19abr 2017
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A objetividade e a subjetividade na música – Parte III

3. Na audição

Por fim, exorcizando essa série que desgasta o leitor com o cacoete “objetividade/subjetividade”, pensaremos brevemente sobre algo que diz total respeito a VOCÊ: a qualidade da audição do ouvinte.

Alma Mahler ouvindo a Sinfonia No. 2 de Mahler, na regência de Leonard Bernstein (fotografia de Alfred Eisenstaedt)

Quando determina uma qualidade objetiva a Bach e subjetiva a Beethoven, Popper expõe também um aspecto muito importante da relação da obra com o ouvinte, da maneira como o compositor elabora a obra e a dirige ao ouvinte. Como vimos nos posts do Randau, a música é “objetiva” para o Popper quando se concentra no funcionamento do próprio objeto musical, independe de sentimentos que o compositor tenha imitado para tentar torná-la melhor e abriga uma dinâmica de se desenvolver como que superando problemas e desafios técnicos para tornar a sua existência musical possível – sem pra isso fugir da linguagem da tradição. Pra estar preocupado com isso, ele mostra, afinal, ser um ouvinte atento à técnica. E quando ele diz que Bach é objetivo por favorecer essa apreciação e que Beethoven é subjetivo por obstruí-la com apelos emocionais diretos, as nossas ressalvas não se voltam apenas para o Popper teórico que divide radicalmente o sentido da arte em objetividade e subjetividade (atitude cujas conseqüências nós já vimos com tanto detalhe, e que faz restar para ele apenas o espaço da defesa de uma poética de valor muito pessoal), mas nossas ressalvas também se voltam para o Popper ouvinte!, como se tivéssemos o reflexo de dizer: “E você não percebe que Beethoven também é objetivo?”, “E que Bach também é subjetivo?”, etc.

Pra pensarmos nisso, precisamos saber que, para o Popper, a audição musical é a apreciação do problema-resolução que a música tem com a técnica (algo como: o compositor tem idéia de um tema musical, e a partir daí tem que enfrentar os rudimentos da técnica para submeter esse tema a alguma forma musical completa), e a emoção musical adviria essencialmente da emoção de ouvirmos a música se fazer conceber pela sua conquista sobre os desafios da técnica. Essa descrição nos lembra muito da atribuída emoção do cientista em sua motivação por descobrir a verdade, e é aqui que duas posturas-tipos de ouvinte começam a ser esboçadas: de um lado, o ouvinte atento às dinâmicas de sentido dos elementos do objeto musical, que Popper parece defender; e de outro, o ouvinte atento às sinuosidades musicais em sua sensibilidade emocional imediata, que Popper claramente contrapõe.

3.1 Até que faz sentido…

Primeiro, é preciso reconhecer que essa defesa do Popper por uma audição “objetiva”, escrita no primeiro ano do século XX, não é sem propósito: em um tempo em que a subjetividade ainda parecia ser excessivamente valorizada e associada à música, é com uma “poética da objetividade” que Popper lembra muito bem (embora hoje obviamente) que não é o compositor quem confessa seus sonhos e sentimentos através de uma composição, mas é a composição, com todo o processo de tomar forma depois das leis do seu material terem sido dominadas, quem fala por si mesma com o que ela tem de “construção”, de artifício em uma linguagem própria. Essa distinção é importante porque com ela o juízo de valor na música deixa de importar apenas porque você não gostou da “personalidade” que ouviu em uma música, e passa a importar também pela proposta anunciada na obra e a sua coerência em conseguir (ou não) cumpri-la.

Um ouvinte dedicado

Mas talvez ainda mais importante nessa distinção seja como ela nos coloca diante do “conteúdo da forma” que existe na música clássica e que, em uma audição muito romantizada, pode ser totalmente esvaziado justamente por uma subjetividade por parte do ouvinte que se use da música como efeito, de maneira imediata e simplista, para apenas catalisar a sua própria imaginação. O efeito dessa audição excessivamente subjetiva é que esse ouvinte pode se tornar quase que o fim da apreciação no lugar da música (um post apenas sobre esse “conteúdo da forma” na música clássica foi escrito aqui). Quer dizer, a forma, nem que em uma percepção “plástica” e não tão técnica, precisa de uma defesa como parte da audição, pra que uma subjetividade exagerada não destitua a arte do que a torna arte afinal, e não natureza pura e simples (desde que arte, pois, seja dar ordem à expressão com artifícios, e não simplesmente reproduzir o caos dos dados múltiplos da natureza). Afinal, nessa função organizadora a atitude que organiza a expressão musical compõe a sua linguagem e deve fazer parte da apreciação.

