Essas seleções de 11 gravações vão revelar muito do estereótipo clássico de cada um. Em nome do aprumo, faria bem até disfarçar um pouco e privilegiar uma seleção mais eclética (aos próximos colegas, escondam esses CDs do Yo-Yo Ma e não esqueçam das óperas)… Ok, eu até tentei, mas no fim, sendo a minha relação com cada gravação muito passional, o que fica não consegue ser mais “pretensamente eclético” do que verdadeiro. Ah, e Bruno já citou dois CDs que desocuparam vaga pra minha lista: Martha Argerich interpretando Bach, e Maurizio Pollini interpretando Stravinsksy, Prokofiev, Webern e Boulez. Também evitei de citar, por covardia, boxes que contêm vários CDs de uma vez, como a caixa com a música de câmara completa de Brahms da Deutsche Grammophon, digna de uma redoma na estante. E enfim, seguem também em ordem cronológica:
01. Mahler: Das Lied von der Erde
Otto Klemperer, regente
Philharmonia Orchestra / New Philharmonia Orchestra
Fritz Wunderlich, tenor
Christa Ludwig, mezzo-soprano
1964 (EMI Classics)
“A Canção da Terra” é uma das reflexões mais ambiciosas e extraordinárias que já coube à música fazer sobre a “existência!” (ponto). A música que fez Kathleen Ferrier omitir o último “Ewig…” (“Eternamente…”) que encerrava a obra por estar em prantos não pede senão intérpretes da maior estatura: os fortissimi da efusão da orquestra na primeira canção impõem dificuldades simplesmente cruéis à projeção da voz do tenor; o ritmo de repente caótico e as frases sem fôlego para a contralto (ou o baixo, de acordo com a indicação facultativa da obra) no meio da quarta canção freqüentemente causam resultados de evidente fragilidade; os 30 minutos de música ininterrupta da sexta e última canção, com uma carga emocional sem tamanho, desafiam a autoridade e o controle musical de qualquer intérprete. É verdade que a gravação do Bernstein com James King e Dietrich Fischer-Dieskau é uma versão pra ser amada, mas contando entre as gravações que escolheram um tenor e uma contralto, esta do Klemperer com o Fritz Wunderlich e a Christa Ludwig soa inacreditável: mesmo com todas as dificuldades da obra, ela soa belíssima e impecável. Não consigo me lembrar de outra ocasião que tanto mereça ser chamada de “auge” para as vozes do Wunderlich (que empresta o lirismo que aprendemos a esperar dele de forma surpreendentemente vigorosa) e da Ludwig, e o Klemperer, sem os exageros modorrentos nos andamentos lentos, fez tudo o que sabia de melhor: articular a orquestra para cantar cada uma das linhas da partitura e expandir a sua sonoridade com brilho e potência.
02. Wagner: Tristan und Isolda
Karl Böhm, regente
Bayreuther Festspiele
Birgit Nilsson, soprano
Wolfgang Windgassen, tenor
Christa Ludwig, mezzo-soprano
Martti Talvela, baixo
1966 (Deutsche Grammophon)
Se Wagner possui detratores, poucos deles são tão teimosos que não reconhecem a grandiosidade de óperas como Os Mestres Cantores de Nuremberg e Tristão e Isolda. Bastaria a concentração esfuziante de testosterona na partitura pra tornar Tristão e Isolda um dos dramas mais arrebatadores de todos os tempos, mas além da agitação incansável ela é uma obra de coerência e novidade formais igualmente emocionante: os dois motivos cromáticos que montam o Prelúdio acabam gerando a obra inteira, e cada nova leitura dos leitmotive musicais que percorrem a obra é capaz de surpreender os ouvintes mais experientes. Esta gravação de Karl Böhm com seu time de ouro é uma unanimidade: desde o prelúdio esse dia mostrava que não seria um dia comum. Deixo a seleção de um trecho curtinho do prelúdio falar por si mesmo. Ouça e entenda o que é o “cromatismo” em Wagner nesse crescendo imeeenso:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/05/Wagner-Tristan-und-Isolde-Act-I-01.-Prelude-Trecho-K.-Böhm.mp3|titles=Wagner – Tristan und Isolde – Act I – 01. Prelude – Trecho (K. Böhm)]03. Debussy: Quarteto para Cordas em Sol menor Op. 10
Ravel: Quarteto para Cordas em Fá maior
Berg: Quartetos para cordas Op. 3
LaSalle Quartet
1972 (Deutsche Grammophon)
Sempre que a Deutsche Grammophon lança este CD, ele traz apenas os quartetos do Debussy e do Ravel. A exceção em trazer o quarteto Op. 3 de Berg ficou por conta da Deutsche Grammophon Collection, coleção de CDs da gravadora que foi às bancas. O resultado da compilação foi um CD riquíssimo, pra ser ouvido pro resto da vida com uma sensação de descoberta inesgotável. O quarteto de Debussy foi a primeira obra do compositor que eu ouvi com dedicação, e a surpresa em encontrar um Debussy maduro, que já havia travado o contato inovador com a música de Rameau, ainda mal foi ultrapassada por outra obra do autor. A entrada modal do segundo violino no terceiro movimento é de arrepiar. E o Quarteto LaSalle mostra por que é sempre um dos maiores em tudo o que toca: a sonoridade do conjunto é tão convincente, que às vezes nos esquecemos de que estamos ouvindo uma gravação analógica, e não digital.
