19abr 2017
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Uma nota sobre as boas maneiras em concerto

Motivado pelo post anterior sobre a mahlermania, adianto algumas notas sobre como a música foi ganhando um “peso metafísico” inteiramente novo por parte do público, precisamente a partir do século XVIII.

Nem sempre as pessoas escutaram os concertos quietas. Pelos relatos da época, surpreendemo-nos com os hábitos indelicados do público da ópera até o século XVIII: barulhento, conversador, mais interessado na social do que propriamente no que se passava no palco – famosas jogadas de xadrez foram criadas em camarotes. Em suma, um quadro similar à cena do teatro de vaudeville em Amadeus.

Mas isso é um camarote ou uma feira?

Com a aproximação do século XIX isso mudou e cá ficamos silenciosos e ofendidos quando alguém fica agitado em seu lugar. A tese mais conhecida acerca dessa mudança diz respeito ao processo civilizador, segundo a qual teria ocorrido um ‘polimento’ – ou melhor, um disciplinamento, mas acho a palavra é bem feia – de nossas maneiras em sociedade. Basicamente, enquanto o limite da vergonha diminuía, a pressão pelo autocontrole individual aumentava, e sendo assim, foi surgindo o conjunto de normas para cada evento social – a etiqueta. Essa teoria ficou célebre através da interessante obra de Norbert Elias, importante sociólogo e historiador da sociedade de corte – autor também de uma deliciosa biografia de Mozart, a Sociologia de um Gênio.

Desse modo, começou a pegar mal admitir os excessos da multidão, e a Comédie Française, em 1782, por exemplo, decidiu instalar bancos na platéia para ver se fazia o público se comportar. Tal decisão gerou polêmica e, vejam vocês, a imprensa do momento protestou enfaticamente contra esse “atentado à liberdade de ir e vir da platéia” (?!).

Porém, o que eu gostaria de chamar atenção aqui é que não será uma metáfora indevida dizer que, conjuntamente ao hábito de simplesmente prestarem atenção na música, os espectadores foram, aos poucos, apreendendo a execução musical com uma consideração religiosa, admitindo ficarem calados para ouvir uma sinfonia como quem assiste a uma missa. Para tanto, quero recorrer a uma passagem de Listening in Paris: A Cultural History, de James H. Johnson, onde uma ouvinte revela numa carta a inédita sensação que sentiu ao prestar atenção na música – no caso, Alceste de Gluck

I took care to close myself up within my box. I listened to this new work with profound attention. (…) From the first measures I was seized by such a strong feeling of awe, and felt within me so intensely that religious impulse that penetrates those who attend the ceremonies of a revered and august religion, that without even knowing it I fell to my knees in my box and stayed in this position, suppliant and with my hands clasped, until the end of the piece.

Aqui, os primeiros compassos que arrebataram a dama, uma tal de Pauline de R.

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/10/Alceste-Abertura.mp3|titles=Abertura de Alceste]

Perceba-se que a música, e mesmo toda a arte, ganhou progressivamente um respeito de conotação espiritual. Mobilizada para finalmente prestar atenção no que ouvia, a platéia passou a dar novos significados para o que antes era um evento de função social, e a se emocionar; daí que alguém ache mesmo que a música diz algo precisamente para si. Não surpreende que, deslumbrados com essas novas possibilidades, o romantismo do período posterior irá abusar desse aspecto até a exaustão.


Este post tem 8 comentários.

8 respostas para “Uma nota sobre as boas maneiras em concerto”

  1. Adorei esse post! Confesso que fiquei surpresa com ele, pois esperava um texto nos “moldes civilizadores”, rs.

    Nobert Elias, realmente, é leitura obrigatória para entender no que a humanidade se transformou…

    E ah, acho que também fui arrebatada feito a tal Pauline de R.!

    Parabéns.

  2. Mas será que nem ao menos nos cultos religiosos as pessoas não prestavam atenção na música?! Será que essa balbúrdia não se dava só com a ópera?… Pelo amor de Deus, será que NINGUÉM (fora músicos) prestava atenção nas fugas de Johann??!!!

  3. Se mesmo os músicos tivessem prestado atenção na música de Bach, ela não teria ficado mais de 100 anos no esquecimento. As pessoas achavam sua música difícil demais, velha demais, empolada demais. Evocando nossa discussão no post sobre o conteúdo da forma, alguém daquela época poderia dizer que “só é possível ouvir Bach com um analista explicando ao lado” (veja meu post sobre o Quodlibet). Por volta de 1730, o público só queria saber de músicas fáceis e diretas. Quando Bach foi contratado para trabalhar em Leipzig em 1723, um conselheiro teria dito: “Já que não pudemos contratar os melhores, tivemos de nos contentar com um músico mediano”.