3.2 MAS…

MAS… no fim é inevitável procurarmos um equilíbrio melhor entre o Popper e essa subjetividade que ele critica, pra que não seja preciso dizer que Wagner não é arte só pra acreditarmos que Bach o é. Popper, para criticar a música e a audição subjetivistas, jogou o seu mesmo jogo de extremos: separar objetividade e subjetividade e defender uma delas. Mas aqui uma defesa muito rigorosa em termos de “objetividade” pela audição das necessidades técnicas da música não será uma defesa de muita autoridade, pois a própria “gramática musical” não é neutra, não é “técnica” pura – ela reserva em si mesma tensões, distensões, sinuosidades, noções de proporção, mesmo a prosódia intuitiva da fala, o discursivo, que tocam e têm tanto a ver com a nossa sensibilidade em um sentido amplo que acabam dando espaço pra se vincularem a qualquer imaginação, tanto nossa como ouvintes como do próprio compositor (como também vimos com detalhe no segundo post desta série). Quer dizer, por conta da sensibilidade que a própria linguagem musical pode tocar em seus próprios termos, pode ser emocionante ouvir uma melodia pura e simples bem tocada, sem necessariamente grandes relações com a emoção do “desafio técnico”, como Popper descreve, como de fazê-la caber em uma fuga, por exemplo.

É bem diferente assistir a um concerto aqui… (interior da Notre Dame de Paris (créditos no link da imagem))

E devemos lembrar ainda que, à despeito da nossa apreciação tanto mais “objetiva” quanto possível da música, a ocasião de uma composição também determina a sua audição – uma missa apresentada em uma igreja, uma música dedicada a uma pessoa presente na performance, ou uma homenagem póstuma, etc. Essa ocasião obviamente influencia não só a percepção física mas a imaginação dos ouvintes, que podem exigir de uma execução do Requiem de Mozart, por exemplo, uma decantação mais devocional, que sequer exigiriam se não conhecessem a vinculação da obra à idéia de prece pelos mortos. Portanto temos que considerar que a composição, a princípio pura, incorpora um contexto real na relação com o ouvinte (seja pela ocasião em que o ouvinte ouve a obra, ou pela ocasião à qual a obra se vincula e da qual o ouvinte se torna ciente), não sendo um fenômeno totalmente abstrato. Esse era um dado que Popper não negava, mas o deixava em segundo plano e estava claramente mais preocupado com uma dimensão mais abstrata da apreciação da música – e isso só mostra o quanto a sua visão e o seu modelo de audição é depurador.

Por fim, também há outro detalhe: por que para o Popper Bach seria idealmente objetivo, mas Schoenberg não? Obviamente que para ele o rigor formal de Schoenberg (embora de formação verdadeiramente expressionista) não compensa o seu abandono de um sistema musical tradicional, e esse seu julgamento mostra como mesmo a defesa “técnica” de Popper é idealista, por enxergar nessa técnica tradicional uma neutralidade que acaba o comprometendo a não acompanhar as mudanças que essa própria técnica pode sofrer no tempo.

Portanto nos resta, mais uma vez, conciliar os extremos, observando que não há sentido em dividir o ouvinte em objetivo/subjetivo quando esses dois aspectos coexistem na música e sequer poderiam ser separados/defendidos com clareza suficiente. A separação, no máximo, serve, de novo!, para a prática: o conselho pra que não se perca de vista que, em alguma porção, existe na música uma proposta formal e uma proposta expressiva que igual e simultaneamente convidam à apreciação.

3.3 Estilo

Para encerrar, apenas chamo a atenção para o uso do objetivo/subjetivo que acaba nos restando como ouvintes quando tentamos descrever uma experiência musical, no caso: o uso metafórico do objetivo/subjetivo para descrever um traço estilístico na música.

Uma passagem como o famoso tema do Capricho No. 24 em Ré maior de Paganini…

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/02/Paganini-Violin-Caprice-No.-24-Theme-N.-Milstein.mp3|titles=Paganini – Violin Caprice No. 24 – Theme (N. Milstein)]

…tem uma exposição tão mais direta do que uma das variações sobre esse mesmo tema na Paganiniana de Nathan Milstein…

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2011/02/Milstein-Paganiniana-excerpt-N.-Milstein.mp3|titles=Milstein – Paganiniana – excerpt (N. Milstein)]

…que somos tentados a enxergar na primeira um estilo objetivo, enxuto, de evocação direta, e na segunda um estilo subjetivo, derramado, de evocação contemplativa e de inúmeros desvios virtuosísticos em relação ao material mais central do tema. Adjetivos, enfim, para tentar descrever aspectos estilísticos na música, e a partir de onde podemos determinar o nosso gosto pessoal quanto à interpretação também: “muito lento!”, “muito rápido!”, “isso era pra soar mais claro!”, “isso era pra soar mais expressivo!”, etc.

Conclusão!

Karl Popper

O uso do Popper da dualidade objetividade/subjetividade parece querer vencer a poética subjetiva em seu próprio terreno: usando a primazia de um desses extremos (no caso dele, a objetividade) sobre o outro. Mas parece claro que não é jogando o jogo idealista dos próprios subjetivistas que ele vai construir o argumento de uma poética melhor que a deles. É certo que não é necessariamente inserindo sua biografia ou guiando-se pela originalidade pura e simples que um artista vai tornar sua obra melhor. Mas também não parece suficiente dizer que uma poética da objetividade, da ponderação da razão, consiga tornar a arte significativa por si mesma. A aproximação aqui da arte e da objetividade, da música e da razão, nesses termos lembra muito uma aproximação entre arte e ciência, mas obviamente essa aproximação não tem por que ser radical, como vimos, senão por uma motivação muito pessoal do Popper em descrever, com a objetividade, um ideal que dá parâmetro para ele explicar qual é a prática musical que para ele se provou mais bem sucedida (algo, portanto, do campo da poética, da prática, não da teoria mais “científica” – ele mesmo, imagino, ficaria feliz com esse esclarecimento).