04. Dvorák: Danças Eslavas, Aberturas e Poemas Sinfônicos
Rafael Kubelík, regente
Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks
1974 (Deutsche Grammophon)
A série TRIO foi um verdadeiro milagre aos compradores de CDs: álbuns sempre de 3 CDs das maiores gravadoras do mercado, sempre reunindo uma integral de obras de um compositor, e sempre mais baratos do que qualquer outra edição das gravações que trazem. Este álbum com as danças eslavas, aberturas e poemas sinfônicos de Dvorák regidas pelo Kubelík ficou simplesmente uma compra obrigatória nesse formato. Kubelík é a autoridade mais notória da música dos seus conterrâneos tchecos, a Orquestra Sinfônica da Rádio da Baviera tinha ainda nos anos 70 uma sonoridade própria que as décadas seguintes tornariam mais achatada e global, e pra ajudar as obras aqui reunidas são das coisas mais originais que Dvorák já escreveu. Euterpe ainda vai usar muito dessas gravações em análises dos poemas sinfônicos, mas mais do que a conveniência da compra, eu realmente nunca ouvi gravação superior pra qualquer dessas obras. Mate aí uns cinco coelhos numa cajadada só.
05. Berg: Concerto para Piano, Violino e 13 Instrumentos de Sopro
Stravinsky: Concerto “Dumbarton Oaks”, 8 Miniaturas Instrumentais & Concerto “Ebony”
Pierre Boulez, regente
InterContemporain Ensemble
Pinchas Zukerman, violino
Daniel Barenboim, piano
1977 (Deutsche Grammophon)
Este CD traz músicos ilustríssimos interpretando dois dos compositores mais fascinantes associados às vanguadas do séc. XX, e isso ainda não é tudo: as obras selecionadas são extremamente EMPOLGANTES. O concerto de Berg é uma proposta tremendamente original e divertida para a forma do concerto: os três motivos iniciais da obra, expostos um pelo piano, outro pelo violino e outro pela trompa, são os nomes soletrados de ArnolD SCHönBErG (A-D-Eb-C-B-Bb-E-G), Anton wEBErn (A-E-Bb-E) e AlBAn BErG (A-B-A-Bb-E-G) na notação musical alemã. E é do motivo de Schoenberg que Berg cria uma série dodecafônica sobre a qual escreve cinco variações no primeiro movimento. No terceiro, temos um rondó que alterna não temas, mas idéias rítmicas. E pior que em termos de criatividade o concerto “Ebony” do Stravinsky não fica muito atrás, escrito pra uma banda de jazz, com as experiências rítmicas e timbrísticas irresistíveis que marcam o compositor. Dos tais intérpretes ilustres, Boulez é uma autoridade amplamente reconhecida no repertório moderno: na sua regência, TUDO aparece. E Daniel Bareboim e Pinchas Zukerman são as estrelas que dão o gosto de serem vistas nesse repertório menos óbvio, o que torna essa música muito familiar.
06. Brahms: Quarteto para Piano e Cordas No. 2 em Lá menor Op. 26
Sviatoslav Richter, piano
Membros do Quarteto Borodin
1984 (Philips)
Este CD da Philips é simplesmente RIDÍCULO. 46 minutos de música são o bastante pra um CD? Caberia quase O DOBRO. Mas alguém com a mente raptada por qualquer idéia de coerência de intérpretes ou por qualquer idéia impotente de burocracia preferiu publicar essa gravação do quarteto de Brahms sozinha em um CD. E aí é que está: …pior que é a gravação mais nervosa que eu já ouvi em Brahms. Richter simplesmente ESMURRA o piano, e os membros restantes do quarteto Borodin assumem um ímpeto soviético sem paralelo no compositor. Eis uma gravação que merece um trechinho citado. OUÇAM ISTO (acho que o playerzinho do WordPress não é capaz de reproduzir muito bem o efeito das pauladas…, bota o volume no máximo aí!):
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/05/Brahms-Piano-Quartet-No.-2-in-A-minor-Op.-26-1.-Allegro-Non-Troppo-Trecho-S.-Richter-Borodin-Quartet-1983.mp3|titles=Brahms – Piano Quartet No. 2 in A minor Op. 26 – 1. Allegro Non Troppo – Trecho (S. Richter & Borodin Quartet – 1983)]Em pensar que o segundo quarteto pra piano é sombreado pelo prestígio do primeiro… E se Richter não gravou também o primeiro quarteto, somos felizes de ter a gravação do Gilels com membros do Quarteto Amadeus, outro fenômeno brahmsístico sobrenatural (apenas pra constar).
