19abr 2017
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240 anos de Beethoven: 10 momentos bizarros – Parte I

Beethoven com a Missa solemnis, retrato de Joseph Karl Stieler (1819)

Mais ou menos no dia 17 de dezembro de 1770, talvez ali entre a meia-noite e os primeiros minutos, nasceu Ludwig van Beethoven – o que lhe confere hoje 240 anos de aniversário! Como em nossa cultura as datas redondas nos incentivam a reforçar coisas importantes e a refletir sobre outras tantas, este post vem fazer a parte de Euterpe na homenagem.

Introdução

Um dos critérios gerais mais importantes que diferencia a mentalidade do artista do século XVIII e o do século XIX, que o vincule ao espírito clássico ou romântico, é a relação desse artista com a forma: um clássico parece separar forma e intenção – isto é, ele se expressa e cumpre suas intenções artísticas inserindo-se no repertório de formas criadas pela ocasião em que se relaciona com o público -, enquanto o romântico, pelo contrário, parece não separar forma e intenção, pois valoriza que a forma se molde como metáfora da sua individualidade, e o público que se ache no meio disso. Beethoven é um artista que atravessou um período de transição desses períodos e os extrapolou, justamente por ter a forma e os valores racionais e positivos do classicismo como princípios de linguagem, e ao mesmo tempo interferir constantemente nas formas clássicas com um ardil de tal forma inovador que desafia o sentido da convenção. E é esse ardil que manipula a forma com autoridade – e que não deixa de criar aquilo que parecia já estar germinado na própria forma – o que torna Beethoven surpreendentemente moderno: em cada obra, quando vamos olhar a partitura, encontramos uma surpresa, a busca por uma solução exclusiva. Como nem sempre nós, ouvintes de MP3 que ouvem música conversando pelo MSN, percebemos esses ardis, Euterpe brinda o aniversário de Beethoven selecionando dez momentos bizarros em sua obra – aqueles momentos surpreendentes, incomuns, mas que aliam engenho e arte, com inteligência e naturalidade. Vamos lá!

1. Recitativo em música instrumental

É sempre curioso quando a música instrumental emprega recitativos, um recurso próprio da música vocal – quando o cantor adota os ritmos da fala comum para pronunciar um texto em prosa. Um dos exemplos mais misteriosos na obra de Beethoven acontece na Sonata para Piano No. 17 em Ré menor Op. 31 No. 2 (1801), conhecida como “Tempestade”. A abertura da sonata é um arpejo da primeira inversão de Lá maior, a dominante da tônica da sonata, Ré menor:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Piano-Sonata-No.-17-in-D-minor-Op.-31-No.-2-1.-Largo-Allegro-a.-Arpeggio-András-Schiff-2005.mp3|titles=Beethoven – Piano Sonata No. 17 in D minor Op. 31 No. 2 – 1. Largo – Allegro – a. Arpeggio (András Schiff – 2005)]

Quer dizer, ao invés de iniciar a sonata com uma abertura enfática da tônica, o que há é um arpejo de efeito incerto, meio transcendente, com a inversão do acorde. O arpejo ainda é repetido mais uma vez nesse começo, mas a partir daí a sonata segue em andamento rápido, como se nada tivesse acontecido. Então chega o Desenvolvimento, o arpejo volta com novas harmonias, e, quando aconteceria a Reexposição, a música começa a falar!

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Piano-Sonata-No.-17-in-D-minor-Op.-31-No.-2-1.-Largo-Allegro-b.-Speech-I-András-Schiff-2005.mp3|titles=Beethoven – Piano Sonata No. 17 in D minor Op. 31 No. 2 – 1. Largo – Allegro – b. Speech I (András Schiff – 2005)]

É uma espécie de frase que a gente ouve ser pronunciada. A sonata ainda tenta seguir adiante com o tema principal…

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Piano-Sonata-No.-17-in-D-minor-Op.-31-No.-2-1.-Largo-Allegro-c.-Reexposition-Main-Theme-András-Schiff-2005.mp3|titles=Beethoven – Piano Sonata No. 17 in D minor Op. 31 No. 2 – 1. Largo – Allegro – c. Reexposition – Main Theme (András Schiff – 2005)]

…mas o ar etéreo do arpejo trazendo o recitativo, dessa vez abrindo em dó maior, ainda pronuncia mais uma vez as tais palavras:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Piano-Sonata-No.-17-in-D-minor-Op.-31-No.-2-1.-Largo-Allegro-d.-Speech-II-András-Schiff-2005.mp3|titles=Beethoven – Piano Sonata No. 17 in D minor Op. 31 No. 2 – 1. Largo – Allegro – d. Speech II (András Schiff – 2005)]

