19abr 2017
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A Interpretação de Época – Parte III

Terminamos o último post falando das vantagens que a HIP trouxe ao descobrir informações importantes sobre a prática musical passada.

Detalhe de uma passagem do Klavierbüchlein para Wilhelm Friedmann, filho de J.S. Bach, podemos ver as marcas de dedilhado de Bach, que dão-nos uma idéia de como era o fraseado das escalas.

Entretanto, um fato interessante que praticamente todo o público leigo pode ignorar: não há exatamente um rigor científico na aplicação desses dados. Por exemplo, fraseados e interpretações fornecidos para um momento histórico e localização geográfica específica são aplicados pouco criticamente para todo o vastíssimo repertório da música antiga, de Cavalli a Buxtehude, de Monteverdi a Mozart. E, como mesmo alguns disseram, a HIP lida com a fórmula: “culpado até que prove inocente”, isto é, um dado obtido é utilizado para todo o repertório até que se encontre uma evidência em contrário.

Um exemplo curiosíssimo sobre como há mais um verniz científico do que uma pesquisa realmente séria é a utilização da afinação. A afinação mais baixa foi adotada como o dogma da interpretação de época, e vemos tal informação em muitos encartes de gravações (em especial nas mais antigas). Agora, o valor de lá médio 415 Hz é uma invenção desse grupo e não corresponde, em absoluto, ao que a pesquisa nos instrumentos antigos determinou. Esta nos mostra que tal valor varia muitíssimo e não é possível atingir um padrão comum – varia demais de lugar para lugar, de época para época. Além disso, qualquer pessoa que tenha estudado música sabe que o valor mais baixo (ou mais alto, algumas gravações da escola boêmia gostam de usar afinações extremamente elevadas) tem nenhuma influência na música em si – o que realmente influencia no desempenho musical e pode melhorar significativamente como uma obra soa é o seu temperamento, e, curiosamente, as HIP normalmente não usam temperamentos históricos.

É um fato de conhecimento geral que, embora haja distinções específicas de estilo, a HIP se caracteriza por uma série bastante comum de características. Dentre estas, os tempos mais rápidos parecem ser um costume universal, mas também a articulação mais destacada, próxima da dança, o reforço do acento, a preferência por grupos menores; no canto, o uso de vozes menores com um desgosto especial pelo vibratto do canto verista. O quadro é bastante coerente e creio que poucas interpretações historicamente informadas saiam disso.

Contudo, os dados empíricos que possuímos para a música mais recente, que obtemos a partir da invenção do metrônomo, e, mais recentemente, da gravação, mostra uma variação bem mais ampla do que esse quadro generalizado das HIP nos deixa saber. Por exemplo, as informações de marcas de metrônomo mostram que a variação dos tempi é imensa e que praticamente de geração em geração o gosto por tempos muda radicalmente. Além disso, a existência de regentes tão distintos como Furtwängler, Toscanini e Celibidache, ao longo do século XX, mostra que, se no mundo contemporâneo de repertório unificado e de viagens rápidas, a variação estilística, seja individual, seja nacional, é imensa, correto seria supor que ela fosse ainda maior em uma época em que os contatos com regiões distantes eram bem mais infrequentes.

Ademais, muitas das escolhas interpretativas revelam certa arbitrariedade. O exemplo do canto é o mais frutífero para mostrar os vários problemas que as HIP oferecem: estamos, quando alguns dos conjuntos já completaram mais de 50 anos, já acostumados com o tipo ideal de voz HIP, pequena, poucos harmônicos, leve, evitando o legato pesado e, principalmente, o vibratto. A versão oficial, presente, por exemplo, na edição do Orfeo de Harnoncourt é de que a música vocal da época era executada em ambientes menores do que os grandes teatros como o MET e o Scala, e que, portanto, as técnicas veristas são apenas descobertas recentes para se projetar a voz em um ambiente maior. No entanto, em tratados de canto mais antigos, como o de Caccini, elogia-se exatamente o oposto do que é feito hoje: o vibratto é visto como uma qualidade, e o legato como um elemento central no canto. A visão historicamente informada de canto é quase que uma ficção.