07. Beethoven: Quartetos Opp. 127 e 131
Melos Quartett
1984 (Deutsche Grammophon)
Eu posso francamente dizer que este é o CD da minha vida. E ele também mostra algo interessante, que todo ouvinte vivido já atestou por conta própria: na música, a primeira impressão nunca é a que fica. Há uma idéia de hermetismo vinculada aos últimos quartetos de Beethoven, e ela diz mais respeito a uma compreensão emocional exigida do ouvinte do que qualquer outro aspecto mais técnico. Aconteceu que eu ouvi o segundo movimento do quarteto Op. 127 pela primeira vez e não senti nada. Eu reconheci que se tratavam de variações, não soube contá-las muito bem porque ficou difícil de reconhecer o tema mais pra frente, mas não tive uma impressão bem acabada dessa música. Só o tempo pôde me mostrar a música mais bela de todos os tempos, diante da qual eu não pude mais ficar em pé. :| O arrebatamento que essa música me causou foi algo excepcional, e depois eu ainda levei anos pra conseguir contar as tais variações! Nunca conseguia chegar até o final sem esquecer o que é que estava acontecendo. E esse é o forte do quarteto Melos: eles têm uma sensibilidade extremamente comovente nos andamentos lentos, sem qualquer delonga ou exagero. A integral dos quartetos de Beethoven com eles é a coisa mais aconselhável que existe ao homem ocidental.
08. J. S. Bach: Missa em Si menor BWV 232
John Eliot Gardiner, regente
The Monteverdi Choir & The English Baroque Soloists
Nancy Argenta, Mary Nichols, Michael Chance, Ashley Stafford, Howard Milner, Wynford Evans
1985 (Archiv Produktion)
Brahms dizia que é difícil acreditar que esta obra havia sido escrita por um mortal. Tal fama, junto às outras muito repetidas de uma música capaz de converter ateus (!), no mínimo quer dizer alguma coisa sobre a responsabilidade do intérprete que decidir executar esta obra. É a maior missa de todos os tempos, e já em 1985 teve em Gardiner provavelmente a gravação mais vivaz. Há “Et resurrexit” mais soberbo que este? E o “Sanctus”? Gardiner mostra aqui uma força certamente responsável por habilitar as orquestras de época a competirem com as massas sonoras muito mais demográficas que as gravações anteriores de Furtwängler e Klemperer em orquestras modernas. De quebra, tamanha competência encontra nos solistas uma expressão extática no “Crucifixus”, número que Gardiner executa não com o coro, como usual, mas com os cantores solistas.
09. Debussy: Suite Bergamasque & etc.
Claudio Arrau
1991 (Philips)
Essa foi uma das últimas coisas que Arrau gravou. Demorei pra me dar conta de que ele havia gravado essas peças de Debussy já tão velhinho, com 88 anos (!). Isso porque uma tendência das últimas gravações do Arrau é, naturalmente, atrasar os andamentos. Mas aqui tudo soa tão apropriado que não dá pra imaginar qualquer compensação pela idade do pianista: ela soa perfeita como foi feita. Além da suíte Bergamasque, ele interpreta pelo menos duas das peças mais belas e românticas de Debussy: a Valse Romantique e a Le Plus que Lente. É um dos CDs de Debussy mais adoráveis que podem existir.