É preciso exorcizar essa visão pra seguir adiante, com acordes e arpejos de bravura esfregando os olhos e despertando de uma vez:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Piano-Sonata-No.-17-in-D-minor-Op.-31-No.-2-1.-Largo-Allegro-e.-Exorcism-András-Schiff-2005.mp3|titles=Beethoven – Piano Sonata No. 17 in D minor Op. 31 No. 2 – 1. Largo – Allegro – e. Exorcism (András Schiff – 2005)]

O mais assustador é que no segundo movimento é exatamente esse arpejo que aparece logo no começo, e daí pra nunca mais. O que essas passagens querem dizer pra sonata, vocês tentem me dizer!

Outros exemplos de recitativo em música instrumental em Beethoven é o da Sonata No. 31, no comecinho do último movimento, e na Sonata No. 29, a “Hammerklavier”, na introdução à fuga do último movimento.

2. Decisão final e Assassinato do tema

Beethoven consolida aquela expectativa moderna de um gran finale, pois seus finais são sempre importantes, sempre formando um arco simétrico com a intensidade do início da obra. Há uma consciência da performance temporal da experiência musical, e a ordem dos acontecimentos é usada para criar e acumular algumas surpresas até o último instante da música. O Quarteto para Cordas No. 16 em Fá maior Op. 135 (1826), das últimas coisas que Beethoven escreveu, tem desse caráter propriamente beethoveniano de uma trajetória que só decide e resolve os seus problemas dramáticos (alegria ou tristeza?, triunfo ou danação?) no final da obra. E nesse clima de que ainda não temos nada de definitivo – clima de do-or-die –, o último movimento abre com uma introdução terrível, muito grave:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-String-Quartet-No.-16-in-F-major-Op.-135-1.-Grave-ma-non-Troppo-Tanto-Melos-Quartett-1984.mp3|titles=Beethoven – String Quartet No. 16 in F major Op. 135 – 1. a. Grave ma non Troppo Tanto (Melos Quartett – 1984)]
Manuscrito de Beethoven com as palavras “Muss es ein?”

Beethoven escreveu sob as primeiras notas desse tema as palavras “Muß es sein?” (“Deve ser isso?”). As palavras se encaixam no ritmo das primeiras notas, então é como se pudéssemos ouvir o cello e a viola cantando “Muuuß es seeein?”. Sempre a essa frase, os violinos cantam um lamento, até que chega um ponto em que começam a soltar como que gritos estridentes de desespero! Há uma oposição clara entre cello e viola (graves) x violinos (agudos).

Mas depois desse período inicial do movimento em que a gravidade põe em risco uma resolução mais otimista para a obra, surge um tema novo, mais rápido e aberto:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-String-Quartet-No.-16-in-F-major-Op.-135-1.-b.-Allegro-Melos-Quartett-1984.mp3|titles=Beethoven – String Quartet No. 16 in F major Op. 135 – 1. b. Allegro (Melos Quartett – 1984)]
Manuscrito de Beethoven com as palavras “Es muss ein!”

Sob essas primeiras notas Beethoven escreve “Es muß sein!” (“Deve ser isto!”), e ouvimos o violino saindo e cantando “Es muuuß sein!” quase como Arquimedes saindo pelado da banheira gritando “eureka”. É o verdadeiro “ser ou não ser” da música, e a partir daqui sabemos que o tom da conclusão da obra terá outro rumo, um rumo conquistado depois de uma difícil decisão. Esse tipo de dilema dramático e existencial também acontece em obras como a Quinta Sinfonia, o Quarteto “Serioso” e a Nona Sinfonia, nesta última com as idéias sendo literalmente negociadas na frente do ouvinte, quando os contrabaixos vão rejeitando os temas anteriores da obra até brindarem o Tema da Alegria.

Voltando ao nosso quarteto, o tema dramático da introdução ainda vem receber um tratamento especial: ele volta no Desenvolvimento, e é literalmente rabiscado, anulado pelos violinos!

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-String-Quartet-No.-16-in-F-major-Op.-135-1.-c.-Muss-es-ein-x-Es-muss-ein-Melos-Quartett-1984.mp3|titles=Beethoven – String Quartet No. 16 in F major Op. 135 – 1. c. Muss es ein x Es muss ein (Melos Quartett – 1984)]

É como se aos gritos o terror pudesse ser dissipado, e o “Es muß ein” agarrado com uma esperança indobrável. No fim não resta dúvida: é o “Es muß sein!” quem dá a última palavra (ufa!) para a conclusão da obra.