E não pára por aí. Mais ainda característico do que as vozes pequenas sem vibratto é o som do contratenor. Hoje praticamente toda montagem de ópera barroca tem que ter um contratenor que se preze: se o ouvinte comprar uma ópera de Händel sem um contratenor, ele vai se sentir logrado, e não vai achar que esteve em uma performance historicamente informada (e isso é sério)… A atividade renasceu principalmente com os esforços do contratenor inglês (e esse dado vai se mostrar logo importantíssimo) Alfred Deller, que ajudou a propagar a arte e muito fez por isso. Hoje é uma arte que se desenvolveu muito e contamos com diversos falsetistas de grande capacidade musical, como David Daniels, Jaroussky, Scholl e muitos outros.

Mas se formos analisar a origem do contratenor veremos alguns dados fascinantes.

Alfred Deller, o grande contratenor inglês.

O primeiro é que homens falsetistas existiram na Idade Média quase inteira, mas com o surgimento dos cantores castrados eles caíram em desuso em todo o continente. Porém, na Inglaterra reformada, tal atividade permaneceu intocada e os contratenores tornaram-se uma particularidade da música anglicana. No continente, o falsete foi uma arte que logo morreu, possuímos até o nome do último falsestista: Juan Santos, morto em 1652, tal como temos o ano da morte do último castrato, Alessandro Moreschi. Tanto em um caso, como no outro, largamente atestado, devemos considerar que a arte já estava em uma longa decadência.

Subsistindo apenas na Inglaterra, a presença de um contratenor na música de Bach ou Vivaldi é profundamente anacrônica (mais até do que a presença de mulheres, largamente documentada). Mas o melhor ainda está por vir: Händel, ao contrário de Bach e Vivaldi, morou efetivamente na Inglaterra e tomou conhecimento dessa tradição. Porém, o uso que Händel fez de contratenores é, no máximo, limitado e, mais ainda, na falta de castratos, ele simplesmente recorria a… mulheres, que eram consideradas as substitutas ideais.

Há razões importantíssimas para essa escolha de Händel. A voz de falsete tem uma estrutura de harmônicos bem diferente da voz infantil, da qual a voz do castrato é apenas uma continuação. Ou seja, não podemos considerar o falsete um substituto do castrato, mas um tipo de voz totalmente independente, com seu próprio repertório e interesse. Só que não é esse o raciocínio da HIP, que transformou, da maneira mais anacrônica possível, a voz do castrato em um elemento pervasivo na música historicamente informada.

Isso mostra que as escolhas dos intérpretes não são sempre “objetivas” como podíamos imaginar da primeira vez. Na verdade um dos elementos principais da HIP é o choque, e nada mais chocante do que ver um homem feito cantar com a voz infantil do contratenor.

O maior motivo disso é que a HIP não pode ser considerada exatamente uma escolha acadêmica e desinteressada. Ela é um fim estético e representa mais uma maneira de se ver a música do que um fim objetivo e desinteressado, afinal, como disse antes, é música e não academia. Tendo isso em mente, muitas das escolhas feitas pela HIP podem ser interpretadas mais corretamente. São, afinal, escolhas estéticas determinadas pelo gosto e por alguns princípios de seus participantes.

Este post pertence à série:
1. A Interpretação de Época – Parte I
2. A Interpretação de Época – Parte II
3. A Interpretação de Época – Parte III
4. A Interpretação de Época – Parte IV

Este post tem 5 comentários.

5 respostas para “A Interpretação de Época – Parte III”

  1. Prezado Bruno (e demais editores do blog),

    Primeiramente, parabéns pelo trabalho de altíssima qualidade! Sinto o DNA do velho Alegrobr presente, no que ele tinha de melhor!