  4. Prezados,

    Não quis dizer nesse post que as pessoas de antes de 1750 não prestavam nenhuma atenção na música. Meu ponto é que a consideração que as pessoas davam para o que escutavam nas salas de concerto mudou através do tempo, e isso se percebe bem no comportamento do público de salas de concerto – e só falo de salas de concerto, pouco conheço da história da música sacra.

    Se antes o caráter de evento social pesava o suficiente para suplantar um interesse maior pela música, posteriormente ela foi ganhando um ”peso transcendental” (na falta de melhor expressão) em meio a um mundo cada vez mais secularizado. Em suma, emoções que antes eram direcionadas para outra esfera terminaram indo para a arte, e a música é ideal para essa migração. A exigência de atenção cada vez maior da platéia, o disciplinamento, convergiu com esse interesse por uma música densa, de teor arrebatador.

    Isso não significa dizer que toda a composição anterior era frívola ou mesmo que ganhava essa conotação pelos seus ouvintes – acho isso um preconceito dos modernos. Igualmente também não acho que isso ocorreu conforme uma evolução, afinal os homens de antes do Renascimento tinha um senso auditivo muito mais apurado que o nosso – imagino o acontecimento que era na vida de alguém ir à igreja e escutar o Miserere de Allegri, digamos, talvez uma única vez na vida, e passar meses até ouvir um dó afinado.

    Lembro ainda que cada época escolhe o seu cânone por diversos motivos, inclusive musicais. Toda vez que eu vou ao Municipal do Rio vejo nas colunas o nome dos grandes da música: Mozart, Verdi, Wagner e… Massenet. Não há gravação que me convença que esse último não resistiu ao tempo. Se Bach não recebeu a consideração que atualmente damos creio que há várias razões extra-musicais que o impediram de ser tocado, e ainda mais, reconhecido: mediocridade da elite e dos músicos, dificuldade na divulgação de partituras, desconsideração com o espólio… etc.

  5. Como disse o Randau, não dá pra esquecer que o post trata do ambiente social criado nos teatros musicais no século XVIII, e não sobre a ausência incondicional de atenção às sutilezas de uma partitura antes de 1750 sequer pelos músicos. Mesmo nesse ambiente dos teatros não penso que se deva excluir a possibilidade da atenção de um ouvinte interessado – o sentido é ver que a música disputava o espaço de outros atrativos no ambiente.

    E ainda quanto à falta de um público pra sutilezas antes de Mozart, não dá pra gente exagerar: vejam que se a gente entender que Bach escrevia sutilezas como um revolucionário contra toda a recepção musical de público e até de músicos, a sutileza em música vai passar a ser obra de um único gênio. Se Bach era capaz de escrever música elaborada e com qualquer sutileza – e não só ele, mas Händel e Vivaldi, Monteverdi e Gesualdo – sem pertencer a uma ordem secreta da sutileza, é porque obviamente a sutileza musical era algo que existia e era virtualmente disponível para a mentalidade musical de um compositor engajado.

    Obviamente também existem ambientes pra serem considerados quando pensamos no grau de exposição de uma peça musical – Mozart, nos seus quartetos e quintetos pra cordas, que são algumas das suas obras mais sofisticadas, tinha em mente a apresentação em câmaras privadas, de ouvintes habituados a apreciar as tais sutilezas musicais. E assim vai.

  6. No caso de Bach, ele se criou no auge do estilo barroco, num período onde a música era consumida por músicos e por pessoas com bastante conhecimento em música (nobres em geral). E me parece natural que pessoas desse tipo exijam do compositor músicas ricas em sutilezas. Porém, em seus últimos 20 anos, Bach viu o barroco dar lugar ao estilo galante (ou Rococó) e, mesmo sabendo que seu estilo já era considerado antiquado por muitos contemporâneos seus, ele continuou escrevendo a mesma música de sempre, e cada vez mais repleta de sutilezas. Realmente, não me admira que ele tenha sido esquecido por tanto tempo.

    Händel teve os mesmos problemas, mas seu nome sobreviveu após sua morte graças à paixão que os ingleses tinham por oratórios.

  7. Uma correção: nas colunas do Municipal não é o nome de Massenet que se encontra ao lado de Mozart, Wagner e Verdi, porém o de Gounod. Não que tenha feito muita diferença, mas em todo caso…

  8. Galera, muito obrigado por existirem e por escreverem!
    Tenho 20 anos de idade e sou graduando de licenciatura em música pela federal do Mato Grosso e tomei a decisão de ler todo o conteúdo do blog desde os primeiros posts até os mais recentes (árdua tarefa rs).
    Muito obrigado mesmo, os textos de vocês são muito bem escritos e esclarecedores demais.
    O que eu leio aqui é um sopro (rajada de vento) de vida e arte, comparando com a falta de acesso e mediocridade que enfrento no cotidiano do ensino universitário na instituição em que estudo.
    Obrigado!

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