3.Variação-silêncio, Variação-acompanhamento e Notte e giorno faticar

Beethoven teve novas maneiras de pensar a variação musical, pois não tratou a variação meramente como ornamento à música, mas como transformações de toda ordem, desde o sentido de uma ampliação até o de uma desconstrução do tema. Eu considero as 33 Variações Diabelli Op. 120 (1823) a obra de Beethoven mais difícil de ter seu sentido entendido pelo ouvinte, porque cada variação tem atitiudes puramente musicais que, por mais radicais, exigem ouvidos que ouvem música, mais do que o efeito dos sons. Mas vou destacar três variações que fazem coisas absurdas o bastante pra serem reconhecidas.

A primeira é a Variação No. 13, em que Beethoven transforma o tema original escrito por Anton Diabelli:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Diabelli-Waltz.mp3|titles=Diabelli – Waltz (excerpt)]

…em silêncio!:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Diabelli-Variations-Op.-120-Variation-13-M.-Pollini-1998.mp3|titles=Beethoven – Diabelli Variations Op. 120 – Variation 13 (M. Pollini – 1998)]

O tema escrito por Diabelli é propositalmente muito simples, de muitas notas repetidas. E aqui, ao invés de Beethoven repetir as notas, ele repete é o silêncio mesmo, fazendo as notas saírem do pulso do compasso para darem espaço às pausas (notem na partitura como ele repete a figura das pausas como se fossem notas). E o resultado é extremamente irônico, claro, fazendo parte das variações que “parodiam” o tema original.

Na Variação No. 20, o tema é reduzido de tal maneira que a sua estrutura harmônica é colocada a nu, e o que sobra é apenas o acompanhamento do tema!

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-33-Variations-on-a-Waltz-by-Diabelli-Op.-120-21.-Variation-20.-Andante-D.-Barenboim-1997.mp3|titles=Beethoven – 33 Variations on a Waltz by Diabelli Op. 120 – Variation 20. Andante (D. Barenboim – 1997)]

O resultado é algo estático e enigmático, é como se dissecássemos a música e experimentássemos vê-la com fascínio por dentro. Mas mesmo com a escolha de reduzir um tema ao acompanhamento, há variação, pois a harmonia é bastante deformada, desafiando a percepção monótona dos acordes. Mesmo tendo sido escrita em 1823, parece até experiência de música moderna, e tenho até o receio de que, destacando esses exemplos a quem não conhece a obra, ela pareça “vanguardista” e “experimental” no sentido mais formalista e menos verdadeiro artisticamente, quando na verdade são variações que seguem com muita naturalidade uma continuidade musical, e que soam muito espontâneas na seqüência da obra. Ao mesmo tempo, se há tamanha ironia com o tema é justamente porque na parte dessas variações a obra atravessa uma relação de “conflito” com ele, atacando-o com paródioas e com reduções.

Sobre reduzir a música ao acompanhamento, Beethoven ainda experimentaria algo parecido em uma das variações do Quarteto para Cordas No. 14 em Dó sustenido menor Op. 131.

E finalmente na Variação No. 22 Beethoven faz mágica: ele transforma, sem fugir da estrutura da variação, o tema do Diabelli em outra música, a primeira ária do Leporello na ópera Don Giovanni de Mozart, “Notte e giorno faticar”:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-33-Variations-on-a-Waltz-by-Diabelli-Op.-120-23.-Variation-22.-Allegro-molto-alla-Notte-e-giorno-faticar-di-Mozart-D.-Barenboim-1997.mp3|titles=Beethoven – 33 Variations on a Waltz by Diabelli Op. 120 – 23. Variation 22. Allegro molto, alla ‘Notte e giorno faticar’ di Mozart (D. Barenboim – 1997)]

4. Mosaico

Por falar em variação, a Sonata para Piano No. 30 em Mi maior Op. 109 (1822) também termina com um belíssimo conjunto de tema e variações. Destaco a segunda delas, que mais parece um mosaico:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Piano-Sonata-No.-30-in-E-major-Op.-109-3.-Andante-molto-cantabile-ed-espressivo-Variation-III-A.-Brendel-1970.mp3|titles=Beethoven – Piano Sonata No. 30 in E major Op. 109 – 3. Andante molto cantabile ed espressivo – Variation II (A. Brendel – 1970)]

Os registros vão se alternando de tal maneira que o cérebro tem que montar a música ligando o que na prática está desligado. É uma espécie de ilusão sonora. Ao mesmo tempo, as notas que ficam em cima e as que ficam embaixo formam grupos coerentes, que cantam cada um motivos de sensibilidade. Além da criatividade mosaica, essa é uma das curiosas variações 2-em-1, pois assim que acaba a textura mosaica começa uma nova textura mais estável, com trinados e acordes. Tudo isso variando rigorosamente um tema comum de duas partes.