    Tenho uma dúvida com relação ao trecho: “qualquer pessoa que tenha estudado música sabe que o valor mais baixo (…) tem nenhuma influência na música em si”. O que exatamente prega-se aqui? Quero dizer, o que não se modifica na música por conta das diferentes afinações utilizadas? A melodia/harmonia ou a sonoridade resultante?

    No primeiro caso, não há dúvidas que não há diferenças. Mas se for o segundo caso, tomo a liberdade de discordar.
    Sem entrar no mérito de qual afinação era realmente utilizada na época dos compositores, sinto que a sonoridade da música é, de fato, afetada significativamente pelo padrão utilizado (que pode significar uma diferença de afinação de quase meio tom, ou seja, praticamente uma mudança de tonalidade)! Eu já tive o prazer de cantar peças segundo um padrão HIP, no caso o próprio Messias de Haendel citado aqui como exemplo (com o professor Edmundo Hora, da Unicamp/Campinas). Ensaiamos (coro) com piano “normal” (afinação 440), exceto a partir dos ensaios gerais, quando passamos a ser acompanhados de cravo e demais instrumentos de época (todos com afinação 415). E posso afirmar que, pelo menos do ponto de vista do musicista, a música parece ser outra. Soar de forma diferente, passar um sentimento diferente.

    Seria isso uma “ilusão sonora”? Ou mesmo algo que só se torna perceptível para quem executa a peça?

    As mais calorosas saudações,
    Volnei

  2. Caro volnei,
    Obrigado pelos elogios, volte sempre aqui. Imaginamos esse blog não apenas um lugar para nós, mas sim para ampliar as discussões, então comentários como o seus são mais do que bem vindos!

    Do ponto de vista do intérprete é que essas diferenças são maiores, especialmente de um intérprete de um instrumento não temperado – como cordas ou canto – soa realmente como outra música porque você está, de fato, cantando notas diferentes. E sim, é claro que, no frigir dos ovos, soa como se o Messias fosse um tom abaixo em tudo, então nesse ponto sim, é claro que a sonoridade é diferente.

    Mas essa diferença, como era o ponto do argumento no texto, é meramente superficial, porque dentro da música, as relações proporcionais continuam as mesmas. O que muda, e bastante, o conteúdo musical é o temperamento, aí alguns acordes vão soar ainda mais consoantes, algumas dissonâncias vão ser mais fortes, o que mode mudar em muito a sensação da música. Ouvir, por exemplo, Machaut com uma afinação medieval, eu ouvi uma vez, dá uma sensação bem diferente e fascinante.

    Mas claro que, voltando ao primeiro ponto. Além dessa diferença que o intérprete sente, há sim algumas diferenças sutis entre tonalidades causadas por uma diferença de afinação: por exemplo, na voz humana, a passagem continua sendo feita na mesma freqüência, e as cordas vocais não estão interessadas em saber se é lá ou sol, vai ser sempre na mesma freqüencia que vai ter a passagem.

    Desse outro ponto de vista sim, é verdade que algumas mudanças serão notadas, imagina uma ária de Bach em que a linha melódica fica insistente num ponto desconfortável da voz humana, nesse caso, é inegável que uma mudança de afinação muda significativamente o próprio timbre da voz e da música.

    E isso vale não somente para o canto porque o corpo humano e cada instrumento tem seu ponto de ressonância, que faz com que o timbre mude sutilmente de uma afinação para a outra. Eu lembro que meu piaano foi afinado uma vez com uma afinação extremamente baixa, lá 430, e eu não em esqueço que as notas fá’s e sib’s ficaram um caráter muito esquisito, provavelmente tinha a ver com a ressonância do próprio piano que interferia na produção do som.

    Mas tudo isso são mudanças que, ao menos para mim, são relativamente superficiais perto da mudança bastante signifiticativa que traz uma mudança de temperamento, aliás, esse é um produtivo assunto para um post posterior, que como você pode ver nessa resposta, dá muito assunto.

