Musicólogos ainda hoje discutem a origem da palavra concerto. Uns dizem que vem do latim concertatum, do verbo concertare, que significa competir ou lutar; já outros dizem que vem de consertum, do verbo conserere, que significa entrelaçar, fazer nó. A discussão é boa, pois se alguns concertos lembram um diálogo musical entrelaçado, outros parecem uma grande disputa entre as partes.
A origem do concerto remonta ao final do século XVII, quando orquestras de cordas passaram a executar sonatas para instrumentos solos. Aproveitando a novidade, compositores italianos começaram a explorar o contraste entre solos e tuttis. Se alguns preferiram trabalhar com um grupo de músicos solistas (o que originou o concerto grosso), outros preferiram dar maior destaque ao solista do primeiro violino. Rapidamente outros instrumentos foram convidados a fazer parte da brincadeira, e já no início do século XVIII era comum encontrar concertos para flautas, oboés, violoncelos e fagotes.
O modelo de concerto que Vivaldi ajudou a construir ficou conhecido como Concerto Italiano, ou concerto all’italiana, e acabou sendo copiado até por não-italianos, como Bach e Händel. Bach inclusive fez várias transcrições de concertos de Vivaldi para cravo, justamente para poder aprender o estilo, e aplicou-o com sucesso em várias de suas obras, como por exemplo nos Concertos de Brandenburgo ou no Concerto Italiano BWV.971.
Mas vamos voltar ao Vivaldi, porque só falta um concerto para terminar a série das Quatro Estações!
Soneto
L’Inverno | O Inverno | |
Agghiacciato tremar tra nevi algenti Al severo spirar d’orrido vento, Correr battendo i piedi ogni momento; E pel soverchio gel batter i denti; |
Tremer congelado em meio a neve fria Ao rigoroso expirar do horrível vento, correr batendo os pés a todo momento; E pelo excessivo frio bater os dentes; |
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Passar al foco i dì quieti e contenti Mentre la pioggio fuor bagna ben cento Caminar sopra il ghiaccio, e a passo lento Per timor di cader girsene intenti; |
Passar os dias calmos e felizes ao fogo Enquanto a chuva lá fora molha a tudo Caminhar sobre o gelo, e devagar Por temor de cair nesse intento; |
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Gir forte sdruzziolar, cader a terra Di nuovo ir sopra ‘l giaccio e correr forte Sin ch’il giaccio si rompe, e si disserra; |
Andar rápido e escorregar, cair no chão De novo andar sobre o gelo e correr rápido Sem que o gelo se rompa e se dissolva; |
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Sentir uscir dalle ferrate porte Scirocco, Borea, e tutti i venti in guerra Quest’è ‘l verno, ma tal, che gioia apporte. |
Ouvir sair das fechadas portas Siroco (*), Bóreas e todos os ventos em guerra Este é o inverno, mas tal que alegria traz. |
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(*) Falamos sobre Bóreas no post do Verão. Siroco é vento sudeste que sobe do Saara, responsável por tempestades no Mediterrâneo e que atinge o sul da Europa trazendo frio e umidade.
Concerto para violino, cordas e contínuo Op.8 nº4 RV.297 em Fá menor – “Inverno”
1º mov.: Allegro non molto
As notas repetidas representam o Tremer congelado do frio…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-12.mp3|titles=2. Horrível vento – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 1. Allegro non molto (Fabio Biondi – Europa Galante)]… que é trazido pelo Horrível vento de inverno.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-13a.mp3|titles=3. Correr e bater os pés pelo frio – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 1. Allegro non molto (Fabio Biondi – Europa Galante)]Para esquentar o corpo, é necessário Correr e bater os pés pelo frio…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-13b.mp3|titles=4. Ventos – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 1. Allegro non molto (Fabio Biondi – Europa Galante)]… desafiando os Ventos gelados que sopram nos baixos.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-14.mp3|titles=5. Bater os dentes – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 1. Allegro non molto (Fabio Biondi – Europa Galante)]Mesmo assim, o corpo continua a Bater os dentes involuntariamente.