5. Acorde bizarro, Tema novo no Desenvolvimento, Seis acordes insistentes e Trompa errada

Manuscrito da “Eroica” com rasura de Beethoven apagando a dedicatória a Bonaparte

A Sinfonia No. 3 em Mi bemol Maior Op. 55 “Heróica” (1804) deve ser a sinfonia mais bizarra que existe. Ela é estranha mesmo dentro da produção da obra de Beethoven. O que destaco dela rapidamente são quatro instantes, todos do primeiro movimento.

– Um acorde quase inclassificável (!) que aparece no Desenvolvimento (depois de uma seqüência de sétimas diminutas que já tornava a passagem totalmente instável, vem esse pequeno monstro com um acorde da primeira inversão de Fá maior com sétima):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Symphony-No.-3-in-E-flat-major-Op.-55-1.-Allegro-con-brio-Unkown-Chord-N.-Harnoncourt-Europe-Chamber-Orch.-1991.mp3|titles=Beethoven – Symphony No. 3 in E flat major Op. 55 – 1. Allegro con brio – Unkown Chord (N. Harnoncourt – Europe Chamber Orch. – 1991)]

– Um tema completamente novo (!) que brota no Desenvolvimento (e volta na Coda) na enviesada tonalidade de mi menor (a tônica da obra é mi bemol maior). O Desenvolvimento é o lugar na forma-sonata em que o material da Exposição é desenvolvido, e não para temas novos. É quase uma Afrodite nascendo do …enfim, pois é um tema lindo (separo no player ambas as aparições dele no gigante Desenvolvimento):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Symphony-No.-3-in-E-flat-major-Op.-55-1.-Allegro-con-brio-New-Theme-N.-Harnoncourt-Europe-Chamber-Orch.-1991.mp3|titles=Beethoven – Symphony No. 3 in E flat major Op. 55 – 1. Allegro con brio – New Theme (N. Harnoncourt – Europe Chamber Orch. – 1991)]

– Depois de uma seqüência de acordes sincopados, bem desencontrados com o ritmo ternário do movimento (tentem contar UM-dois-três, UM-dois-três pra ver se aqui as notas encaixam), vem uma seqüência de seis acordes dissonantes repetidos insistentemente no final da Exposição (e Reexposição), que parecem duas pessoas discutindo até polarizarem a discussão, cada uma para um lado, sem acordo (Amancio quem me lembrou disso):

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Symphony-No.-3-in-E-flat-major-Op.-55-1.-Allegro-con-brio-Repeated-Chords-N.-Harnoncourt-Europe-Chamber-Orch.-1991.mp3|titles=Beethoven – Symphony No. 3 in E flat major Op. 55 – 1. Allegro con brio – Repeated Chords (N. Harnoncourt – Europe Chamber Orch. – 1991)]

– E uma passagem hilária: a trompa entrando “errado” na música. O Desenvolvimento estava acabando e chegaria a hora da música reexpor o tema principal. Mas enquanto a música ainda está na sétima da dominante, se preparando pra voltar à tônica de mi bemol maior, Beethoven escreve pra trompa entrar um pouco antes do resto da orquestra, criando esse eco adiantado e deslocado que surpreende muita gente:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/12/Beethoven-Symphony-No.-3-in-E-flat-major-Op.-55-1.-Allegro-con-brio-Wrong-Horn-N.-Harnoncourt-Europe-Chamber-Orch.-1991.mp3|titles=Beethoven – Symphony No. 3 in E flat major Op. 55 – 1. Allegro con brio – Wrong Horn (N. Harnoncourt – Europe Chamber Orch. – 1991)]

O deslocamento é tão surpreendentemente radical que correções chegaram a ser propostas para uma rearmonização da passagem, tentando adequar melhor o papel dessa trompa “errada”. Acredito que essa tenha sido uma releitura extremamente original da chamada “Reexposição falsa“, um ardil muito usado por Haydn e pelo próprio Beethoven, mas aqui com o tema principal entrando na tonalidade certa no momento errado, ao invés de voltando na tonalidade errada no momento certo.

No primeiro movimento da Sonata para Piano No. 32 Op. 111 Beethoven ainda faria algo parecido, mas sem o efeito hilário.

