19abr 2017
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Karl Popper e a música – Parte III

Neste último post da série sobre Sir Karl Popper e a música quero tratar daquela que deve ser a menos polêmica de suas idéias, mas nem por isso menos inovadora: sobre o surgimento da polifonia na música ocidental. O ponto aqui é curto, uma vez que lida com aspectos práticos – é eminentemente teoria musical –, de modo que Popper nem sente necessidade de marcar posição contra alguém ou alguma tradição em particular. Enfim, bem do jeito que o autor de The Poverty of Historicism apreciava discutir música, com bastante objetividade.

Aparentemente a idéia de como foi possível a polifonia em nossa civilização parece algo desconectado de temas como música objetiva e subjetiva ou o historicismo na arte. Porém, vejamos que mesmo lidando com um tema aparentemente tão óbvio Popper termina expondo seu ideal estético. Quando jovem, ele cogitou fazer o doutorado em história da música justamente sobre a origem da polifonia, mas, no que foi estudando o tema, também foi mudando de interesse, e partiu da psicologia da descoberta para a epistemologia objetiva.

Papa Gregório I no momento do primeiro passo rumo à polifonia

Primeiramente, veja-se que para Popper a polifonia, assim como a ciência, é uma peculiaridade ocidental. Não se trata de polifonia somente como o uso da técnica contrapontística, mas da harmonia particular de nossa civilização. Ao que tudo indica, esta surgiu entre os séculos IX e XV, e não será tolice supor que já existia mesmo antes de ser descrita – sobretudo na música sacra não litúrgica. Como ele faz notar, é característico desse estilo o canto de diversas melodias em ritmo lento, cantadas em quintas ou oitavas paralelas. É o chamado organum.

Cantando em quintas paralelas abre-se a possibilidade para as quartas, visto que basta dobrar os baixos para chegar a esse efeito. Daí que não demorou muito para que os executantes do cantochão se arriscassem em intervalos de terça e de quinta.

Nas primeiras descrições do organum, que datam do século IX, a melodia do cantochão é interpretada por duas vozes – sendo a melodia principal, dita principalis, duplicada na quarta ou quinta inferior pela segunda voz – a organalis.

Era comum entre as diversas congregações da Igreja durante esse período o uso de melodias pré-estabelecidas, contendo uma melodia base – cantus firmus – e possibilitando o acompanhamento do que vão se tornar as melodias secundárias. Se em sua forma mais primitiva do organum a segunda voz se limitava a duplicar a voz original, com as elaborações mais complexas que vão surgindo as melodias da segunda voz passam a ganhar autonomia da principalis.

“Opa, errei pessoal, foi mal… mas… peraí! Vocês ouviram isso?”

Segundo Popper, eram justamente os organum da música litúrgica que permitiam a adição de outras vozes melódicas. Graças à prática religiosa, diferentes vozes cantando uma mesma melodia terminaram por criar resultados não intencionais, erros mesmos, algo não muito difícil de ocorrer na execução desse gênero. Em suma, o contraponto surgiu dos desacertos ao cantar em paralelas distintas.

Assim, o primeiro músico que viu as possibilidades de tornar a melodia secundária mais ou menos dependente da melodia fundamental terminou por “inventar” a polifonia. Não que tenha sido um insight genial, afinal era questão de tempo para os músicos medievais em diferentes lugares chegarem à mesma conclusão. Tanto que pouco depois se deram conta de que paralelas em quintas ou oitavas deveriam ser evitadas se se pretende criar um efeito de duas melodias independentes entre si. Em suma, o cantus firmus pode até impor limitações para o surgimento de outra melodia, porém, ainda assim, apesar dessas limitações, o contraponto irá surgir como se fosse uma melodia livremente inventada pela própria prática musical. Não há saída: a polifonia tinha de surgir.

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Viderunt Omnes, de Pérotin, exemplo de organum com mais de duas vozes

Evidentemente, com os avanços da polifonia o próprio desenvolvimento de uma notação musical cada vez mais detalhada se impôs, afinal obedecer as mudanças de ritmo eram essenciais e não havia mais uma única melodia em jogo.

Há aqui um interessante posicionamento de Popper. Como vimos antes, para ele fazer música não é muito diferente de fazer ciência. Ambas lidam com resolução de problemas e, mais ainda, procuram ordenar e sistematizar um quadro caótico que não faria sentido se não se submetesse a determinadas regras – começando pela mais básica tentativa e erro. Daí compreende-se o visível apreço de nosso autor pela conjectura histórica que permitiu o surgimento da polifonia – não, não pela Idade Média como um todo, mas pelas condições que gestaram uma nova técnica musical sem comprometer a tradição anterior. Ora, o contraponto surgiu sem funcionar como uma ruptura, antes é mesmo um sinal de continuidade. A canonização das melodias gregorianas significou menos uma coerção e mais um encaminhamento seguro para o novo mundo musical que a inovação representou – o dogma não foi engessamento, mas uma direção para um caminho seguro.

Assim, ele dirá que tanto a criação científica e a musical têm muito em comum, afinal são resultados de explorações, mas, sobretudo, de explorações que obedecem a regras, sempre buscando regularidades e simetria. Só com os devidos parâmetros consolidados é que a experimentação, a criação de novas possibilidades consegue resultados satisfatórios – e o surgimento da polifonia é o melhor exemplo disso. Por outro lado, experimentar por experimentar ou “se colocar” na música sem seguir princípios objetivos é uma ruptura nada bem-vinda, para não dizer uma ameaça.

Enfim, é isso. Fico feliz com a resposta obtida com a série, não só nos comentários que tivemos aqui, bem como no de nossa página no Facebook, e mesmo pessoalmente. E claro, gerou ainda uns bons comentários do Leonardo que precederam este final.

Este post pertence à série:
1. Karl Popper e a Música – Parte I
2. Karl Popper e a Música – Parte II
3. Karl Popper e a Música – Parte III

Este post tem 2 comentários.

2 respostas para “Karl Popper e a música – Parte III”

  1. Olá senhores, estou lendo essa serie de karl Popper, e gostaria de saber se existe a possibilidade de discutir o trabalho de Otto Maria Carpeaux, sobre a História da Música? Obrigado!

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