E finalmente, objetividade/subjetividade, por não serem exatamente dois lados de uma mesma moeda, mas dois modos de agir complementares, são conceitos instrumentais que resumem discussões centrais na música, como: critérios para o juízo de valor da composição, a reflexão sobre o poder alusivo da música, a naturalidade da audição e toda dualidade que é conveniente à análise da música. E em todas essas aplicações ocorre o risco dos conceitos de objetividade/subjetividade serem mitificadores, de haver uma ilusão por uma teoria utópica que descreva a realidade isolando objetividade/subjetividade em extremos, carregando neles conceitos paradigmáticos que, quando pouco discutidos, se condenam simplesmente à ambigüidade e à generalização. Daí ter sido mostrado que a divisão objetividade/subjetividade, nos três casos gerais que consideramos, não precisa ser entendida senão como uma indicação prática, didática e uma convenção organizadora de gêneros e de estilos, e não como uma divisão que componha qualquer método científico muito preciso.

FIM

Este post pertence à série:
1. A objetividade e a subjetividade na música – Parte I
2. A objetividade e a subjetividade na música – Parte II
3. A objetividade e a subjetividade na música – Parte III

Este post tem 4 comentários.

4 respostas para “A objetividade e a subjetividade na música – Parte III”

  1. Interessante conclusão, Leo. Estou lendo uma biografia de Schoenberg, e fica claro que o maior erro do compositor foi ter dado ênfase a uma questão teórica. Ele tentou corrigir, evitando falar sobre o seu modelo dodecafônico. Mas seus colegas alardeavam aos quatro cantos a importância do método, o que gerou a imagem de um Schoenberg “teórico”, sem sentimentos. Segundo o mestre, a técnica deve estar a serviço do criador e não o contrário. Wagner, que teve papel importantíssimo na exploração da técnica musical, nunca escreveu uma linha sobre o assunto.

    Outro ponto importantíssimo que você chamou a atenção é da relação composição-ouvinte. Leonard Bernstein brilhantemente demonstrou (Havard-Norton) que qualquer ouvinte pode criar uma história independente a partir do texto musical (instrumental, claro). Ele usa como exemplo uma sonata de Beethoven e encaixa dentro dela uma pequena história (http://www.youtube.com/watch?v=14VhzlcSuT0). Apenas com metáforas é possível descrever “o que” a música quer dizer. A riqueza dessas metáforas depende apenas do ouvinte. Um ouvinte deve ser criativo o bastante para conectar os temas e entender as tensões geradas ao longo da obra. Isso explica um pouco a aversão que a música causa na maioria das pessoas, por isso dejetos de ritmo constante e previsível saciam muito mais.

  2. Veja bem,
    objetividade e subjetividade estarão ligadas eternamente. Pois somos humanos e sentimos, assim como raciocinamos. Qualquer música toca qualquer pessoa que a escuta, de uma maneira subjetiva. Mas apenas aqueles que conseguem analisar ela mais profundamente conseguem “saborea-la” em todo seu portencial e sem equívocos.

    Virtuosismo não é um termo que só se pode ser usado para músicos que tocam obras de grande velocidade e quantidade de notas. Muitas músicas tem suas dificuldades na interpretaçao. São ricas em detalhes que o interprete precisa saber lidar e passar através do som ao espectador. E não necessariamente tem muitas notas rápidas. O contrario pode aparecer, músicas cheias de dificuldades sem nenhum conteúdo. Como um texto cheio de palavras que nada dizem.

  3. Carlos,

    Muito legais os seus exemplos, especialmente o do Bernstein! Era bem esse o ponto. E sobre o Schoenberg, até fiz essa ressalva entre parênteses da ligação dele com o “expressionismo”, porque também acho esquisita essa imagem de um compositor “teórico”, que criou um sistema musical artificial.

    Filipe,

    Não sei se o meu texto foi um texto cheio de palavras que nada dizem, hehe, mas você resumiu muito bem algumas das questões mais básicas pelas quais esses posts passaram. Concordo sem tirar nem pôr.

    Abraços!

  4. Seria a mesma coisa que quando fosse ler Otelo, Macbeth, Romeu e julieta, ficasse mais preocupado com a parte gramatical do texto, as regras e técnicas que ele utilizou para escrever determinada obra e esquecêssemos de apreciar a obra, compreender a mensagem e refletir sobre a mensagem. Não podemos esquecer que a música comunica-se diretamente com a nossa psique, essa é uma das principais funções da música, segundo ao meu ver. Ela forma nossa mente e nossos sentimentos.^^

    Muito obrigado pelos artigos, muito bom, adorei.

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