E amanhã tem os outros cinco momentos bizarros!

Este post pertence à série:
1. 240 anos de Beethoven: 10 momentos bizarros – Parte I
2. 240 anos de Beethoven: 10 momentos bizarros – Parte II

Este post tem 31 comentários.

31 respostas para “240 anos de Beethoven: 10 momentos bizarros – Parte I”

  1. Comentários que não couberam no post:

    1. Na primeira imagem da música “falando” na Sonata Tempestade, tem um “diminuendo” debaixo de uma das notas. Ou seja: é Beethoven pedindo pra que o som da nota vá diminuindo mais subitamente depois de ser tocada – mas como fazer isso no piano?! Muita conversa a partir daqui.

    2. Na página do “Muss es ein?” x “Es muss ein!”, Beethoven escreveu “Der schwer gefaßte Entschluß” (“A Difícil Resolução”). Daí o espírito “ser ou não ser” de que eu falo. E outra coisa: quando o tema do “Muss es ein?” é anulado no fim do Desenvolvimento, a figura que o anula vem de um contra-motivo que já estava presente na introdução, da metade pra frente dela. Por isso também é como se ele se “auto-destruísse” nessa passagem de aniquilação.

    E depois tem mais!

  2. Esse blog é uma preciosidade! Eu, um ignorante imbecil, sempre achei esses momentos estranhos, mas nunca me ocorrera explicações para eles. Ouvia e pensava: “OK, Beethoven, adiante!”, agora isso tudo toma outro rumo.

    Não há um momento bizarro o Conc Nº 1 para Piano e Orq de Brahms?

    Grande abraço.

  3. Excepcional, Leonardo! Criativo e muito bem escrito, apesar de eu achar a expressão “bizarra” meio depreciativa. Opinião minha.

    Talvez a coisa mais estranha que eu encontro na obra de Beethoven, e, por conseguinte em toda a música, é o 2º movimento desta Sonata Tempestade aí, obra genial, embora eu jamais recomende esse adagio para um iniciante.

    Movimento estranhíssimo, repleto de pausas, interrogações, repetições quase insuportáveis dos mesmos trechos, cria um clima misterioso, escuro, incômodo, eu diria até mesmo sem beleza alguma, e que pouco a pouco (muito pouquinho) vai clareando, e finalmente, no ápice da incompreensão, eclode aquela doce e linda melodia, que parece uma orquídea brotando da terra, mas mal ela surge, vem alguém e a pisa e a enterra de novo e começa tudo de novo. Impressionante.

  4. O episódio da trompa surpreendeu até o discípulo de Beethoven, Ferdinand Ries, que estava ao lado do mestre no primeiro ensaio da obra (o episódio é retratado em um filme chamado “Eroica”, que de vez em quando passa no canal Futura). O ensaio estava um tanto quanto conturbado, quando o trompista, acertadamente, tocou o trecho no momento exato. Ries disse algo como “esse maldito trompista não consegue nem contar os compassos corretamente !”. Beethoven, sempre bem humorado (ahn…), ficou algum tempo sem dirigir a palavra ao rapaz.
    Ries foi um compositor até razoável. A Naxos já lançou algumas coisas dele.
    Eis um trecho do filme: http://www.youtube.com/watch?v=xl6t24wL5Zs&feature=related

  5. Esse movimento lento da Sonata nº30 é uma das coisas mais lindas que eu conheço.

    Leonardo, parabéns pelo post, creio que deve ter sido difícil reduzir a lista a apenas 10. Beethoven tem muitos desses momentos estranhos e geniais. Quanto ao seu comentário sobre a Sonata Tempestade, minha professora de cello já me fez notar que ele escrevia sem se importar muito com os músicos: há problemas de arcadas, de orquestração, de tudo um pouco. “Eu escrevi assim, você se que vire pra tocar como puder”.

    PQP, vc poderia explicar melhor onde é o momento bizarro no Concerto nº1 de Brahms? Não lembro de nada de anormal nele.

    Érico, obrigado pela dica do filme! Parece estar completo no Youtube.

  6. Amigos,

    Muito obrigado pelos comentários!

    PQP Bach,

    Também não estou bem lembrado de um caso excepcional no Concerto No. 1 do Brahms. Só lembro daquela história toda do Gould e do Bernstein em relação ao andamento do 2o. mov.

