19abr 2017
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A Interpretação de Época – Parte I

Nikolaus Harnoncourt é uma das figuras mais importantes para o desenovolvimento da HIP.

Provavelmente a maior parte do público tomou conhecimento do termo Historically Informed Performance, performance historicamente informada (a partir de aqui vou usar a sigla inglesa, já consagrada, HIP), por volta da década de 60. Embora elas tenham explodido para o mainstream nos anos 60, não é ali que nós devemos colocar seu início, pois elas tiveram um início muito anterior, que remonta ao final do século XIX, com a expansão do repertório pré-clássico para além da música de Bach. Uma das características principais desse primeiro movimento foi um importante surto de edições e primeiras apresentações de óperas e outras obras antigas por volta de 1890-1910, quando uma larga parte das obras de grandes mestres como Händel, Monteverdi e Rameau foi primeiramente apresentada (o revival de Bach é historicamente anterior e pode-se considerar encerrado com a publicação do Bach Werkverzeichnis). De tudo isso, devemos considerar que o grande fruto do período não foi propriamente musical (as obras se mantiveram apenas com dificuldade no repertório), mas acadêmico, pois incentivou a expansão da crítica textual musical e publicou uma série de obras que são de valor inestimável.

Alessandro Longo
Alessandro Longo, o primeiro editor de Scarlatti

Um exemplo importante dessa primeira atividade foi a edição feita por Alessandro Longo das obras de Domenico Scarlatti. Algumas sonatas – as trinta primeiras do catálogo Kirkpatrick – tinham sido publicadas em vida pelo compositor e eram conhecidas do grande público. Sabemos, por exemplo, que a sonata K. 30 era conhecida de Clementi (a que a tradição diz ter-lhe dado o nome de “Fuga do Gato”) e que ela fazia parte dos programas dos concertos de Liszt. Mas a grande maioria das (quase quinhentas) sonatas de Scarlatti ficou em um manuscrito que era da propriedade da rainha Maria Barbara de Espanha – além de outras sonatas espalhadas por outras cópias. Longo foi o primeiro editor de Scarlatti que fez uma primeira recensão das fontes para suas obras e, entre 1906 e 1911, publicou em 6 volumes a primeira edição das sonatas pela editora Ricordi e assim fez disponível esse importante compositor do repertório para teclado.

No entanto, de uma maneira ou de outra, essas primeiras ações não obtiveram o sucesso desejável, especialmente nas obras de larga escala. Se o registro de estréias é grande para a primeira década do século, temos poucos exemplos de obras revistas e repetidas nas décadas subseqüentes, o que fica difícil de julgar se essa primeira onda foi por uma necessidade estética, ou mera curiosidade em relação à música do passado. Poucas coisas restaram dessa primeira onda no repertório comum, apenas algumas curiosidades como a ária “Ombra mai fù” de Händel, que tornou-se, desde então, uma verdadeira obsessão entre todos os cantores. Mas pouca coisa dessa época entra naquilo que comumente podemos chamar de “música antiga”. O movimento foi restrito e não gerou muita repercussão para além da academia e de um seleto grupo; seu maior fruto, além da primeira edição de um número imenso de obras, foi da criação de sociedades e escolas que posteriormente viriam a ser centrais nesse desenvolvimento, como a Schola Cantorum Basiliensis.

A partir daí o movimento sobreviveu de forma precária, tendo como base essas sociedades particulares. Em toda essa época, apenas Wanda Landowska conseguiu uma proeminência para além de um círculo de connaisseurs (na verdade, Landowska permaneceu por muito tempo, mesmo depois da explosão da HIP, como a única musicista HIP a exercer uma importante influência na história da música – foi ela, por exemplo, que influenciou De Falla e Poulenc a comporem suas obras para cravo), mas seriam esses grupos montados nos primórdios que viriam a formar os musicistas que fizeram a interpretação histórica explodir para o mercado e o mundo.

Porém, a verdadeira “revolução conservadora” deu-se no final dos anos cinqüenta e nos anos sessenta, em especial com os desenvolvimentos de jovens como Gustav Leonhardt e Nikolaus Harnoncourt, quando foram feitas as primeiras gravações num estilo que se dedicava a recriar as técnicas da época de Bach. Se uma palavra pode definir o que os grupos desses dois então bastante jovens músicos representaram, seria uma escolha difícil entre controvérsia e sucesso. A controvérsia foi sentida, e ainda o é, a cada vez que um grupo tenta expandir as “conquistas” da HIP para outras áreas do repertório, como um impacto, uma ameaça forte à cultura musical tradicional. Sucesso, porque, de certo modo, hoje, na cultura da sala de concetos da Europa, é inadmissível a execução de uma obra anterior a Beethoven com métodos que não aproveitem alguns dos maneirismos e “descobrimentos” das práticas de época.

Apenas esse dado revela o extremo sucesso que Harnoncourt, Leonhardt e seus companheiros obtiveram, mas há mais coisas que revelam a pujança dessa visão. Outro dado relevante é que os selos ligados mais fortemente a tais estilos: Harmonia Mundi, Naxos, Virgin, Brilliant, etc, são os que mais vêm obtendo sucesso no mercado, enquanto marcas tradicionais, de pouca ou nenhuma participação no movimento, aquelas que resolveram ficar com fatias mais tradicionais do mercado, todas estão em crise: Decca, EMI, Sony sobrevivem apenas graças a cross-overs.

Se hoje é possível ver Harnoncourt gravando a Aida ou o Requiem de Verdi, é-nos completamente inimaginável, nos dias de hoje, ver uma Paixão Segundo São Mateus gravada com instrumentos modernos; se na década de 70, Claudio Abbado gravou os concertos de Brandenburgo com uma interpretação fielmente “romântica”, sua leitura 30 anos depois é totalmente influenciada pelo movimento, a tal ponto de podermos imaginar a própria gravação de Abbado como um exemplo contemporâneo de música historicamente informada, ainda que Abbado seja um músico de “origem tradicional”. Assim vemos que a HIP não apenas conquistou seu repertório, quanto partiu para conquistar outras áreas insuspeitas e marcou profundamente a forma de se fazer música no século XX.

Continua…

Este post pertence à série:
1. A Interpretação de Época – Parte I
2. A Interpretação de Época – Parte II
3. A Interpretação de Época – Parte III
4. A Interpretação de Época – Parte IV

Este post tem 1 comentário.

Uma resposta para “A Interpretação de Época – Parte I”

  1. Um que também ganhou ribalta na primeira onda de resgate do repertório barroco e antigo foi Purcell, de onde a ária “When I am laid in Earth”, do final de Dido and Aeneas, também virou hit.

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