10. Berlioz: Les Nuits d’été & Cantata “Herminie”
Philippe Herreweghe, regente
Champs Elysees Orchestra
Brigitte Balleys, soprano
Mireille Delunch, soprano
1994 (Harmonia Mundi)
Quando eu conheci o ciclo de canções “As Noites de Verão” sobre seis poemas do Théophile Gautier, passei semanas sem trocar de música no aparelho de som. Foi certamente uma das maiores revelações musicais na minha vida, por mais que sejam canções curtas e que não se trate de nenhuma obra revolucionária. O engraçado é que nesse período eu avisava aos amigos, fazia propaganda dessas peças, mas eles diziam que as conheciam por qualquer outra gravação e que nunca tinham dado bola pra elas. Desconfiei que parte do mérito dessa epifania fosse também da gravação do Herreweghe com a Brigitte Balleys… Herrewegue rege uma orquestra com instrumentos de época, e a incursão desse tipo de orquestra no repertório romântico tem se mostrado reveladora, e por vezes belíssima como neste CD. Ainda hoje os versos Ce léger parfum est mon âme / Et j’arrive du paradis (“Este perfume é a minha alma / E eu venho do paraíso”) pronunciados pelo espectro da rosa que foi arrancada da raíz e usada no vestido de uma senhorita é uma das iluminações mais comoventes que eu conheço em música, apesar de assim sem contexto soar tão brega. De quebra, conheci a Cantata “Herminie”, uma obra estreitamente relacionada à fecunda temática da Sinfonia Fantástica do compositor, na voz da respeitabilíssima Mireille Delunch.
11. Monteverdi: Il Sesto Libro de Madrigali
Rinaldo Alessandrini, regente
Concerto Italiano
1997 (Arcana, depois Opus 111)
E finalmente, este CD trouxe a revelação de Rinaldo Alessandrini como intérprete dos madrigais de Monteverdi. Passei a dar importância a uma noção mais precisa do conteúdo dos oito livros de madrigais e seus respectivos madrigais. Neste sexto livro, a temática é de forma geral o lamento. O “Lamento d’Arianna” é a ária da ópera de Monteverdi que não sobreviveu completa, só que aqui aparece em um arranjo para madrigal feito pelo compositor. É ainda mais bela e comovente. O soneto “Zefiro torna” de Petrarca (é a canzone CCCX em edições mais comuns do poeta) ganha a música mais sublime possível, e a interpretação do Concerto Italiano é de uma beleza quase excêntrica! A última estrofe do poema é uma elevação superlativa do valor apaixonado que o poeta confere à sua senhora, comparando-a e elevando-a acima das coisas mais belas que o poeta consegue descrever quando da chegada da primavera. Agora veja como é que Monteverdi musicou esta estrofe e anote a definição prática de “belo” de Edmund Burke:
e cantar augelletti, e fiorir piagge,
e’n belle donne oneste atti soavi
sono un deserto, e fere aspre e selvagge.
Eu simplesmente adoro essa gravação das Nuits d’été do Herreweghe, foi também uma das maiores descobertas da minha vida, eu que sempre gostei de Berlioz deixei para ouvir esse ciclo só em 2008 e é de uma beleza ímpar.
E o Tristão do Böhm é uma daquelas poucas gravações que a gente pode dizer: referência. Não há defeitos nessa gravação (claro que de um ponto de vista vocal, Flagstad e Melchior são melhores, mas chamar de precário o som que os capturou no auge é elogio…) e Böhm dirige com um vigor realmente empolgante (Não gosto muito da maneira comum de se reger Wagner, naquela lentidão estilo Knappertsbusch).
E esse CD das Danças do Dvorak é a melhor música para se ouvir no carro. Ponto.
Pior que o trecho que eu acabei postando do prelúdio do Tristão e Isolda ficou interessante: é uma passagem que já reproduz harmonicamente o mesmo desenho do segundo motivo, o chamado “motivo do desejo”: http://www.rwagner.net/midi/tristan/e-mtr01.html. Ou seja, o desenho do motivo, com as subidas em semi-tom, já começa a estruturar também as progressões da música. A gravação do Furtwängler merece mesmo ser citada como um triunfo anterior, e depois dele e do Böhm tem também a famosa do Carlos Kleiber.
Eu não gosto da gravação do Kleiber. Acho o som que ele escolheu muito plastificado, a Margaret Price não é Isolda nem aqui, nem na Irlanda e o Kurwenal do DFD é simplesmente H-O-R-R-O-R-O-S-O, uma das piores coisas em disco…
‘E esse é o forte do quarteto Melos: eles têm uma sensibilidade extremamente comovente nos andamentos lentos, sem qualquer delonga ou exagero.’
n’esta frase também valia aquele ‘(ponto)’
que apareceu no texto sobre o ‘lied’.
os melos levando mendelssohn: também sublime e fascinante…
o segundo movimento do quarteto em Eb, o que é aquilo?
Eu não conheço a maioria das gravações citadas, mas realmente, a integral dos quartetos de Beethoven com o Melos é sensacional, um verdadeiro must have de qualquer um que se diga fã do mestre de Bonn. Achei legal vocês se lembrarem de Berlioz, um dos compositores mais injustamente impopulares que conheço.
Grande blog.