    Ivan,

    É verdade, “bizarro” é um apelo meio sensacionalista e informal, que aqui eu usei no sentido de excepcional mesmo – deve ser sintoma da nossa época ter o “bizarro” como objeto de interesse e de prestígio. :) Sobre o 2o. mov. da Tempestade, é bem verdade!, aquele movimento é algo de misterioso e muito moderno. Já o “li com os dedos” (pra não dizer que cheguei a estudá-lo), e há acordes bem dissonantes nos momentos mais brumosos. Curiosamente, outro movimento em que percebo modernidade um pouco parecida é o 2o. da “Les Adieux”.

    Érico,

    Esse filme é bom, da BBC. A anedota ligada ao episódio da trompa na Eroica é mais uma daquelas que parecem lenda sobre a personalidade do compositor mas não são. Ferdinand Ries foi mesmo um protegido de Beethoven, mas não sabia que ele tinha composições lançadas pela Naxos e tudo.

    Amancio,

    O comentário da sua professora era de qual obra? Da Sonata Tempestade mesmo?

    Abraços!

  7. Amancio,

    Agora entendi o seu comentário sobre a Tempestade! Você diz da indicação do “diminuendo” que eu comentei aqui em cima e sobre como Beethoven escrevia coisas sem se importar com a possibilidade de o músico executar. Pois é, e esse exemplo específico na Tempestade já é aquela filosofia meio simbolista da música escrita em detrimento da realidade física sonora que marcaria muito o Romantismo. Mas acho que no pianoforte ainda era possível acionar a “una corda” e fazer um “diminuendo” súbito de uma nota no piano. É uma indicação bem interessante pra articulação daquela frase do recitativo. Mas não lembro agora em qual outra sonata (Waldstein?) Beethoven escreve uma coisa objetivamente impossível: um CRESCENDO pra um acorde. Realmente, o pianista que se virasse em fazer isso com a imaginação. XD

  8. FIASCO!

    Não era no Conc para Piano. Aliás, não é nenhum dos Concs para Piano. Vou ter que procurar no para Violino ou no Duplo ou sei lá. Um dia, voltarei com a informação.

    Merda!

  9. Os concertos duplo e para violino de Brahms apresentam algumas particularidades no emprego da forma-sonata, por exemplo o duplo começa direto na cadência (que normalmente só viria lá mais pro meio ou final do movimento), e o segundo tema do concerto para violino não é exposto pela orquestra na primeira vez (falsa exposição). Vou pensar num post para explicar melhor estes detalhes.

  10. Excelente post, Leonardo. Beethoven chocou mesmo a muitos com inovações e excentricidades – e que ironia, era clássico e não romântico, apesar, apesar – mas penso cá comigo, a surdez dele não teve um papel decisivo?

  11. Boas questões essas, Emerson. Até me deu vontade de coletar algumas coisas importantes sobre o próprio tema do Beethoven clássico/romântico em post à parte. Vejo esse assunto sendo abordado de maneira muito ociosa por aí (sem o desenvolvimento de critérios realmente esclarecedores pro uso dessas classificações).

    Mas acho que o que possibilitou a existência de um Beethoven na tradição musical foi, além do momento histórico em que ele viveu da transição entre a idade moderna à idade contemporânea e com isso o peso da individualidade e da expectativa de originalidade no contexto da arte, o fato dele ser a geração seguinte à de um paradigma firmado e levado à excelência por Haydn e Mozart. Isso fez com que a partir dele não restasse mais ingenuidade nos recursos mais básicos da música, e então ele, que teve vocação pra coisa, foi em busca de caminhos de sempre despertar a consciência mesmo no que antes eram as funções mais inócuas, como uma cadência em direção à coda, modulações entre temas diferentes, etc. É a perda da inocência depois do período de excelência de um modelo.

    Sobre a surdez, é outro assunto instigante, quase inacreditável. O entendimento de que com a surdez Beethoven se voltou pra um mundo sonoro ideal e metafísico é irresistível, mas há quem coloque limites nos exageros que podem surgir desse mito, lembrando que Beethoven não chegou a ficar totalmente surdo, blablabla. Eis também um tema pra pesquisarmos melhor (sei de exemplos práticos na música dele, especialmente na orquestração, em que a surdez o faz indicar coisas impraticáveis – desde no melhor sentido do desafio, até no pior mesmo, de problemas passarem despercebidos às suas indicações).

