Chegamos ao final dessa emocionante estória de amor chamada Noite Transfigurada, escrita por Richard Dehmel, musicada por Arnold Schoenberg e contada por um sexteto de cordas. Vocês devem lembrar, nós começamos descrevendo um casal passeando à noite por um bosque; então a mulher disse ao homem: Estou grávida e não é de você. Eu quis sentir as alegrias da maternidade e então me entreguei a um desconhecido. Porém, ao invés de condena-la, o homem a perdoa, e chama sua atenção para a estranha energia presente naquela noite. Segundo ele, esta energia transfigurará a criança do desconhecido em sua própria criança, seu próprio filho. Foi assim que terminamos nosso último post, deixando para este aqui apenas o epílogo da estória, uma espécie de recapitulação de vários motivos e momentos importantes que ouvimos até aqui.
Tal como a primeira e a terceira estrofe, a quinta estrofe do poema é curta e descritiva:
Er fasst sie um die starken Hüften.
Ele a agarra pelos fortes quadris.
Enquanto o violino entoa o motivo da noite tal como na primeira e terceira estrofes (duas pessoas caminham… e ela caminha com passos desajeitados), o violoncelo nos recorda do motivo do calor em sua forma original, “mas um calor interno flui…” (meu 4º post, comp. 255). Como recheio, temos as figuras bruxuleantes do brilho. Não tenha dúvida: Schoenberg está descrevendo a noite transfigurada à volta do casal.
E por falar neles… olha a mulher ali na 1ª viola (2º violino no repeteco), abraçada carinhosamente pelos demais motivos.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN378.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 378 a 384 (Juilliard-Trampler-Ma)]Ihr Atem küsst sich in den Lüften.
Seus hálitos se beijam no ar.
Já ouvimos este trecho antes lá no 4º post, comp. 259: ele descrevia o calor interno que fluia de você para mim, de mim para você. Aqui obviamente ele está descrevendo a respiração (o “calor interno”) do casal se beijando no ar, com uma pequena diferença: desta vez há três pessoas envolvidas e não somente duas. Seria a criança a terceira pessoa? E como figura de acompanhamento temos o motivo da maternidade, que é substituído depois pelos motivos do brilho e da noite.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN385.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 385 a 390 (Juilliard-Trampler-Ma)]O desenvolvimento dos motivos nos leva a um clímax, que ao mesmo tempo nos faz lembrar do clímax final do 4º post (comp. 276, “o primeiro da sequência”) e do último clímax da transfiguração (5º post, comp. 337).
Enquanto isso, lá no 1º violoncelo ouvimos o motivo da noite mudando, mudando, mudando, até se transformar num fragmento do motivo da transfiguração: literalmente, é a noite, transfigurada.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN391.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 391 a 393 (Juilliard-Trampler-Ma)]E coroando esta nova transfiguração, os motivos “gerada por mim” e da transfiguração reaparecem igual como lá no nosso “final feliz” (5º post, comp. 338). Mas, ao invés de fechar com o motivo do perdão, temos…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN394.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 394 a 400 (Juilliard-Trampler-Ma)]Pois é! É a sequência de acordes com o acorde de nona invertido (2º post comp. 41 e 3º post comp. 181). Da primeira vez que eles apareceram, eu tinha dito que, como a mulher não estava feliz com aquela situação toda, a sequência não tinha resolução e as dissonâncias ficavam lá, gritando, trágicas, em aberto. Mas aqui não! Já temos nosso final feliz graças à transfiguração.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN401.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 401 a 406 (Juilliard-Trampler-Ma)]Zwei Menschen gehn durch hohe, helle Nacht.
Duas pessoas caminham por uma majestosa, brilhante noite.
Se o poema iniciou com a “entrada” em cena de duas pessoas através da noite, nada mais justo do que terminar com a saída das mesmas usando o mesmo motivo, o motivo da noite. É hora de dar adeus ao casal.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN407.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 407 a 418 (Juilliard-Trampler-Ma)]E tudo termina suavemente, com o violino a tocar o motivo da noite e alguns instrumentos repetindo as figuras do brilho: é justamente a brilhante noite que encerra o poema.