2º mov.: Largo
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-20.mp3|titles=6. A chuva – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 2. Largo (Fabio Biondi – Europa Galante)]Esta é A chuva caindo lá fora (conseguem ouvir os pingos?).
3º mov.: Allegro
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-31.mp3|titles=7. Caminhar sobre o gelo – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]Eis o violino tentando Caminhar sobre o gelo.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-32.mp3|titles=8. Caminhar devagar e com cuidado – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]Para isto, é necessário Caminhar devagar e com cuidado.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-33.mp3|titles=9. Andar rápido e escorregar – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]Confiante, ele começa a Andar rápido e escorregar (o “escorregar” é o mais descritivo de todos).
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-34.mp3|titles=10. Cair no chão – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]E é inevitável Cair no chão.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-35.mp3|titles=11. Correr rápido – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]Agora o violino solo precisa Correr rápido sobre o Gelo, este último representado pelas notas longas nos primeiros e segundos violinos.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-36.mp3|titles=12. Sem que o gelo se rompa – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]Ele precisa ser rápido e cuidadoso Sem que o gelo se rompa.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-37.mp3|titles=13. O vento Siroco – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]O vento Siroco sopra suave, até dar de frente com…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/09/Vivaldi297-38.mp3|titles=14. O vento Borea e todos os ventos – Vivaldi: Concerto Op.8 n.4 RV.297 “Inverno” – 3. Allegro (Fabio Biondi – Europa Galante)]… O vento Bóreas e todos os ventos (Bóreas é o vento frio do norte, lembram?).
O 2o. mov. fez muito sentido agora, com o sentimento de alegria junto à lareira e os pizzicatti como os pingos de chuva caindo fora da casa. No. 3o., a tentativa de caminhar sobre o gelo e escorregar também ficou bem clara. E o encontro dos ventos deu bem um ar de gran finale à série.
Mas Vivaldi preferia mesmo o frio, hein? Depois do retrato terrível do Verão, me termina o inverno dizendo: “Este é o inverno, mas tal que alegria traz”.
Parabéns pela série! Deu pra aprender bastante.
Grande Amancio!
Estou maravilhado com os seus posts sobre Vivaldi! Aliás, o sobre O Moldávia também ficou sensacional! Acredite: minha mãe me telefonou exclusivamente para dizer, na época, que estava adorando conhecer a bela obra de Smetana pelo seu post. Ela está viajando agora. Mas, na sua volta, vou indicar os seus novos posts vivaldianos para ela apreciar, pois Vivaldi é o preferido dela! ;)
Abraços e parabéns!
Valeu, amigos! Obrigado pelas palavras!
Aprendi muito,pois toco esta parte do 1º andamento na Banda Filarmonica de Quiaios,os pingos da chuva lá fora feitos com as tubas é de arrepiar,enquanto se mantém a melodia entre a flauta e o clarinete solistas,as pessoas emocionam-se ao ouvir quando a tocamos nas Igrejas nos concertos de Natal
Fenomenal. Procurei pela net e não estava a encontrar analises nenhumas em inglês. Afinal havia em português! Parabéns pelo blog e obrigado por disponibilizares esta análise. Agora já percebo a diferença entre o verão e o inverno de Vivaldi. Continuarei a visitar.
Muito boa essa série. O formato didático da seleção de trechos para a análise eu recomendo aos professores (eu sou um deles) de história e/ou análise da música. E venho recomendando a leitura do blog aos meus alunos.
Só um detalhe mínimo na abertura da postagem: “musicologista” ficou estilo google tradutor, rs. Somos musicólogos.
(risos) Obrigado Joêzer, acabei de corrigir! Outro dia recebi um email de um leitor amigo alertando que eu havia colocado crase na expressão “vale a pena”, e realmente eu nem tinha percebido. Às vezes acontece.
Amigo, maravilhosa é essa sua explicação sobre Inverno, nunca encontrei nada assim.
O que é engraçado é que eu sempre pensava que a musica retratava uma pessoa com hipotermia :D
Obrigada pela sabedoria compartilhada!
Compartilho este link, destes músicos fabulosos.