  12. Leonardo, seria realmente interessante um post sobre essa dicotomia clássica-romântica que persiste na obra beethoveniana. A ideia de ele estar numa época de transição é realmente atraente. A questão é : não era ele só que estava àquela época fazendo música. Mas como disseste, ele teve o “peso da individualidade” e “vocação pra coisa”
    Sobre a Surdez, veja o que Carpeaux nos diz: ” (…) a não ser durante os últimos dez anos , a surdez não o impediu de executar e ouvir música. Falsificação completa da biografia é a descrição dessa vida como uma incessante luta heróica contra o destino. (…) se fosse só isso, muito maior seria Helen Keller que nasceu cega e muda-surda e, no entanto, venceu na vida.” Risos!
    Ele ainda nos nos diz, ” a sonoridade tornou-se áspera, a polifonia instrumental mais dura, a expressão enigmática. É a 3ª fase. Os contemporâneos ficavam estupefatos; e não só eles. O século XIX inteiro, com exceção de certos conhecedores, considerava as últimas obras de Beethoven como esquisitas, se não incompreensíveis. Explicou-se o fato pela surdez, então completa, do mestre, que lhe teria roubado o senso da eufonia a faculdade de calcular os efeitos sonoros e até a humanidade do sentimento. Hoje se pensa de maneira diferente. A surdez de Beethoven, embora trágica pra ele pessoalmente, parece-nos providencial: foi ela que libertou o mestre de todas as convenções, abrindo-lhe as portas para o reino da música totalmente abstrata. (…) Não exageremos. Há nelas certas imperfeições técnicas, que se explicam realmente pela surdez. Algumas obras não parecem destinadas à execução, mas a serem lidas.”
    Enfim, uma frase de Proust, ” os últimos quartetos de Beethoven criaram um público para os últimos quartetos de Beethoven”.

  13. Emerson,

    Essa passagem do Carpeaux é muito engraçada… Mostra o melômano parceiro que ele é para o leitor na música (aliás, já leu sobre a Helen Keller? é a primeira vez que me deparo por acaso com uma menção a ela, mas por curiosidade dessa sua condição extrema eu já tinha encontrado informação sobre ela e é mesmo algo impressionante). Só que o Carpeaux vivia dizendo isso de tal ou tal obra (Variações Goldberg, Webern) ser feita pra ser lida e não ouvida, e isso é obviamente uma bobagem…, inclusive a maneira como ele menciona “certas imperfeições técnicas” soa muito vago e até sem sentido. Acho que é possível abordar a surdez de Beethoven em sua obra apontando pra alguns aspectos da sua orquestração, indicações de dinâmica e o tempo prolongado da resolução de certas dissonâncias. Dá pra anotarmos daí mais um plano pra post, é uma questão muito instigante que costuma interessar pra todo mundo. (E sobre o Carpeaux, sem querer ser repetitivo em me fiar em promessas, diz-que ele é o próximo da fila pra ser abordado por um dos autores do blog).

  14. Caro Leonardo, Carpeaux era realmente um melômano, um sujeito fascinante cheio de idiossincrasias paradoxais e ainda um verdadeiro polímato.
    Mas vejamos o que ele realmente nos diz sobre as Variações Goldberg e Webern, respectivamente: “A forma musical da variação, até então pouco desenvolvida, foi empregada por Bach nas Variações Goldberg (1742), escritas para o cravista Goldberg divertir com ela um barão báltico durante suas noites de insônia: é ( com As variações sobre uma valsa de Diabelli, de Beethoven) a maior obra de variações em toda literatura musical, monumento de um tema glorioso e triunfo da arte combinátória, mas cheio de poésie pure;”
    “Discípulo ortodoxo de Schoenberg, continuando a obra do mestre, fortalecendo o rigor do sistema, enriquecendo-o por inovações rítmicas e pela Klangfarbenmelodie, isto é, a distribuição de cada uma das notas do tema a instrumento diferente.” Mais à frente Carpeaux faz um breve comentário sobre as especificidades das prinipais obras de câmara de Webern: ” São obras extremamente curtas, cuja execução só requer poucos minutos. São como miniaturas ou aforismos musicais. ‘Curtas’ também são interiormente, compondo-se apenas de partículas sonoras, embora rigororosamente encandeadas. E, ainda porcima, quase sempre o compositor exige a execução em pianíssimo, de modo que ficam mal audíveis” . Veja que Carpeaux no trecho seguinte não diz não devemos ouvir essa música, ele apenas sugere com um cordial “talvez” que… “Talvez seja melhor ler , apenas , essas formas sonoras, geometricamente coordenadas, do que ouví-las.” ou seja, é o mesmo que dizer que é melhor fazer ISTO do que AQUILO, mas se quiseres fazer os dois, tudo bem, comparar é bom. Até porque, pra saber que ISTO é melhor do que AQUILO, só provando-os e comparando-os, como o Carpeaux fez.
    Sobre as “certas imperfeições técnicas” que Carpeaux fala de forma realmente genérica ele também se explica de forma brilhante no prefácio à 1ª edição de 1958 da obra, que àquela época chamava-se ainda “uma nova história da música” mas que hoje foi reeditada sob este ridículo e ordinário título: “O Livro de ouro da história da música”. Veja: Reduzidas ao mínimo também foram as explicações técnicas. Pois este livro não se destina ao músico profissional. (…) Aos que amam a arte, sinseramente, este livro pretende servir de guia: um espaço limitado, o máximo de informação, mesmo ao preço de uma ou outra página parecer-se com relação seca de títulos de obras; mas sem a pretensão de “ficar completo”. Um guia não pode ser um catálogo nem uma enciclopédia.”