Não posso terminar esta série de posts sem deixar de agradecer a dois amigos, Hans Schorer e Claudio Sehnem, que me ajudaram a entender alguns tempos verbais do pretérito alemão usados no poema. A tradução é minha, mas sem eles a segunda estrofe não teria a clareza que agora tem. Obrigado!
E como de hábito, finalizo o post com o trecho analisado sem pausas.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVNe6.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – compassos 370 a 418 (Quarteto Juilliard com Walter Trampler e Yo-Yo Ma)]Que foi? Saudades? Relembre a obra ouvindo-a (e lendo-a) desde o início:
Primeira estrofe
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVNe1.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – compassos 1 a 28 (Quarteto Juilliard com Walter Trampler e Yo-Yo Ma)]Zwei Menschen gehn durch kahlen, kalten Hain;
Duas pessoas caminham por um desfolhado, frio bosque;
der Mond läuft mit, sie schaun hinein.
a lua os acompanha, eles olham para ela.
Der Mond läuft über hohe Eichen,
A lua caminha sobre altos carvalhos,
kein Wölkchen trübt das Himmelslicht,
nenhuma nuvem oculta a luz do céu,
in das die schwarzen Zacken reichen.
dentro da qual os galhos negros se estendem.
Die Stimme eines Weibes spricht:
A voz de uma mulher fala:
Segunda estrofe
Ich trag ein Kind, und nit von Dir,
Estou carregando uma criança, e não é sua,
ich geh in Sünde neben Dir.
Eu ando em pecado ao seu lado.
Ich hab mich schwer an mir vergangen.
Eu tenho cometido um grave delito contra mim mesma.
Ich glaubte nicht mehr an ein Glück
Eu não acreditava mais que eu poderia ser feliz
und hatte doch ein schwer Verlangen
mas ainda tinha um forte desejo
nach Lebensinhalt, nach Mutterglück
de algo para preencher minha vida, da alegria de ser mãe
und Pflicht; da hab ich mich erfrecht,
e suas obrigações; assim eu cometi um ato despudorado,
da liess ich schaudernd mein Geschlecht
assim, estremecendo, deixei meu sexo
von einem fremden Mann umfangen,
ser tomado por um homem desconhecido,
und hab mich noch dafür gesegnet.
e eu ainda me senti abençoada por isso.
Nun hat das Leben sich gerächt:
Agora a vida tem se vingado:
nun bin ich Dir, o Dir begegnet.
agora eu conheci você, oh, você.
Terceira estrofe
Sie geht mit ungelenkem Schritt.
Ela caminha com passos desajeitados.
Sie schaut empor; der Mond läuft mit.
Ela olha para cima; a lua a acompanha.
Ihr dunkler Blick ertrinkt in Licht.
Seu olhar triste banhado em luz.
Die Stimme eines Mannes spricht:
A voz de um homem fala:
Quarta estrofe
Das Kind, das Du empfangen hast,
Que a criança que você tenha concebido,
sei Deiner Seele keine Last,
não seja para sua alma uma preocupação,
o sieh, wie klar das Weltall schimmert!
Oh veja, como o universo brilha tão luminosamente!
Es ist ein Glanz um Alles her;
Há um brilho ao redor de tudo;
Du treibst mit mir auf kaltem Meer,
Você está flutuando comigo sobre um oceano frio,
doch eine eigne Wärme flimmert
mas um calor interno flui
von Dir in mich, von mir in Dich.
de você para mim, de mim para você.
Die wird das fremde Kind verklären,
Este calor transfigurará a criança do desconhecido,
Du wirst es mir, von mir gebären;
Você dará à luz a ela para mim, gerada por mim;
Du hast den Glanz in mich gebracht,
Você tem trazido luz para dentro de mim,
Du hast mich selbst zum Kind gemacht.
Você tem gerado um filho de mim mesmo.
