pelos autores nos cabeçalhos, permito-me acrescentar as sinfonias de Simpson(principalmente a 4), as de Schnittke e a “Gótica” de H.Brian. Ah, e a “Nórdica” de H.Hanson.

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