The Piano Guys (Let it go & Vivaldi’s winter) – utilizam, pelo que percebi, correr e bater os pés e, Bóreas. Maravilhoso medley.
http://www.youtube.com/watch?v=6Dakd7EIgBE
Abraços!
Depois disso, As Quatro Estações jamais será a mesma para mim. Deixa de ser apenas um Concerto e passa a ser uma verdadeira aventura musical onde ao ouvi-la eu mesmo atravesso – deverasmente – as Quatro Estações. Grato por nos enrriquer em compreensão e nos aprimorar o prazer.
JFarias
Muito obrigado…. sempre goste mais do inverno
:)
Conjunto de análise simplesmente maravilhoso! Como disse o JFarias, As Quatro Estações nunca será a mesma depois do que aprendi aqui. Muito obrigado pelo conhecimento compartilhado!
Tiago Doreia
Muito boa a análise. Completa e absolutamente explicativa com os trechos dos movimentos e dos sonetos.
Parabéns aos envolvidos e obrigada por compartilhar conosco.
Abraços carinhosos,
Laís
Sem palavras… Estou emocionada e feliz de ter encontrado este post. Parabéns
Vivaldi é um dos mestres da Música Universal e é um erro tentar enquadrá-lo como um “um compositor barroco” que foi esquecido e depois reapareceu! Se suas partituras sempre estiveram nas cortes e igrejas europeias sendo estudadas e copiadas, há um problema, sim, de falta de boa vontade para reconhecer isso! Quando musicólogos e historiadores sérios entram em ação as lendas somem e a verdade aparece! Na época chamada barroco Handel e Bach eram músicos mais localizados (Inglaterra e regiões da atual Alemanha, respectivamente)! Somente aos poucos se italianizaram a la Palestrina; a la Lulli/Lully, a la Albironi e a la Vivaldi. Os latinos sempre partiram na frente e eram acompanhados posteriormente pelos demais em todas as artes… Vivaldi e L`estro Armonico foram muito mais influentes que qualquer concerto de Bach, Handel, Haydn Etc. e foi publicado por Vivaldi no seculo XVIII, o que evitou atribuí-lo a Bach como os alemães adoram fazer! O maioral dos concertos, do virtuosismo instrumental e vocal sempre foi e sempre será Vivaldi
Aqui um presentinho instrumental ( o N°10) …se deliciem com a genialidade do Padre Ruivo (que tocava isso pessoalmente) com esses virtuosíssimos
https://www.youtube.com/watch?v=9nvYfmqIbWU
Aqui um presentinho vocal da ópera mais perfeita de todos os tempos (uma ária da ópera “Orlando Furioso” de Vivaldi)
https://www.youtube.com/watch?v=PT_k42goDdU
Esses meninos de Viena têm que respeitar os mestres italianos a quem muito devem
Att,
J Sabino
Estou em casa devido a quarentena do corona virus e este estudo é perfeito, obrigada
Nunca havia encontrado um site onde houvessem comentários tão valiosos e em português, amei o seu conteúdo!
Parabéns!
Obrigada por esse trabalho!
De hoje em diante, a experiência de ouvir “As quatro estações” será ainda mais emocionante.
Muito obrigada por compartilhar seu trabalho. Fantástico e me permitiu conhecer um pouco sobre a maravilhosa obra de Vivaldi. Não sou do ramo da música, mas sempre tive curiosidade para conhecer alguns detalhes sobre As quatro estações. Parabéns!
O mundo ocidental é latino, nas artes tudo era criado lá, os demais artistas do mundo não latino viajavam para saber o que os italianos, principalmente, estavam fazendo, do gótico ao barroco. Uma estátua de Lorenzo Bernini é mais relevante em termos do âmago da arte que toda a literatura de Shakespeare.
Estou encantada com essa explicação sobre a obra. Sou amante da obra só pela sonoridade incrível, mas com vc pude sentí-la de uma forma incrível !!!! Estou maravilhada. Parabéns!!!!!
O lirismo do movimento central do Inverno costumo oferecer como sugestão de interlúdio para o sacramento das alianças em casamentos religiosos: esclareço que sou formado em música clássica para órgão e toco este movimento reduzido para solo de meu instrumento.