Quinta estrofe
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVNe6.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – compassos 370 a 418 (Quarteto Juilliard com Walter Trampler e Yo-Yo Ma)]Er fasst sie um die starken Hüften.
Ele a agarra pelos fortes quadris.
Ihr Atem küsst sich in den Lüften.
Seus hálitos se beijam no ar.
Zwei Menschen gehn durch hohe, helle Nacht.
Duas pessoas caminham por uma majestosa, brilhante noite.
Bravo, Amancio! Sempre que alguém quiser falar da Noite Transfigurada, vou indicar o link desses posts.
Saudações meu caro amigo!! Belíssima leitura!! Parece que a música se torna um livro… bom né?… Abraço!!!
Amancio, parabéns e obrigado pela sua excepcional análise.
Voltei a ouvir hoje a obra, e ela teve um sabor especial.
Abs
Pianovski
Parabéns pela belíssima análise. li-a agora, do primeiro ao ultimo post, “duma tacada só”, e devo confessar que estou estupefato, emocionado, encantado, feliz deveras…
ibid. comentário #4… o_O’
Olá Amancio. Passei toda a manhã a acompanhar sua análise desta obra que já conhecia, mas apenas superficialmente. Em uma viagem recente, adquiri a partitura, que estava em minha estante, esperando um momento para me revelar a riqueza de seus detalhes. Acredito que toda obra programática deva ser apreciada sobretudo em função de seu roteiro extramusical. Você uniu texto e música de um modo que permitiu desvendar a grandeza artística dessa jóia de Schoenberg. Obrigado!
Primeiro de tudo muitos parabens pela análise e pelo fantástico trabalho realizado. Eu precisava muito era da relação da obra com a estética. Como percebi é um grande conhecedor da obra. Se me puder ajudar nesse assunto eu agradecia.
Obrigado e cumprimentos
Olá Filipe,
Não tenho muito o que dizer além do que eu já escrevi no primeiro post. Na época de Schoenberg, Viena continuava dividida entre o formalismo de Brahms, que primava pela música absoluta, e a música programática de Wagner, toda baseada em temas (leitmotiv) e suas relações com algo externo à música (o “programa”). Schoenberg mostra que as duas coisas não precisavam ser opostas, elas podiam ser combinadas, e esta análise mostra tudo isso em detalhes. Não há muitos motivos “originais”, a maioria deles é formada por desenvolvimento de motivos anteriores ou por combinações entre eles: é uma economia de meios bem típica de Brahms. Por outro lado, os motivos representam elementos extra-musicais, programáticos, como na música de Wagner. Há uma estrutura grande que suporta a música, um ABACA formal (“clássico” como Brahms); porém cada seção representa uma das cinco estrofes do poema (extra-musical, wagneriano). Cada tema pode ser dividido em frase e meia-frase, com número de compassos definidos e simétricos (Brahms), mas numa harmonia cromática e avançada típica de Wagner.
Assim Schoenberg está claramente colocando um ponto final na fase anterior (que eu particularmente chamo de “segunda fase do romantismo” ou “fase nacionalista do romantismo”) e abrindo uma nova era na história da música (que eu chamo de “terceira fase do romantismo” ou “pós-romantismo”). Repare que na segunda parte da obra (posts IV, V e VI) ele não nega algumas das características marcantes do romantismo, como por exemplo o gosto pelo sobrenatural, pelo estranho, pelo noturno e pelo espiritual; por outro lado na primeira parte (posts I, II e III) ele se aproxima cada vez mais do expressionismo, com as distorções da realidade (o tonalismo) numa perspectiva subjetiva provocadas pelas fortes emoções da protagonista sem nome.
Parabéns pela bela análise! Uma excelente contribuição para a divulgação desta maravilhosa obra. Muito bom, realmente.
Gostei muito, cheguei aqui por acaso, no verso do vinil do album room on fire dos strokes (perfeito) tem a pintura dos herois intelectuais da Alemanha, e no mesmo quadro tem nomes no chão… e achei o compositor desse poema