    Pois bem, aguardo e torço para que essa série sobre o carpeaux saia o quanto antes, será um prazer lê-la.

    Cordialmente, Emerson F. C.

    Ps.: Não indiquei numeros de páginas em nenhuma citação pois afinal não estamos numa “academias de louros e letras, não é mesmo” rsrsrs

  15. Nossa…fui às lágrimas lendo esse post…

    acreditem: eu ri e chorei…

    Sem mais palavras…

  16. Leonardo, fiquei com uma dúvida…Por um acaso o trecho citado da quinta sinfonia, no tópico 2- Decisão final e assassinato do tema (“dilema dramático”), é referente à transição do terceiro movimento para o finale?

    Obrigado

  17. Sim, Caio, a Quinta Sinfonia é o exemplo clássico da “transição das trevas para a luz” em sinfonia. A transição específica, que decide essa disputa, é a transição do terceiro para o quarto movimento, mas a disputa em si está presente em toda a obra: o primeiro movimento é inteiro construído sobre um intervalo ambíguo de terça maior, anti-melódico, e repleto de tensão e instabilidade. Então esse motivo de quatro notas volta no terceiro movimento, mas a resposta do quarto é o oposto: o tema é aberto, em dó maior, e o movimento todo é repleto de insistências na escala diatônica, em distensão. Me referi a ela por conta dessa trajetória que só é definida depois da conquista do destino da sinfonia, e que só acontece no final mesmo (antes disso não temos como saber no que daria).

    Abraços!

  18. Parabéns pelo blog, serviu-me de apoio aos trabalhos de faculdade e conhecimento pessoal. Os trechos de áudio das obras entre os textos, aliás muito bem explicados, é fantástico! Grato por vosso trabalho!

  19. Muito boa a postagem, obrigada! Lendo o comentário adicional do Leonardo sobre o espírito do “ser ou não ser” me lembrei da menção ao muss es sein que aparece nA Insustentável Leveza do Ser que mostra como o debate das cordas nesta composição carrega em si toda a problemática da existência:

    “Ao contrário de Parmênides, parece que Beethoven considerava o peso como algo de positivo. Der schwer gefasste Entschluss, a decisão gravemente pesada está associada à voz do destino (Es muss sein!); o peso, a necessidade e o valor são três noções íntima e profundamente ligadas: só é grave o que é necessário, só tem valor o que pesa. A origem desta convicção situa-se na música de Beethoven e, sendo embora possível (senão provável) que seja mais da responsabilidade dos seus exegetas do que do próprio compositor, hoje quase todos nós a partilhamos: para nós, a grandeza de um homem reside
    no facto de carregar com o seu destino como Atlas carregava aos ombros a abóbada dos céus. O herói beethoveniano é um halterofilista de pesos metafísicos”.

  20. Obrigado mais uma vez aos amigos pelos comentários!

    Frau Gusmão,

    Lembrança fundamental a do uso de Kundera do “Muß es sein?” e do “Es muß sein!” de Beethoven: o romance chega a trazer os compassos da partitura para explicar a ideia!

    Como chegamos a conversar, curiosamente, essa é uma descrição que se aplica muito mais à fase da personagem de Tomas no romance do que particularmente a esses compassos da música, o que é muito comum.

  21. Bom, o Kundera toca (ou tocava) piano e sabe das coisas. Seu pai foi tb pianista, aluno de Janácek, e diretor do Conservatório de Brno. A música, como o amor, é presenca constante na sua obra.
    “The worth of a human being lies in the ability to extend oneself, to go outside oneself, to exist in and for other people.” (Milan Kundera, Laughable Loves)

  22. Vou imprimir tudo escrito aqui, incluindo os comentários, e comer….
    Artigo é um presente de fim de ano perfeito, não se pode pedir mais

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