    Não sei se é isso que você sente ou é outra coisa.

    Bruno

  3. Alô Bruno! O lance do fá e si bemol que soou esquisito no seu piano, nós da turma das cordas com arco chamamos de “lobo”. No violoncelo, fica bem perto do fá, mas se vc afinar diferente ele pode mudar de lugar.

  4. Prezado Bruno,

    Muito obrigado pela atenção e resposta. Entendi seu ponto, e concordo que uma mudança como o temperamento apresenta impactos mais estruturais do que uma “transposição” de afinação, embora não signifique que a sonoridade não seja afetada no segundo caso.

    Com certeza para o instrumentista há um impacto extra, no caso do “lobo” citado por você e pelo Amancio. E isso acaba se refletindo também na sonoridade resultante, corroborando ainda mais com a tese.

    Parabéns novamente pelo trabalho,
    Volnei

  5. Bruno,
    Chego atrasado nesta polêmica, que me interessa bastante e talvez faça de mim um herege. Em todas as vertentes culturais, as revoluções e modismos -importantes e necessários,bem entendido – adquirem contornos de ideologia e extrapolam os princípios originais, assumindo desdobramentos novos, cláusulas secundárias e cânones paralelos. Acabamos testemunhando um partidarismo que dogmatiza.
    Por vezes, carecemos de desambiguação, pois interpretações Modernas usam instrumentos antigos ,enquanto versões Antigas adotam instrumentos modernos.
    Podemos dizer que a HIP nem sempre exigirá viola da gamba ou o “abjeto cravo da Wanda” porquanto a “informação histórica” pode ser objetiva para 1850. Como os instrumentos eram bastante diferentes no Barroco, é por aquelas bandas que a HIP jorrou suas erupções iniciais.
    A meu ver, a coisa ficou meio fanática. Em resposta à moda “pesada”, a reação (“choque”) generalizou a leveza saltitante, a rapidez e a transparência….iguais em Monteverdi ou Beethoven. As virtudes HIP são transpostas para onde elas não mais caberiam. As Nove de Beethoven são regidas por Gardiner no mesmo “padrão de qualidade”. O adágio fúnebre da Eroica vira andante, como quase todos os HIP, na obsessão por velocidade. De resto, as oito primeiras estão razoáveis. Na Nona, a transpar~encia e a rapidez fazem os maiores estragos. Ora ,o Beethoven da Nona e dos últimos quartetos difere enormemente do da primeira fase, assim como a Europa de 1825 nao era a de 1800. Se fôssemos radicalizar sobre os instrumentos que o compositor tinha, teríamos de tocar a metade das sonatas de Beethoven e todas as de Haydn-Mozart no pianoforte.
    Muito bem lembrado o anacronismo da adoção pela HIP do dogma do contratenor. Falsete e castrado são coisas diferentes. Em alguns oratórios fica muito bem um contratenor cálido como James Bowman. Nas óperas ,eles podem ficar melhores no visual. Se no palco é estranho um homem com voz infantil, julgo mais estranho um Orlando Furioso interpretado por mulher. Sim, o uso de contraltos para mancebos estende-se a Mozart e até mesmo R.Strauss. Mas prefiro ver um Graham Pushee cortejando Cleopatra em Sydney, a ver Janet Baker como César. Porém, os contratenores são uma questão à parte.
    O Messias de Beecham soa tão diferente porque baseado em Eugene Goossens (pratos na orquestra romântica) que revisara o oratório como já fizera Mozart. Em compensação, Christophers usa doze coralistas e doze instrumentistas. Aí também é dose! Na “versão original”, o pesadão é M Sargent, outra dose gorda. Assim, temos uns 50 Messias diferentes e talvez nenhum perfeito.
    Muito bons e lúcidos os teus quatro posts, Bruno. Favor recomendar este meu comentário ao Frederico. Abraço

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